Sociedade
29 janeiro 2023 às 00h10

"O que acho mal é que os promotores do Memorial da Escravatura não queiram um Museu das Descobertas"

Depois da reedição em 2022 de Revoltas Escravas - Mistificações e Mal-Entendidos, João Pedro Marques lançou Descobrimentos e Outras Ideias Politicamente Incorretas. Historiador defende objetividade a tratar tema da escravatura.

Tem escrito muito sobre a escravatura e sobre as polémicas à volta da história da escravatura. Porque é que a abolição da escravatura pelo Marquês de Pombal em Portugal continental e nos Açores e na Madeira, logo no século XVIII - portanto, antes do abolicionismo estar em força -, é tão pouco valorizada?
Abole, mas ainda de uma forma gradual. Eram as chamadas leis do ventre livre. Os que eram escravos não se tornavam livres, mas os filhos dos escravos seriam livres ao fim de um determinado período, quando chegassem à maioridade. Foi um sistema depois usado massivamente nos Estados Unidos. Isso é tão pouco referido porque não teve uma frequência imediata, ao contrário do que aconteceu com o abolicionismo inglês que persistiu na sua tentativa de abolir. Os ingleses aboliram o tráfico em 1807 e a escravidão em 1833. As medidas do Marquês de Pombal foram muito circunscritas, resumiam-se ao território de Portugal e tiveram um hiato imenso, não houve mais tentativas a não ser em 1836 quando há uma proposta de Morais Sarmento nas cortes, mas não foi adiante. Depois, houve a proposta do Marquês de Sá da Bandeira em meados do século XIX, mas Portugal acaba por abolir a escravatura só 100 anos depois da medida do Marquês de Pombal.

O Marquês de Pombal não dá esse passo de abolir no resto do Império porque, sobretudo no Brasil, seria pôr em causa os fundamentos da economia colonial e encontraria muita resistência. Mas mesmo independente, o Brasil continuou a ser um grande país esclavagista e a importar escravos.
Exatamente. Inclusive, há picos de importação de escravos até perto de 1840. É muito interessante que na altura em que se tornam independentes, José Bonifácio, uma figura central na independência do Brasil, faz um discurso logo em 1823 em que diz que a culpa do tráfico de escravos é dos portugueses. Mas o que é verdade é que o Brasil continuou a importar, assinou um tratado com Inglaterra que não cumpriu e só terminou a importação de escravos porque foi forçado a isso por Inglaterra.

A família imperial brasileira , no tempo de D. Pedro II, faz vários esforços para abolir a escravatura, mas há sempre resistência dos grandes proprietários de plantações. Atrasam muito o processo?
O Brasil terminou a importação de escravos em 1850 pressionado por Inglaterra, mas a escravidão brasileira manteve-se até 1888. Foi o último país do ocidente a abolir a escravatura.

E faz sentido dizer que a república no Brasil foi uma reação à abolição?
Sim, a monarquia cai porque deu esse passo.

Portugal está entre os países que mais traficaram escravos de África e há séculos em que os números mostram claramente Portugal como o maior traficante. No entanto, muitas vezes nos livros sobre a história da escravatura faz-se uma soma entre os números do Portugal e do Brasil, apanhando ainda o século XIX quase todo, o que ainda inflaciona mais os números. É uma simplificação aceitável pelos historiadores mesmo que acabe por prejudicar Portugal?
Não estou aqui a fazer processos de intenção, mas a base de dados internacional em que esta informação se apoia é um levantamento numérico quantitativo que tem um erro à partida, isto é, tem um erro na forma de apresentação. É o seguinte: apresenta os dados de França e Holanda individualmente, por exemplo, mas agrega os dados de Portugal e do Brasil e os de Espanha e Uruguai. Junta os países ibéricos com as suas ex-colónias , que se tornaram independentes na parte final do processo, no início do século XIX , mas continuaram a importar escravos. Inclusive no Brasil ainda foram mais 1,5 milhões de escravos importados até 1850.

Portanto, os números de Portugal não são propriamente os números que aparecem nos livros?
Não. Atribui-se a Portugal a importação de cinco milhões e oitocentos mil, mas na verdade é responsável pela importação de África de quatro milhões e quinhentos mil, o restante cabe ao Brasil. Queria também chamar a atenção para essa tabela em que os historiadores juntaram Portugal e Espanha com as suas ex-colónias, mas separaram o quantitativo do Reino Unido e da sua ex-colónia Estados Unidos da América. Portanto, para se manter os mesmos critérios, os números de Inglaterra também estão um bocadinho subavaliados.

