As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
FOTO: GERARDO SANTOS

As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?

Explicamos aqui o que a legislação prevê sobre a coordenação da resposta a acidentes violentos e o que devia ter funcionado de outra forma.
Publicado a
Atualizado a

O descarrilamento do histórico Elevador da Glória, em Lisboa, na tarde de 3 de setembro de 2025, resultou numa tragédia de grandes proporções, com 16 mortos e 23 feridos (várias vítimas de nacionalidades distintas).

Neste desastre ficou exposta, de forma muito evidente, a falta de preparação das autoridades e entidades para situações de comunicação de crise, com falhas na coordenação entre entidades e na comunicação de informação ao público, levando a questionar quem deveria assumir o comando das operações e centralizar os dados durante a emergência.

Como em quase tudo no país, leis não faltam. O problema esteve, mais uma vez, na sua aplicação prática.

Em 2017 – junho e outubro - Portugal viveu os dois piores episódios de sempre de incêndios florestais. No total, mais de 110 vítimas mortais. O relatório independente apontou falhas graves de comando e controlo.

A dimensão da tragédia levou a uma reforma profunda da Proteção Civil, com a revisão do SIOPS e a criação de comandos regionais e sub-regionais para reforçar a unidade de comando.

Já este ano, novos grandes incêndios voltaram a expor fragilidades. Entre críticas públicas e relatos de bombeiros, repetiram-se queixas de descoordenação operacional.

Apesar das mudanças legislativas, as dificuldades na execução prática mostraram que a engrenagem legal continua a não garantir sempre uma resposta coesa.

A ausência da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil ((ANEPC) da coordenação da resposta ao acidente do elevador da Glória faz sentido? E do Sistema de Segurança Interna?

Quem devia ter assumido o comando? E porque foi a Polícia Judiciária (PJ) e não ANEPC a criar a linha de apoio às famílias?

Explicamos aqui o que a legislação prevê sobre a coordenação neste tipo de acidentes com mortes violentas e o que não funcionou.

O resultado mais visível da falta de cumprimento das determinações previstas foi a comunicação de números errados do número de vítimas mortais e, muito pior, dar como morto um cidadão alemão que afinal estava vivo.

As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
Desastre do elevador da Glória: PJ tem manutenção na mira. Destroços foram apreendidos e estão em local seguro

O que a lei manda fazer — e quem manda em quê

O quadro legal: SIOPS e SGO

Unidade de comando e coordenação

A resposta a acidentes graves em Portugal está organizada no Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro (SIOPS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 90-A/2022, de 30 de dezembro. O SIOPS assenta em três princípios:

1- Unidade de comando – um só chefe para todos os meios em operações de socorro.

2- Coordenação institucional – articulação entre entidades em Centros de Coordenação Operacional (CCO) a vários níveis (nacional, regional, sub-regional e municipal).

3- Comando no teatro de operações – exercido pelo Comandante das Operações de Socorro (COS), normalmente um comandante de bombeiros, através de um Posto de Comando Operacional (PCO).

Assim, quando ocorre um desastre, cada agente (bombeiros, INEM, PSP, GNR, etc.) aciona os seus meios, mas todos devem atuar sob coordenação da ANEPC, através do COS e dos CCO.

O Sistema de Gestão de Operações (SGO)

Em 2024, o Despacho n.º 4067/2024, de 15 de abril, regulamentou a forma de escalar a resposta no terreno. O Sistema de Gestão de Operações (SGO) define fases consoante o número de operacionais:

Fase I: até 36 operacionais, tudo concentrado no COS.

Fase II: mais de 36 operacionais, ativam-se células de Operações e Planeamento.

Fase III: mais de 108 operacionais, juntam-se Logística/Finanças, Ligações e Segurança.

Fase IV: mais de 324 operacionais, possibilidade de duas frentes/setores com comando próprio.

Fase V e VI: operações massivas, com centenas de operacionais e vários concelhos.

No Elevador da Glória, com mais de 200 operacionais empenhados, o PCO deveria estar em Fase IV, com células completas e um coordenador do posto de comando. Isso implicaria capacidade reforçada de planeamento, gestão de recursos, informação pública e integração de dados sobre vítimas.

O papel da ANEPC

1. Ativação e coordenação dos meios de socorro

O Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro (SIOPS) (DL n.º 90-A/2022, art. 3.º e 4.º) determina que todas as entidades atuem sob comando único e coordenação institucional.

