“Aprendemos muito com o SARS-CoV-2 e estamos mais preparados para enfrentar uma futura catástrofe”

É o responsável pelo Núcleo de Bioinformática do Departamento de Doenças Infeciosas do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) e cedo entrou em ação no estudo do novo coronavírus, identificado na China, no final de 2019, que estava a assustar o mundo.Cinco anos depois de os primeiros casos terem sido detetados em Portugal (2 de março de 2020) diz ao DN que a evolução do SARS-COV-2 foi semelhante à de qualquer outro vírus, mas, sem dúvida, que a velocidade a que este se reinventava, gerando mutações, foi o que mais surpreendeu a ciência, a investigação e a medicina, que se tiveram de reinventar também e aprender a funcionar de outra forma. Concorda que as vacinas, alcançadas em tempo recorde, foram o que travou o vírus e evitou ainda mais milhões de mortes, mas como investigador e microbiologista diz que o que se aprendeu e descobriu foi algo que “vai ficar para a vida”. O SARS-COV-2 deixou de ser uma ameaça, mas, como diz a própria Organização Mundial da Saúde, é preciso continuar “alerta”. Para João Paulo Gomes, agora, os olhos dos investigadores estão postos, sobretudo, no vírus da Gripe aviária. Os primeiros casos oficiais de covid-19 em Portugal apareceram há cinco anos. O SARS-CoV-2 é agora só mais um vírus ou ainda uma ameaça? O SARS-CoV-2 já foi uma grande ameaça, neste momento é mais um vírus. No entanto, não podemos descartar a possibilidade de voltar a ser uma ameaça, porque o seu percurso evolutivo continua. É um vírus novo, tem poucos anos, e, neste sentido, pode sempre surpreendermos.Temos de nos manter alerta?Temos. Aliás, a maior parte dos países continua a fazer um processo de vigilância. Portugal, por exemplo, mantém a vigilância de base genómica para acompanhar o percurso evolutivo do vírus, para sabermos até que ponto as mutações que vão aparecendo no genoma do vírus podem significar um perigo em termos de maior transmissibilidade ou de maior agressividade da doença. Pegando na evolução genómica do SARS-CoV-2 pode dizer-se que foi sempre um vírus que surpreendeu pela quantidade de estirpes que ia gerando ou a sua evolução foi normal?O processo evolutivo de qualquer vírus segue sempre os mesmos padrões. É um processo em que as mutações surgem de forma aleatória e não conseguimos prever, minimamente, o tipo de mutações que vão aparecer no material genético de qualquer vírus. Isso é impossível. E as mutações aparecem porque os vírus multiplicam-se, e como se multiplicam têm de multiplicar o seu material genético e é neste processo de multiplicação que ocorrem erros. São as tais mutações. A maior parte destas nem sequer as chegamos a ver, porque são mutações prejudiciais ao próprio vírus e acabam por não sobreviver. As que nós vemos são aquelas que são neutras, não fazem nem bem nem mal ao vírus e, por isso, mantêm-se. São mutações que o ajudam a sobreviver, a multiplicar-se e a transmitir-se. Em relação ao SARS-CoV-2 foram essas mutações que se tornaram visíveis ao longo destes anos e com as quais tivemos de lidar. Neste aspeto, não foi um processo surpreendente, porque foi igual à evolução de qualquer outro vírus.E o que foi surpreendente no SARS-CoV-2?O que nos surpreendeu foi o facto de, em dois anos e pouco, terem aparecido tantas constelações diferentes de mutações, que depois se traduziram na variante Alfa, Delta, Gama ou Ómicron. Isto é que foi surpreendente. De tantos em tantos meses percebíamos que o vírus já tinha mudado completamente e, de repente, aparecia com uma nova constelação de mutações, que fazia com que já fosse suficientemente diferente da anterior, tornando-se prevalente em todo o mundo. A nova variante acabava por ser mais transmissível do que a anterior, substituindo-a na frequência e no impacto na população. Eu diria que o que foi surpreendente foi isso, a velocidade com que o vírus nos foi brindando com constelações de mutações diferentes.Neste momento ainda se mantém a variante Ómicron?Há alguns anos que o vírus tem estado sempre dentro da Ómicron. É uma variante de preocupação, mas dentro desta variante de preocupação nós já só falamos de linhagens e de sublinhagens. O que pode querer dizer