Sendo que em vésperas da abolição da escravatura, a Inglaterra substitui Portugal como maior traficante de escravos.
Nem foi nas vésperas, foi durante todo o século XVIII.

Outro tema que tem tratado é o abolicionismo no Ocidente, muito marcado pelo movimento abolicionista do Reino Unido, que levou primeiro à proibição do comércio de escravos e depois ao fim da escravatura. Nasceu de uma motivação idealista da sociedade britânica, de algum tipo de motivação religiosa, ou tem uma base económica?
Essa é uma das questões mais debatidas. Havia duas teses centrais: a humanitarista, que tinha a perceção de que era completamente desumano prosseguir aquela situação de tráfico de escravos, que foi o detonador da ação. Depois, havia a tese materialista, muito desenvolvida por um historiador das Antilhas chamado Eric Williams, que defendeu a ideia de que os ingleses faziam tudo aquilo que tinha interesse económico em fazer. No fundo, foi uma junção das duas. Não é tanto o interesse económico, é a convicção que está apoiada no desenvolvimento e divulgação das ideias liberais de que o homem livre é mais produtivo do que o homem escravo. O homem que pode adquirir dinheiro e com ele comprar bens, que tem interesse em ser remunerado, produz mais economicamente do que o escravo que é coagido a isso e não tem interesse naquilo que produz.

Mas há uma clara indignação da sociedade britânica no início do século XIX em relação ao fenómeno da escravatura?
Sim, é uma junção de tudo isso. E há até uma teoria inteligente, do meu ponto de vista, que tenta provar através de vários elementos que isto é uma jogada dos abolicionistas, porque percebem que não vão lá com as ideias humanitaristas de natureza religiosa só, e tentam convencer as pessoas de que é do interesse político e económico do Reino Unido abolir.

É muito interessante essa questão do interesse económico na manutenção ou não da escravatura, porque o Norte dos Estados Unidos vai abolir a escravatura cedo, à medida que se industrializa, mas o Sul só com a Guerra Civil o faz. E o sistema de plantação existia precisamente no Sul. Portanto, nos próprios Estados Unidos esse fosso Norte-Sul que desgasta o país tem muito a ver com a questão do escravo ainda ser visto como um grande valor económico no Sul e a escravatura resistir?
Resiste e cresce, porque o problema nos Estados Unidos é muito interessante e muito específico. O problema da escravatura nos Estados Unidos, no final do século XVIII, quando se dá a independência, valia, imaginemos uma ordem de grandeza, 20, mas na altura da Guerra Civil, ou seja 1861-1865, valia 80.

Crescia sem haver importação?
Sim, era a produção interna de escravos. Passaram de cerca de 900 mil para quase quatro milhões no tempo da Guerra Civil.

Há quem diga que isso significa que os escravos tinham melhores condições de vida nos Estados Unidos do que noutros países, nomeadamente Caraíbas e Brasil, em que morriam muito mais. Mas também existia quase uma reprodução forçada para criar mais mão-de-obra?
Exatamente. Isso depois também está associado ao grande desenvolvimento da cultura algodoeira, que cresce nessa altura. As fábricas de lanifícios em Inglaterra começam a querer cada vez mais algodão, há uma procura que aumenta e uma resposta no Sul dos Estados Unidos a essa procura produzindo mais escravos.

Portanto, a ideia de que a escravatura nos Estados Unidos foi acabando gradualmente não é real, pelo contrário, aumenta até acabar daquela forma dramática, por decisão do presidente Abraham Lincoln?
Sim, acaba de forma violenta e inesperada, porque o que o próprio Lincoln antevia no início da Guerra Civil seria um período longo para lidar com o problema e ir abolindo até princípio do século XX. Seria um período de latência, digamos, que se estenderia por décadas, mas a guerra precipita os acontecimentos.

Nas colónias portuguesas em África após 1869 a escravatura vai manter-se de forma encoberta com o trabalho forçado ou desaparece mesmo?
A escravatura no sentido estrito do termo desaparece mesmo, na medida em que o senhor deixa de ser proprietário daquela pessoa e da sua prole. Mas é substituída, no nosso império e noutros, pelo trabalho forçado. O que acontece em Portugal e que é também muito particular é que parece que não houve qualquer modificação. Portugal demorou tanto tempo a abolir que quando a fez já estava a haver um retrocesso internacional na forma como se entendia a relação com os negros e com os trabalhadores negros. As grandes ilusões dos abolicionistas do final do século XVIII e início do século XIX, as tais ilusões liberais de que o homem livre ia produzir mais do que o homem escravo, não se verificaram na prática.

Por isso é que antes da descolonização nas décadas de 1950 a 1970 há este fenómeno do trabalho forçado em África em grande escala em todos os impérios durante quase um século? A memória coletiva da nossa presença em África fica muito marcada por esse período e sobretudo pelos acontecimentos no Estado Livre do Congo, de Leopoldo II da Bélgica, onde acontece o expoente da violência europeia?
Sim, a entrada europeia em África no século XIX é muito brutal. No caso português já havia algum contacto de séculos, mas aquela conquista do interior é de uma brutalidade tremenda, até porque pela primeira vez os europeus têm meios para penetrar e vencer. Têm os meios médicos para poderem vencer as doenças e meios militares com as armas de repetição. Depois vem o esmagamento e seguem-se formas de exploração, como aconteceu no Congo, que são de uma violência atroz.

Nessa altura do novo colonialismo europeu, mesmo as etnias que traficavam escravos e eram cúmplices dos europeus no tráfico transatlântico passaram também a ser dominadas?
Sim, também.

Muitos desses grupos étnicos são maioritários atualmente nesses países, pelo menos a nível de elites. Sente que nos países africanos há uma consciência de que se os europeus foram traficantes tiveram cúmplices nos próprios países africanos ou isso é apagado?
É difícil dizer. Acho que há uma tendência para descartar aquela parte culposa para cima do homem branco na íntegra. Ou seja, um pouco a perspetiva de que foram coagidos a fazer aquilo e introduzem isso na equação com essa convicção. Não quero generalizar, mas em muitos casos não há perceção de que foram responsáveis em conjunto com os brancos na montagem daquele sistema e negócio odioso de vendas de pessoas. E tiveram lucro com isso, calculado de forma diferente do nosso porque não era monetário, mas era lucro social. Isto é, o que obtinham dos brancos eram as aguardentes, as armas de fogo, e isso dava grande poder entre os aliados ou dependentes dos chefes negros.

Há impérios africanos que crescem graças a essa colaboração com os colonizadores?
Sim, o Reino de Daomé, por exemplo, é integralmente montado sobre o tráfico de escravos.

O tráfico feito pelos árabes começa mais cedo e acaba mais tarde São números impressionantes também na ordem dos milhões, mas são menos estudados. A historiografia interessa-se menos?
Muito menos. A historiografia, sobretudo a mais recente, não se interessa por isso e ainda herdou a visão das coisas dos abolicionistas ingleses. No princípio do século XIX, os abolicionistas ingleses tiveram interesse em sublinhar muito fortemente a culpabilidade do europeu como ferramenta política. Nem sequer estavam a pensar no que se passava nos países árabes e muitos nem sabiam. De qualquer forma, o seu objetivo era acentuar a culpa do europeu e esta historiografia herdou essa perspetiva distorcida e pouco equilibrada dos acontecimentos.

Quando olhamos atualmente para Portugal há aquela polémica do memorial ou não à escravatura em Lisboa, acha que a sociedade portuguesa tem dificuldade em lidar com a história e assumir que os Descobrimentos tiveram a parte extraordinária da globalização, mas também trouxeram esta faceta negativa da escravatura transatlântica?
Acho que os portugueses aceitam isso naturalmente, aliás, há um processo histórico muito longo, gigantesco, e em todos os processos históricos que são muito longos há partes muito boas e partes extremamente nocivas. Acho que nenhum português nega isso, acho que não há um tabu na sociedade portuguesa sobre isso. E relativamente ao memorial, acho bem que se faça um memorial, aliás, nem tenho de achar ou deixar de achar, até porque vai ser feito. Nunca me opus ao memorial e acho bem fazer um museu das descobertas, o que acho mal é que os promotores do memorial da escravatura não queiram um museu das descobertas e escrevam cartas abertas a dizer "não a um museu contra nós". E conseguiram levar a água ao moinho, porque o projeto caiu, o museu das descobertas morreu. Isto é algo inaceitável, as pessoas na sociedade devem ter direito a evocar as suas memórias e não têm de destruir as memórias dos outros.

Descobrimentos e Outras Ideias Politicamente Incorrectas
João Pedro Marques
Guerra & Paz
200 páginas
14,85 euros

Revoltas Escravas
João Pedro Marques
Guerra & Paz
134 páginas
14 euros

leonidio.ferreira@dn.pt