A ANEPC, através dos Comandos Sub-Regionais/Regionais (art. 22.º-A e 23.º-A do DL 90-A/2022), assegura a mobilização articulada dos agentes de proteção civil:

- Bombeiros (primeira intervenção, desencarceramento, busca e salvamento);

- INEM (CODU, ambulâncias, VMER);

- PSP (isolamento da área, perímetro de segurança, controlo de acessos);

- Outras entidades se necessário (GNR, Instituto de Medicina Legal, Cruz Vermelha, etc.).

2- Comando no teatro de operações

- No local é instalado um Posto de Comando Operacional (PCO) (art. 15.º e 19.º do DL 90-A/2022).

- O Comandante das Operações de Socorro (COS) é sempre um comandante de bombeiros (Despacho 4067/2024, art. 16.º e Anexo III).

- A ANEPC, através do seu escalão sub-regional ou regional, garante a ligação estratégica e assegura que todas as entidades trabalham integradas, mas não substitui o COS.

3- Gestão logística e de recursos

- O SGO prevê células específicas para Logística/Finanças, Planeamento e Operações, que são ativadas progressivamente a partir da Fase II (mais de 36 operacionais).

- Num acidente com mais de 200 operacionais, como no Elevador da Glória, o PCO deveria estar em Fase IV ou superior (até duas frentes/setores, coordenador do PCO, células completas de apoio).

- Funções: iluminação, apoio alimentar, descanso/revezamento de equipas, mobilização de meios especializados.

4- Apoio às vítimas e famílias

- O apoio psicossocial imediato é competência prevista nos Planos de Emergência de Proteção Civil

- A ANEPC ativa equipas de apoio psicossocial (próprias ou em coordenação com Cruz Vermelha e Segurança Social).

- Já a identificação de vítimas e contacto nominativo com famílias pertence à PJ/INMLCF/MP (não à ANEPC). Aqui a ANEPC pode apoiar com espaços de acolhimento e logística, mas não divulgar nomes.

5- Ligação com outras entidades

O DL 90-A/2022 obriga à articulação com Câmaras Municipais e respetivos Serviços Municipais de Proteção Civil.

- Ministério Público/PJ (investigação criminal);

- A ANEPC assegura que o socorro não compromete a preservação do local para investigação.

No caso concreto, a engrenagem existia mas não foi aplicada como devia.

As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
Desastre do elevador da Glória: PJ tem manutenção na mira. Destroços foram apreendidos e estão em local seguro

Informação pública – Voz Única

- O SIOPS atribui ao Comando Nacional de Emergência e Proteção Civil competência para preparar e difundir normas operacionais, incluindo as de informação pública.

- Os Planos Municipais de Emergência (ex.: Lisboa) preveem um Gabinete de Informação Pública (GIP), que centraliza dados das entidades e comunica à imprensa e população.

- O papel da ANEPC é garantir voz única, coerente e validada com o PCO/CCO e, quando há vítimas mortais, com a PJ/INMLCF.

O papel da ANEPC é de maestro: não resgata diretamente, mas assegura a unidade de comando, coordenação estratégica, logística, ligação institucional e comunicação pública.

No Elevador da Glória, a expectativa seria ver um PCO em Fase IV do SGO plenamente ativo, com células completas e uma informação pública rigorosa. O facto de terem ocorrido erros graves na contagem de vítimas e mensagens contraditórias mostra que a execução prática do SIOPS/SGO falhou — a engrenagem existia, mas não foi aplicada como devia.

 À falta de uma "voz única" de comunicação, foi a PJ a assumir. Na conferência de imprensa de quinta-feira: (da esquerda para a direita): o diretor nacional da PJ, Luís Neves, o diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde, Álvaro Santos Almeida, o presidente do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, Francisco Corte-Real, e o diretor do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, Nélson Oliveira.
À falta de uma "voz única" de comunicação, foi a PJ a assumir. Na conferência de imprensa de quinta-feira: (da esquerda para a direita): o diretor nacional da PJ, Luís Neves, o diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde, Álvaro Santos Almeida, o presidente do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, Francisco Corte-Real, e o diretor do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, Nélson Oliveira.MANUEL DE ALMEIDA/ LUSA

Porque foi a PJ a criar a linha de apoio?

Apesar de se poder considerar que a PJ preencheu um vazio deixado pela ANEPC, a criação de uma linha de apoio desta natureza tem também fundamento legal:

- A identificação de vítimas mortais cabe à PJ, em colaboração com o Instituto Nacional de Medicina Legal (INMLCF) e sob supervisão do Ministério Público.

- A PJ lidera o processo de Disaster Victim Identification (DVI), especialmente crítico em tragédias com vítimas estrangeiras.

- Faz sentido, portanto, que seja a PJ a assumir esse contacto direto com famílias e embaixadas, enquanto a ANEPC se foca no socorro, logística e articulação.