que o vírus está a perder um bocadinho a imaginação.A evolução pode ter sido igual à de outros vírus, mas o SARS-CoV-2 assustou o mundo. Nisso foi diferente, não?Nesse sentido com certeza. Era um vírus desconhecido, que apareceu e que se instalou muito rapidamente, acumulando mutações a um ritmo muito acelerado, o que fazia com que tudo o que sabíamos até à data deixasse de ser verdade. Portanto, estávamos a combater um determinado tipo de vírus em tempo real que levava as pessoas infetadas ao hospital, mas, de repente, já havia outras pessoas a adoecer com um vírus que tinha novo conjunto de mutações, mais transmissíveis. Seis meses depois voltávamos a ter o mesmo cenário. E isto foi sempre assustando as pessoas.Sobretudo porque na altura não havia vacinas...Essa era a variável complexa. Como é que as empresas se poderiam preparar para desenvolver vacinas adequadas, tendo em conta a velocidade a que o vírus se desenvolvia? Este processo era de tal forma que, por mais acelerado que fosse o processo de fabrico de vacinas, era difícil desenvolver uma vacina para determinada variante. Era como se as vacinas chegassem ‘atrasadas’, mas, mesmo assim, tivemos vacinas em tempo recorde.Foram as vacinas que travaram o vírus? Se não fosse assim a realidade poderia ter sido outra?Eu sou um defensor total das vacinas e não tenho dúvidas absolutamente nenhumas em dizer que as vacinas foram um sucesso total. Procuramos a perfeição e o sucesso teria sido completo se o vírus não mudasse tanto. Mas as mudanças também acontecem no vírus da gripe, muda todos os anos, e as vacinas nunca têm a eficácia que gostaríamos que tivessem. Mas não tenho dúvidas que foram as vacinas que evitaram ainda mais milhões de mortes.O SARS-CoV-2 trouxe alterações profundas na forma de se fazer ciência, investigação e n a medicina?Sim, também não tenho dúvidas de que isso aconteceu. Costumo dizer que há males que vêm por bem. E, hoje em dia, tanto em Portugal como no resto do mundo, sabemos que a forma como olhámos para este vírus e para esta pandemia foi diferente.Qual foi?Percebemos que sem a colaboração mundial não íamos a lado nenhum. Não era possível combater uma pandemia destas sem que existisse uma colaboração fortíssima entre todos os setores, dentro e fora da Saúde. Portugal também percebeu isso, e muito bem. Portanto, a forma de fazer ciência, de fazer investigação e de se divulgar os resultados, mudou. Ou seja, percebemos que tínhamos de ser muito proativos, não só na forma como fazíamos as coisas, como na divulgação dos resultados, o que foi importantíssimo desde o primeiro dia. Qualquer grupo que fizesse uma descoberta relevante para a ciência, divulgava de imediato os resultados, porque outros grupos aproveitavam esses resultados em prol da própria humanidade. E isto foi inédito. Na ciência aprendemos muito com este espírito de colaboração e acho que isso ficou enraizado para a vida. Foi uma lição muito importante. Portanto, aprendemos a fazer ciência de uma forma diferente, claro.Como investigador teve algum momento em que pensou que o vírus era incontrolável?Nunca tive um momento em que achasse que pudéssemos estar num caminho sem saída. Sou sempre muito otimista. Confesso que me assustei quando, na altura da Ómicron, o número de infetados por dia era de muitos milhares e o número de camas ocupadas nos hospitais era também assustador. Mas muito cedo as vacinas começaram a aparecer e isso descansou-me. Foi relativamente fácil poder descontrair um pouco na perspetiva em que pensávamos: ‘Isto está complexo, mas estamos a combatê-lo da melhor forma’. E há outra coisa, a humanidade tem sobrevivido a tudo, por mais catástrofes que tenha passado. Assustei-me, mas não desanimei. Confio muito na ciência. E, hoje, olhando para trás, penso que as coisas não correram mal, porque ninguém estava preparado para algo que surgiu a uma velocidade relâmpago e com um impacto tão grande.Na altura, a estratégia do confinamento foi criticada. Foi a melhor forma de atacar o vírus?Nestas situações, o principal problema está na implementação de metodologias que retenham muito rapidamente a circulação do vírus para bloquear a cadeia de transmissão e evitar que outras pessoas sejam infetadas, vão parar ao hospital e morram. E este processo, de implementação de metodologias e de diagnóstico, foi relativamente rápido. Quando dizemos que poderia ter sido feito de forma mais célere, digo: com certeza que sim. Mas, mesmo hoje, acho que foi feito de forma célere, porque o vírus conseguia ser muito mais rápido do que nós.Vai voltar a acontecer no futuro?Se calhar vai, mas já estaremos mais preparados, embora se nos depararmos com um vírus com características de transmissibilidade ainda mais aceleradas do que as do SARS-CoV-2, nos possa fazer passar pelo mesmo. Não é muito justo criticarmo-nos a nós próprios e dizer que poderíamos ter feito muito melhor. Estamos a falar retrospetivamente e com o conhecimento que temos agora.E se formos confrontados com uma pandemia ainda mais fracturante do que esta, estamos preparados?Honestamente acho que estamos cada vez melhor preparados, e por duas razões: uma, porque o desenvolvimento tecnológico continua. Os testes de diagnóstico são cada vez mais acessíveis, são cada vez mais sensíveis e a divulgação dos resultados é cada vez mais fácil. Falando de Portugal, a possibilidade de termos uma rede laboratorial nacional com capacidade para montar um sistema de detecção é muito maior, o que nunca tinha acontecido. Repare que para o SARS-CoV-2 o Instituto Ricardo Jorge implementou rapidamente as metodologias necessárias. Montou uma rede enorme, geograficamente dispersa por todo o país, de laboratórios para fazerem diagnósticos. Não foi só o desenvolvimento tecnológico, a própria forma de pensar e de atuar na altura faz com que agora estejamos muito melhor preparados para algo que possa vir. Já reparou na quantidade de decisões em saúde pública que foram tomadas sempre em tempo real? É algo que agora faz parte da nossa cultura científica. E não tenho dúvidas em dizer que estamos muito melhor preparados a todos os níveis.Em Portugal, há algo que ainda se possa fazer para melhorar a nossa atuação?O que há a fazer é investir. Investir na capacitação a nível de recursos humanos, na sua formação, em equipamento e na capacitação laboratorial. E, acima de tudo, continuar a olear o circuito de divulgação de informação dentro do país, bem como com as autoridades europeias, nomeadamente com o Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças.Tem-se falado do vírus da gripe aviária. Este é agora a grande preocupação?É, sem dúvida. Os investigadores estão preocupados e muito focados no estudo das mutações deste vírus, como o H5N1, para se perceber até que ponto é que o seu salto evolutivo pode fazer com que ultrapasse a barreira das espécies. O nosso sistema imunitário não tem anticorpos para lidar com um novo vírus, tal como não tinha com o SARS-CoV-2. Daí a preocupação.Se tivesse que deixar uma mensagem à comunidade qual seria?Deixaria duas mensagens. A primeira é de preocupação, porque penso que estamos a caminhar no sentido contrário em relação ao processo das alterações climáticas e até em relação ao nosso contacto com animais selvagens. Estamos cada vez mais expostos, o que não é bom. A segunda é de otimismo, na perspetiva de que aprendemos muito com a pandemia e que estamos cada vez mais preparados para enfrentar uma futura catástrofe. .Francisco George: Depois da covid-19, gripe H5N1 é nova ameaça no horizonte.O coronavírus que paralisou o país evoluiu e é agora menos letal. A Covid-19 em números No mundoEm janeiro passado, a Organzação Mundial de Saúde deu conta de que até essa altura tinham sido contabilizados 777 milhões de infeções e sete milhões de óbitos. No ano passado, foram ainda notificados três milhões de casos em todo o mundo, longe dos 445 milhões registados no pior ano da pandemia, 2022.PortugalOs dados que constam no site da Direção-Geral da Saúde indicam que desde o início da pandemia até agora foram registados 5 665 433 de infeções e 29 150 mortes. Tal como no resto do mundo, o ano de 2022 foi o pior, registando 4 139 823 infeções. O pior dia foi o de 26 janeiro com 69 561 caos. EM 2025Este ano, Portugal já registou 597 infeções e 41 mortes por covid-19. .Marta Temido lamenta que Portugal continue sem lei de emergência de saúde pública

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