Inspirou-se em Pedro Teixeira, figura heroica do século XVII decisiva para as fronteiras do Brasil, para o seu projeto de descer o Amazonas. Como foi esse momento tão desejado, o início da descida do imenso rio? Em que barco, com que apoios? Então, a grande dificuldade que eu tinha, básica até, era o como concretizar a vontade de descer o Amazonas. Como? Em que barco? O que é que era preciso? Tudo isso. Tentei pedir auxílio logo à própria Marinha do Brasil. E depois, em face do período e do timing que tínhamos, resolvemos, teve de ser, encontrar um barco. E aí houve um amigo meu, com negócios no Amazonas, que me deu duas ou três dicas de locais para poder encontrar o tal barco. E na realidade encontrámos um barco de pesca turística, que alugámos, para caberem os nove expedicionários que constituíam o nosso grupo..A partida para essa aventura amazónica foi de onde? A partida foi justamente da fronteira do Brasil com a Colômbia. O barco foi alugado em Manaus e foi para cima, sem nós. Eu queria ter ido nele, mas por algumas regras também de navegação e licenças marítimas não podia levar então passageiros, acabei por não poder fazer essa subida, mas todos nos encontrámos em Letícia, que é a cidade colombiana que faz fronteira com Tabatinga, que é a cidade do Brasil na fronteira..Estamos a falar de quantos quilómetros ao todo para descer o rio? 3500 quilómetros, foi o que fiz de Tabatinga até Belém do Pará. Em duas etapas. Uma parte no ano 2014 e outra parte no ano 2015. Foi a maior aventura da minha vida..Os nove aventureiros eram um grupo de portugueses e brasileiros? Portugueses e brasileiros, amigos meus, todos com esta vontade de fazer a viagem, desde a venda da ideia da viagem. A tal ponto que nós não tínhamos, nem tivemos, qualquer expressivo apoio financeiro, porque tudo isto custou muito dinheiro, até mesmo o aluguer do barco, mas todos nós contribuímos do nosso bolso..Há um barco militar brasileiro que, a certa altura, vos apoia, não é? Exato, mas isso só sabemos já na parte final, quando a gente vai partir. O projeto que eu tinha proposto à Marinha do Brasil, três anos antes, ficou não na gaveta, mas na mente da própria Marinha, que nunca disse mais nada. E então, o que eu vim a saber, com grande alegria, sem dúvida, foi que dez dias antes de eu partir - dez dias, já tinha eu barco, o barco já estava a ir de Manaus para Tabatinga, tudo isso, os expedicionários também já estavam todos perfeitamente definidos - recebo um telefonema da Marinha do Brasil dizendo que o projeto foi aprovado e era considerado de interesse nacional. Tivemos, assim, durante a descida toda, uns três ou quatro navios militares no nosso apoio..O barco de pesca de Manaus não foi até Belém do Pará, certo? Não, esse barco de pesca foi alugado em Manaus, foi enviado para Tabatinga e desceu de Tabatinga até Manaus de novo, e assim ficou..A vossa segunda etapa, como foi? A segunda etapa no Amazonas já foi em navio militar, num navio-hospital. Foi maravilhoso, tanta diversidade: de gente, de animais, de plantas..Essa sua vontade de aventura, de conhecer o mundo, tem esta fase no Brasil, mas vem muito de trás, pelo que sei. Por exemplo, há um episódio seu que é uma caçada ao elefante em Angola, em 1974, logo depois do 25 de Abril... Durante a Revolução..Sempre foi caçador, já tinha caçado búfalos em Moçambique, e tinha o sonho de uma grande caçada, fosse ou não politicamente correto? Sim, sem dúvida. Eu sempre fui caçador, desde os meus 18 anos. Caçador de coelhos, de perdizes, mas caçadas grandes nunca tinha feito, muito menos de um elefante, até porque nunca tinha ido a África com essas intenções..Mas já conhecia a África? Sim, quando fui para a caçada já conhecia. Sempre fui viajante..O que é que se caçava tradicionalmente? Era um elefante macho? Sim, um elefante macho, nunca se caça uma fêmea, e em regra é um macho velho, que é o macho solitário. A organização familiar social dos elefantes é uma coisa extraordinária, que merece ser lida. Então, como é que se processou a minha caçada ao elefante? Terras de fim do mundo, grandes extensões, entre uns pedaços de mata muito fechada e outros pedaços de savana, árida, arenosa até. Éramos três caçadores, eu era uma espécie de caçador turista, diria assim, mas depois havia dois indivíduos de Angola, que tinham alguma experiência. Foram eles que contrataram o grupo de funcionários para apoiar uma caçada destas, que é sempre de umas 10 pessoas, pelo menos. Eram pessoas da terra. Era o mecânico, era outros indivíduos que conheciam bem a região e depois tem os pisteiros, absolutamente indispensáveis..O primeiro momento é encontrar a pista do elefante. Nunca o veem? Nunca o vimos. De manhã, quando saímos do acampamento por volta das cinco da manhã, ainda com um orvalho e com um friozinho, apesar de ser uma região muito quente, dirigimo-nos ao rio, à borda do rio. E é na borda do rio que se iniciam as primeiras pistas, porque o elefante foi beber água e ao beber água deixa as suas marcas, as suas pegadas, umas patadas imensas. E podem ser sozinhas ou podem ser misturadas, ou seja, de manada. E procurámos sempre ir ao animal isolado, nunca às manadas. As manadas são muito mais fáceis de atingir, de chegar, porque estão as mães, com as crias, aquela coisa anda toda mais devagar e em bloco. Portanto, nós tentávamos descobrir nas pegadas a pegada grande que pudesse identificar o macho. E esse macho muitas vezes estava também junto com a manada, só que à medida que toda a manada se deslocava, o macho velho, o cambaco, acabava também por se separar. Dava uma noção das pessoas idosas quando dizem assim, "a rapaziada que vá na frente, ou que vá para o outro lado, que eu vou aqui na minha, sossegado" e aí na realidade vai se separando..Quantos dias demoraram até chegarem ao elefante? Nós demorámos dez dias. Que não quer dizer que seja exatamente o mesmo macho, porque ao fim do dia, tudo se acaba. Voltamos no dia seguinte, de manhã, voltamos a fazer a mesma coisa, às mesmas pegadas, às mesmas identificações..Qual é o primeiro momento em que avistou o animal? O primeiro momento foi quase no momento da morte, no momento do tiro, até lá nunca o vimos. A própria perseguição, que é feita com um cuidado extraordinário por causa dos ventos, em que a gente está sempre a chutar o chão para levantar poeira ou a agarrar um bocado de terra, como se fosse um pó, para ver para que lado vai o vento e avançar justamente sempre contra o vento. A certa altura, nesses últimos dias, fomo-nos aproximando de uma mata serrada. E uma coisa que é importante é que tínhamos um determinado período para andar, que é de manhãzinha, das cinco da manhã em diante, mas a partir das onze da manhã já está muito calor e já se sente que o elefante está a descansar. Isto se não desconfiar que alguém está atrás dele, se desconfiar, meu amigo, vai-se embora e não há pernas que o sigam. Mas se não desconfiar, é nesse período, a partir das onze da manhã, do grande calor, que é quase possível a nossa chegada, porque ele vai abrandar e vai meter-se na floresta. Só vi o animal praticamente na ponta da carabina, a cerca de 20 metros, é aflitivo..E o tiro dado é perto do coração? O tiro é sempre, tentativamente, sempre à espádua, porque esta zona pode apanhar o coração, um pulmão, enfim, órgãos vitais..O elefante caiu no momento do tiro? Caiu, porque aquilo é um murro de duas toneladas e meia, mas não morreu logo, levantou-se..E há uma segunda perseguição? Há uma segunda perseguição, mas essa perigosíssima. A partir do momento em que está muito ferido, porque há encostos nas árvores de sangue, fomos descobrindo esse rasto, mas acabámos por encontrá-lo já morto. Mas estava virado a nós. À medida que íamos continuando a perseguição e até ao momento em que ele se abateu e morreu, esteve sempre virado para nós, estava à nossa espera. Foi altamente emocionante. O meu guia, vamos dizer assim, era o mais entendido do grupo, eu só fazia sinal para lhe dizer que não via nada para atirar, mas avancei mais um passo e mais um passo, até que senti uma mão assim na minha camisa, assim a puxar para trás "nem mais um passo", tinha de ser na adivinhação de onde estava. Foi o nosso embaixador no Brasil quem me deu a conhecer António Carrelhas, com 86 anos, metade deles a viver e a aventurar-se no outro lado do Atlântico. "É um português notável, cuja vida dava para três ou quatro filmes", disse-me Luís Faro Ramos. E depois de horas e horas a ouvir as aventuras de Carrelhas, na sua casa em Lisboa, só posso confirmar que aquilo que surge nesta entrevista é um mero resumo do muito que me foi contando, sempre com grande sentido de humor e consciente de que se a descida do Amazonas é uma coroa de glória, já a caçada ao elefante em Angola em 1974 pode ser hoje mal entendida. Jurista, gestor e aventureiro, foi assim que Carrelhas combinou comigo ser apresentado. Está agora de novo no Brasil e com um grupo de amigos vai recriar os chamados Caminhos da Independência, por exemplo, o percurso que fez D. Pedro entre São Paulo e o Rio de Janeiro a 7 de setembro de 1822 e durante o qual deu o famoso Grito do Ipiranga. No prefácio ao livro Cavalo Encilhado Não Passa Duas Vezes, um amigo dos tempos da Faculdade de Direito de Lisboa, o embaixador António Pinto da França, escreveu: "Tu demandas os santuários da natureza, mas não nos desvendas qual a misteriosa força, a razão última, que alimenta a tua incessante busca. Nem tu o saberás!".Agora damos aqui um salto temporal, para explicar como é que se fez caçador de elefantes em África e aventureiro na Amazónia. Em que ano nasceu e onde? Em 1937, no Estoril..De onde vem o nome Carrelhas, completamente fora do comum? Eu não sei de onde vêm os Carrelhas, sinceramente. Porque os Carrelhas que eu tenho conhecimento, e eu não sou muito genealogista, têm só duas ou três gerações..Mas há um antepassado seu famoso. Quem era? É um do lado do meu pai, os Carrelhas, é o doutor João da Silveira, que era o João Semana, o médico da aldeia das Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Diniz..Mas pelo que sei também há um escritor na família. Há, do lado da minha mãe. Então aí é o lado Teixeira de Queiroz, enquanto o João Semana e o lado do meu pai eram da região de Ovar, Aveiro, e o meu pai era de Vila da Feira, hoje Santa Maria da Feira, o lado da minha mãe, dos Teixeira de Queiroz, eram do Minho, do lado de Arcos de Valdevez. E o meu bisavô, portanto, do lado materno de Arcos de Valdevez, era o doutor Francisco Teixeira de Queiroz, médico, político e escritor..Como é que se chamavam os seus pais? António Huet de Bacelar Carrelhas e a minha mãe era Cecília Queiroz Pereira Bacelar Carrelhas..O seu pai foi piloto-aviador, um pioneiro em Portugal, mas sofreu um acidente muito grave e teve de refazer a vida? Sim, com 20 e tal anos, ele era segundo-tenente da Marinha e ficou inutilizado. Mas quando eu nasço já o acidente tinha acontecido. Aliás, até quando os meus pais se casaram o meu pai já tinha tido o acidente..Foi um homem, que muito jovem, teve de reconstruir a vida? Nunca esteve de cadeira de rodas, mas tinha uma perna hirta, coxeava muito e usava bengalas. E depois, justamente quando ele sai do hospital, acaba por se casar com a minha mãe, eu só venho a nascer quatro anos depois deles se casarem. Eles casam-se, creio eu, em 1933 e eu nasço em 1937. Nessa altura, com certeza, que o meu pai teve de repensar o que é que seria a vida futura dele..E o que é que ele fazia profissionalmente nessa altura, com mulher e filho, para sobreviver? O meu pai, nessa altura, era um oficial de Marinha aposentado. Estudou de novo e foi farmacêutico e engenheiro químico, foi para a parte da Química. Julgo que ele pensava naquela altura que a vida dele podia ser atrás de um balcão de uma farmácia, tendo em conta a sua deficiência física, mas depois a vida mudou e eu acho que lhe sorriu até. Isto porque um tio meu, irmão da minha mãe, que aliás foi um homem muito conhecido na finança e na banca, Manuel Queiroz Pereira, montou naquela altura, portanto, nos Anos de 1937 ou coisa assim, uma companhia de petróleos, a SONAP. O meu pai acabou por ir para diretor do laboratório e, mais tarde, terminou como diretor técnico da SONAP, especialista em óleos e em lubrificantes..Uma das influências do seu pai piloto-aviador, certamente, é o facto de o António ter ido estudar para o Colégio Militar. Sim, sem dúvida. Entro ainda com 9 anos. Faço 10 anos uns dias depois de entrar no colégio..E o António ficou, digamos assim, na história do Colégio Militar, por uma peripécia que lhe podia ter custado a vida? Quer contar? Estava a estudar, porque nós tínhamos no Colégio Militar, os anos normais, depois entravam as férias e toda a gente entrava de férias, menos aqueles que tinham exames. Os anos de exames, que no meu tempo era o 2.º ano, portanto com 12, no 5.º ano, que era com 15 - que era a minha idade então, na tal peripécia -, e depois no 7.º ano para terminar, eram anos de exames. E nesses anos de exames o colégio fechava e os alunos que ficavam era para estudar para os exames. Então, estudei, estudei, estudei e estava na véspera de sair do colégio, na véspera dos últimos exames e de sair do colégio - porque eu queria ir para Direito e o colégio não tinha Letras. De maneira que eu sabia que ia fazer os dois últimos exames, tinha estudado bastante, estava numa sala de estudos com um outro colega e deu-me o cansaço de estudar e disse-lhe "tenho de espairecer". E fui à janela. É um andar alto, é um 3.º andar alto. E, a certa altura, vejo por fora da janela coisas que também já tinha visto, e até já tinha talvez ensaiado em mente. Todo o edifício do colégio é circundado por um rebordo de pedra, é um edifício antigo, século XVII, ou coisa assim, um rebordo de pedra onde cabe um pé lateralmente. E eu pulei para fora da janela, pus os pés bem laterais e tentei apanhar a janela seguinte pela parte de fora. E consegui. Fiz uma janela, depois entusiasmei-me com aquilo, continuei, fiz outra janela, fiz outra janela. E aí, fui eu andando como homem-aranha agarrado aos caixilhos das janelas a passar de janela em janela, pela parte de fora. Só que quando chego à parte final, e em que há uma esquina do edifício, nessa altura é que me atrapalho, porque passo um pé para um lado do edifício, consigo passar um pé, manter o outro pé deste lado, do lado inicial. E aí quero voltar para trás, mas vejo que não consigo e é nessa altura que me desequilibro e caio. E caio de um 3.º andar à rua, a nove metros..A sorte que tem é que estão lá cordas de roupa, não é? Exatamente [risos]..Mas ainda precisa de uma segunda sorte, pois a corda é de arame? Era um arame com roupa estendida, mas o que bate no arame é o cinturão militar da farda, que ainda tenho guardado. É uma relíquia. Estive nove meses no hospital, três operações, muletas, aparelhos de gesso, tudo isso..Quando acaba o Curso de Direito vai às sortes, como se chamava à Inspeção Militar, e esse episódio do Colégio Militar vem à baila. Sim, na altura era na Avenida de Berna, onde agora parece-me que é a Universidade Nova. Essa cena das sortes é curiosa, porque todos nós passámos por elas. Eram grupos de jovens, portanto de 20 anos, aquilo era feito aos 19, 20 anos, todos nus - isto foi em 1957 -, e iam um a um, chego em frente à mesa, onde estão os coronéis, os médicos, e com aquele ar grave de comando, dizem: "Olha lá, sofres de alguma coisa? Tens alguma coisa?" E eu disse "não, eu tenho boa saúde, graças a Deus. No entanto, tenho aqui uma perna que tem alguma deficiência porque tive um acidente no Colégio Militar, caí de uma janela." E aí, foi como que uma mola que tocou os militares todos da mesa, os inspetores, coronéis, majores e disseram: "Foste tu? És o homem-aranha?" [Risos]. Porque obviamente eles tinham sido alunos do Colégio Militar, conheciam a história e queriam saber os detalhes, que janela foi, como é que caí..Depois de acabar o Curso de Direito, o que é que começa a fazer? Quando acabei o Curso de Direito, fiz o meu estágio, mas nessa altura foi-me posto o problema da decisão se eu gostaria de ir mesmo para advocacia, e aí caberia a mim desenvolver essa atividade junto de algum escritório, ou se aceitaria a ideia de ir trabalhar em empresas da família. E é claro que, para mim, era mais fácil ir trabalhar para empresas da família, não deixando, no entanto, de fazer o meu estágio de advogado, de ter umas horinhas no escritório de advogados..No fundo, acabou por ser gestor. Exatamente, acabei por ser gestor..Chegamos a 1977, ano decisivo na sua vida, até para a descida do Amazonas mais tarde, que é quando vai trabalhar para o Brasil? Exatamente..O António ficou desiludido com a crise económica que se seguiu à revolução, nada contra a democracia, mas contra a instabilidade. Contra a democracia nada, mas contra o caos e anarquia que se passava sim, porque o meu espírito militar não aceitava essa parte..Entretanto, tinha-se casado. Sim, e já tinha quatro filhos..É nessa altura que surge a oportunidade de ir para o Brasil, uma oportunidade curiosa, porque estava na Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, como representante de Portugal. Como representante dos empregadores portugueses, ou seja, do empresariado português, na OIT. Mas não vivia lá, só lá estava mais nos meses de junho quando havia as grandes reuniões..E aí conhece um americano que vai ser decisivo para si. Quem é? Esse americano foi o meu grande amigo Charles Smith, o delegado dos empregadores americanos, de Cleveland, presidente e grande acionista de uma empresa americana que se chama Sifco Industries. E essa Sifco era a Steel Improved and Forge Company, e como eu também tinha feito um estágio, arranjado pelo meu pai, nos meus 21 anos, na América, também em Cleveland, numa empresa de óleos e lubrificantes que se chamava Lubrisol, que depois veio a ter uma parceria com a Shell, tudo isso me deu uma ligação ao Ohio, Cleveland. De maneira que essa ligação com o meu amigo Charles Smith foi muito importante, porque não só desenvolvemos um contacto interessante num ambiente que eu desconhecia, o próprio ambiente político da OIT, tudo isso. Nunca fui político na vida, sempre trabalhei em empresas e nunca fiz política, mas é aí que ele me dá uma oportunidade de emprego no Brasil..O António queria ir para o Brasil, mas queria viver junto ao mar, mas depois teve que se convencer que ia para São Paulo. Exatamente. O que eu tentei, para ficar numa cidade junto ao mar..A sua vida no Brasil vão ser mais de 40 anos. A família vai de início, mas depois acaba por não ficar e, entretanto, divorcia-se e volta a casar-se com a brasileira Cecília, que é a sua mulher agora. No Brasil fica algum dos filhos a viver consigo? Primeiro, quando eu me separei, quando a Graça, mãe dos meus filhos, resolveu vir-se embora, porque também só tinha na cabeça ficar um ano e ponto final e não queria mesmo mais, então trouxe as filhas e o filho ficou comigo por opção dele, mas era muito jovem, tinha uns 15 anos. Era difícil, reconheço, estar num apartamento a viver com ele sozinho, num novo emprego, numa nova empresa, em que tinha de provar que era bom. De maneira que o meu filho, ao fim de mais uns meses, acabou por voltar para Portugal..Na sua vida no Brasil, envolve-se muito com a comunidade e com a Câmara de Comércio. Em 1987, acaba a sua ligação com a empresa americana e pensa regressar a Portugal, mas surge uma segunda oportunidade no Brasil. Exatamente, que é o Grupo Espírito Santo. Estava em Portugal de férias, mas que eram até para programar o meu regresso a Portugal, quando recebo um telefonema do dr. Manuel Ricardo Espírito Santo, que conhecia já de longa data, e que diz: "Ouvi dizer que estás livre. Queres voltar para o Brasil?" E aí eu voltei para o Brasil e para São Paulo, até hoje praticamente, em que vivo cá e lá..Uma das suas grandes aventuras no Brasil, ainda antes daquela da descida do Amazonas, é a visita ao Xingu. Como é que surge essa oportunidade? Isso surge através de um grande objetivo meu, que foi sempre ir mais além, experimentar o mundo. Quis ir para o Brasil, mas precisava de duas coisas. Uma, era ter trabalho, obviamente, para alimentar a família e para iniciar uma vida nova, e encontrei esse trabalho através do meu amigo Charlie Smith, da Sifco. E aí fiquei nove anos nessa empresa, muito bem tratado. Sempre correu tudo muito bem, mas havia uma coisa, outro objetivo, que era que eu precisava de conhecer pessoalmente os irmãos Villas-Bôas, que eram os grandes sertanistas brasileiros..Mas era uma grande vontade sua? Uma vontade minha. Quer dizer, conhecia a história deles, conhecia a política indigenista deles, eu tinha lido muitos livros deles e tinha a ambição de um dia poder ir contactar com os índios brasileiros, com uma pessoa como eles. E foi através desse desejo que consegui ir a uma festa em que sabia que estava o Orlando Villas-Bôas. E aí, na realidade, conheci-o, falámos, ele era uma pessoa bem mais velha que eu, talvez mais 10 anos, mais, uns 15 anos mais velho que eu. Mas acho que demonstrei um tal entusiasmo pelo trabalho deles, uma tal curiosidade por conhecer os indígenas, os índios brasileiros, e também por lhe demonstrar também algum conhecimento meu de África, na parte dos matos, da caçada aos elefantes, da vida lá em baixo nas terras de fim do mundo com os pigmeus, que engraçou comigo. Ele resolveu dizer-me que um dia me levava ao Xingu. Isto acabou por acontecer em 1982, em São Paulo, mas de uma forma muito traumática, porque estava na minha sala, na Sifco, o telefone toca e era o Orlando. O Orlando a dizer que me estava a desafiar para ir ao Xingu com ele, porque ele ia fazer uma viagem agora e tinha-me prometido desafiar e estava a fazer isso mesmo. Fiquei entusiasmado, mas quando ele me disse que a partida era no dia seguinte, aí o mundo desmoronou, porque como é que eu, diretor de uma multinacional, podia dizer assim de um momento para o outro que me ia embora para o Xingu? Ele insistiu, disse: "Se você quiser, vá ter comigo a Brasília a partir de amanhã, que eu estou lá três dias, e daqui a três dias pego o avião da Funai e vou para o Xingu. Vá ter comigo se você quiser". Eu fiquei, na realidade, muito mal. Fui falar com o meu patrão e disse-lhe: "Amanhã preciso de entrar de férias". E ele disse: "Mas você não tinha dito que era em julho que ia de férias e agora o plano de férias não sei quê". E eu disse: "Dr. Alexandre, tudo aquilo que eu disse não vale mais, é completamente nova esta minha necessidade. Eu preciso de entrar de férias amanhã." Ao que ele diz: "Mas é muito importante?" E eu respondo: "De vida ou de morte". Foi assim que respondi. Ele deve ter pensado que me tinha morrido a família toda em Portugal, mas lá me disse que se era muito importante... e assim ficou. Mas eu fiz questão de lhe contar a situação, expliquei-lhe sobre a conversa com o Orlando Villas-Bôas, que toda a gente conhecia, e como me tinha desafiado para uma última expedição que ia fazer ao Xingu e que eu queria ir. E ele, face a esta minha afirmação, também não tinha muito a fazer, ou ficava na empresa ou ia. Acabou por me dizer: "Pois é, tem oportunidades na vida que não se repetem.".Essas oportunidades na vida que não se perdem, deram título a um livro autobiográfico, que se chama Cavalo Encilhado Não Passa Duas Vezes. O que é esta ideia? É um ditado gaúcho, o Cavalo encilhado não passa duas vezes, porque na realidade o cavalo quando está arriado com a sela e tudo isso, e se passa por nós, ele não vai passar duas vezes arriado, ele não vai passar encilhado duas vezes, portanto ou monta ou perde. E esta oportunidade do Xingu foi absolutamente isso. Como muitas outras coisas na minha vida, até hoje, que tenho 86 anos e não vou parar....leonidio.ferreira@dn.pt