- Num balanço feito nesta sexta-feira, a PJ informou que tinha criado um comando central interno de operações, em estreita articulação com o INEM".

A equipa multidisciplinar, em permanência, envolveu psicólogos do INEM e cerca de 20 inspetores e especialistas de polícia científica da PJ, no processo de contacto com os familiares e identificação das vítimas.

O atendimento foi pensado para dar resposta a três frentes: telefónico, presencial e e-mail.

Nas primeiras 24 horas, foram recebidas cerca de duas centenas de contatos de familiares e entidades oficiais.

As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
A última imagem com vida do guarda-freio André Marques no elevador da Glória, antes do acidente

Onde podia entrar o Sistema de Segurança Interna (SSI)

A Lei de Segurança Interna atribui ao Secretário-Geral do SSI poderes de coordenação, direção, controlo e comando operacional sobre as forças e serviços de segurança e de articulação com o SIOPS — voltado para ordem pública, investigação e segurança (não para o socorro em si). Em ocorrências com grande impacto, é a ponte formal entre PSP/GNR/PJ e proteção civil.

O Sistema de Segurança Interna (SSI) não substitui a Proteção Civil, mas tem um papel relevante quando uma emergência envolve matéria criminal ou de segurança pública, como foi o caso do elevador da Glória, que é também local de um eventual crime (homicídio por negligência, falha técnica grave, ou até sabotagem — tudo hipóteses a investigar).

Sendo assim, a PJ assume desde logo a preservação da prova, investigação e identificação de vítimas.

O SSI tem aqui a função de “ponte” de coordenação:

- Garantir que a atuação policial (investigação, perímetro, recolha de prova) não colide com as operações de socorro;

- Assegurar que há partilha de informação entre Proteção Civil e forças policiais;

- Evitar zonas cinzentas de responsabilidade (quem fala, quem confirma dados, quem gere as listas de vítimas).

Ou seja, num cenário destes, o SSI podia assegurar que Proteção Civil e PJ falavam a uma só voz, cada uma no seu domínio:

- ANEPC/Proteção Civil, o balanço de socorro e operações;

- PJ a identificação forense e investigação criminal.

O que (aparentemente) falhou no caso do elevador da Glória

1 — Validação da informação crítica (vítimas)

Um erro de duplicação de registo gerou um número de mortos errado (17 → 16). A correção só chegou depois, e até foi o PM a alinhar o balanço nacional. Isto revela falha no circuito de reconciliação entre PCO/CCO, hospitais, INMLCF e PJ antes de divulgar números. A posterior confirmação de um sobrevivente dado como morto reforça o ponto.

2 — Voz única de comunicação pública

O Gabinete de Informação Pública municipal existe precisamente para centralizar a informação à população e media. Na prática, tivemos múltiplas vozes (municipais, nacionais, polícia, saúde), mensagens não coerentes e retificações públicas.

3 — Escalonamento e células do SGO

Pela dimensão da ocorrência, o PCO deveria ter células ativas (Operações, Planeamento, Logística, Ligações, Segurança/Informação pública) desde cedo, com procedimentos de controlo de baixas e listas únicas (feridos/óbitos/desaparecidos) para validação cruzada. A existência de erros básicos sugere que a implementação prática do SGO não foi completa ou não funcionou com fluidez.

4 — Articulação SIOPS / SSI

Em incidentes com muitos estrangeiros e gestão forense, a articulação operacional entre proteção civil (socorro/PCO/CCO) e forças de segurança (SSI/PJ) devia ser treinada A lei até prevê essa ponte.

5 — Gestão de expectativas

O GPIAAF sinalizou que daria uma primeira informação na sexta-feira e ao final do dia anunciou que, afinal, só o faria neste sábado. Somado a mensagens díspares anteriores, pode alimentar ruído. Em tragédias com grande impacto, cada alteração ao cronograma público deve vir com explicação claras e um ponto de situação consolidado para todos os porta-vozes.

A reação das várias entidades ao dramático acidente do elevador da Glória mostrou empenho mas também desarticulação. O sistema legal e operacional existe, mas falhou na prática.

E o preço dessa falha é pago não só em sofrimento das famílias, confrontadas com informações instáveis, mas também na confiança pública num sistema que deveria funcionar na perfeição em momentos de maior tragédia.

As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
Edifício em que embateu o elevador da Glória com "totais condições de segurança"
As omissões e desvios no desastre do elevador da Glória. Outro teste falhado da Autoridade de Proteção Civil?
Revista de imprensa. Elevadores da Glória e do Lavra sem inspeção da autoridade de segurança

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt