Os vencedores junto da presidente do júri, Angela Merkel, e do presidente do C.A. da Fundação Calouste Gulbenkian, António Feijó.
Os vencedores junto da presidente do júri, Angela Merkel, e do presidente do C.A. da Fundação Calouste Gulbenkian, António Feijó.Márcia Lessa/ Fundação Calouste Gulbenkian

Agricultura sustentável leva a palma do Prémio Gulbenkian para a Humanidade

Júri presidido pela ex-chanceler Angela Merkel decidiu apostar em três exemplos de sucesso de agricultura que contribuem para a resiliência climática. O prémio monetário de um milhão de euros será dividido igualmente pelos vencedores.
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Uma organização egípcia (SEKEM), um cientista indo-norte-americano (Rattan Lal) e um programa estadual indiano (APCNF) foram os vencedores da quinta edição do prémio que reconhece pessoas e entidades que se distinguem na luta das alterações climáticas. A SEKEM foi fundada pelo químico egípcio Ibrahim Abouleish, tendo por base os princípios da agricultura biodinâmica, apresentados há cem anos pelo filósofo Rudolf Steiner, e hoje é um conglomerado de associações e empresas. Rattan Lal, professor na Universidade do Ohio, advoga há décadas a agricultura regenerativa, através da qual o homem deve devolver ao solo os nutrientes retirados através de métodos não invasivos. O programa de agricultura natural do estado de Andhra Pradesh ambiciona converter seis milhões de agricultores. Angela Merkel presidiu ao júri do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, cujo valor monetário é de um milhão de euros, a dividir pelos vencedores, entrevistados pelo DN.

Rattan Lal
“Não devemos focar-nos na maximização da produção mas no nível ideal”

Rattan Lal.
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

A sua área de atuação está intimamente ligada à experiência da sua família. 
Sou cientista do solo e cresci numa família de agricultores, uma família pequena, por isso estou familiarizado com o solo desde muito jovem.

Foi a sua experiência pessoal que fez de si um cientista do solo? 
Certamente influenciou bastante o meu pensamento, mas estudei agricultura porque vinha da agricultura. E depois, dentro da agricultura, a questão era em que é que me especializo? Um dos professores de ciências do solo aconselhou-me que esta era uma boa disciplina e ele tinha razão. As sementes têm de ser cultivadas algures. Por isso, uma semente milagrosa só pode fazer um milagre se for cultivada num bom solo. É esse o meu interesse.

Concluiu que uma mistura de técnicas não invasivas repõe os nutrientes do solo. De que forma a sua investigação foi reconhecida pela indústria agroquímica?

Não acredito que não precisemos de produtos químicos. Existe uma lei no solo chamada lei do retorno. E a lei do retorno diz que tudo o que se tira da terra, do solo, deve-se devolver no mesmo lugar, de uma forma ou de noutra. Aí entra a questão: qual é a melhor forma de devolver, através do orgânico ou do inorgânico? Isso depende da logística. Se tiver cinco toneladas de estrume ou composto, em vez de sacos de 100 quilos de fertilizante, use estrume. Se não tem estrume e precisa de usar produtos químicos, use-os como remédio, e não de forma indiscriminada. Se for uma combinação de ambos, tudo bem. A diferença entre veneno e remédio é a dose, o momento da aplicação e o método de aplicação. Se se usar fertilizante como um remédio, em vez de o difundir, está tudo bem. A minha abordagem é estritamente científica. A lei do retorno deve existir. Em África por exemplo, onde trabalhei durante 20 anos, a lei do retorno não é seguida há várias décadas, senão séculos. O balanço negativo de nutrientes no solo à escala continental é de 40 a 50 kg /ha por ano. Isto não é aceitável. Isto está a causar que uma em cada quatro pessoas passa fome e duas a três em cada quatro estão subnutridas. É um problema que não podemos resolver sem reverter o desequilíbrio de nutrientes.

Como é que as suas conclusões foram recebidas pela comunidade científica? 

A única diferença é que a minha abordagem é centrada na saúde do solo em vez de centrado na semente. A minha filosofia é que uma variedade milagrosa não pode fazer milagres a menos que seja cultivada num solo bom. É uma combinação de ambos. E cientificamente não há conflito entre eles. Os nutrientes removidos devem ser repostos. Não se pode trabalhar sem essa reposição. Isso remonta aos quatro princípios básicos da ecologia: na natureza tudo está ligado a todo o resto; a mãe natureza é implacável, não se meta com a natureza; não há como deitar fora: recicle, reutilize, faça o que puder; e o último e mais importante: não há almoços grátis, tudo tem um preço. Quando se aplicam estes princípios básicos à matemática e à física, isto é tudo física e é isso que eu entendo.

Em Portugal, os eucaliptos e os pinheiros dominam a paisagem e, mais a sul, despontou o cultivo intensivo de oliveiras e abacateiros. Será esta uma receita para o desastre?
 
Penso que o conceito base é manter o terreno coberto. O terreno deve ter cobertura verde durante todo o tempo. Depois é também necessário produzir alimentos para 8,1 mil milhões de pessoas. Ao mesmo tempo que mantemos o solo coberto e cultivamos alimentos, não devemos focar-nos na maximização da produção, mas no nível ideal. E é aí que entra a agricultura regenerativa. Enquanto se está a produzir alguma coisa, seja frutos, seja madeira, seja criação de gado, seja colheita de cereais, a ideia de que a saúde do solo deve ser melhorada e restaurada, o que significa que se vai sacrificar alguma coisa. Não se pode obter 10 toneladas de grãos de milho e assumir que a qualidade do solo será boa. Só pode ser boa se devolvermos os resíduos da cultura, se cultivarmos culturas cobertas. Da mesma forma, arroz de terras altas, sem manutenção contínua de água, é uma boa ideia. Haverá menos emissão de gases com efeito de estufa, menos utilização de água, mas a produtividade será menor. Podemos sacrificar 10% da produção, o que significa que devemos recompensar de alguma forma os agricultores por praticarem uma melhor agricultura.

Vijay Kumar e Nagendramma Nettem
“O agricultor com as melhores práticas é um formador”

Vijay Kumar e Nagendramma Nettem.
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Como explica o facto de esta iniciativa ter começado no estado de Andhra Pradesh em particular e ter tido tanto sucesso? 
Vijay Kumar: O programa foi lançado em 2016, depois de um ano de seca, quando eu estava à frente do departamento de Agricultura. Um dos fatores de sucesso foi a decisão do governo de Andhra Pradesh. Mas a forma como o fizemos também é responsável pelo sucesso. Porque antes disso, há 24 anos, o governo de Andhra Pradesh, quando era ministro-chefe o atual [Chandrababu Naidu], foi pioneiro na organização das mulheres rurais para se unirem no chamado movimento dos grupos de autoajuda de mulheres. Eu estava a liderar o projeto naquela altura e ao longo de dez anos organizámos as mulheres em todas as aldeias. Depois, quando se uniram, as suas energias multiplicaram-se. Conseguiram pedir dinheiro emprestado aos bancos a taxas de juro muito baixas e quase 70% do investimento foi alocado à agricultura. Mas a agricultura não lhes dava lucros. Em 2004, iniciámos um movimento de agricultura sustentável. Portanto, as origens são de há quase 20 anos. Mas foi liderado pelos grupos de mulheres. A construção de uma rede forte de mulheres é um fator muito importante para termos sucesso. O segundo pilar do nosso sucesso é o conhecimento, a tecnologia. Ancorámo-nos na ciência por detrás da agricultura natural ou da agricultura regenerativa. Analisámos o que os nossos agricultores estavam a fazer e quais eram os princípios dos melhores profissionais em todo o mundo e reunimos um conjunto de princípios e de práticas.

A transição é complicada?
 
V.K.:Têm de dar as mãos para a transformação porque a transição dura cerca de três a cinco anos. E nessa altura, se os agricultores não forem ajudados, regressam à agricultura química. 

Qual é a percentagem de agricultores que aplicam esses métodos no seu estado?

V.K.:Começámos com 40 mil agricultores no primeiro ano e nove anos volvidos ultrapassámos um milhão de agricultores, o que representa 17% de agricultores no meu estado. De um milhão precisamos de passar para seis. Sabe, atingimos um ponto de inflexão. Porque os anos difíceis são os três iniciais. E agora percebemos que se formarmos agricultores líderes à razão de um em cada cem agricultores, isso é suficiente. Para os próximos cinco milhões, preciso de formar 50 mil. Estes são a nossa verdadeira inovação: o agricultor com as melhores práticas é o formador. Tínhamos cerca de 800 destes agricultores líderes e multiplicámos o número para 10 mil. Nagendramma Nettem é uma dos nossos agricultores líderes. 

Qual foi a sua reação quando a APCNF lhe apresentou o modelo de agricultura natural?

Nagendramma Nettem: Não fiquei convencida. Mas a minha filha mais velha estava com baixo teor de hemoglobina e a visão a piorar. Pensei: porque não tentar? Iniciei a agricultura natural numa horta em que cultivei 12 variedades. Cozinhei com estes legumes e vi uma melhoria enorme na saúde da minha filha. Depois optei por um terreno maior, arrendei 800 m2. Quando estava a fazer agricultura química não conseguia ter liquidez. Antes cultivava apenas amendoim e agora mantenho 12 variedades. De três em três dias vou ao mercado e tenho um fluxo de rendimentos constante ao longo do mês. Consegui pagar os empréstimos e melhorar a saúde dos meus filhos.

Helmy Abouleish e Naglaa Ahmed
“A agricultura biodinâmica tem um bioma maravilhoso”

Naglaa Ahmed e Helmy Abouleish.
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Como filho do fundador de uma utopia que se tornou realidade, sente mais o peso da responsabilidade de prosseguir o caminho ou a felicidade de liderar o projeto? 
Helmy Abouleish: A felicidade, posso dizer imediatamente, não sinto qualquer peso. Só me sinto inspirado e feliz por estar neste fluxo, e por isso estou muito grato ao meu pai que me inspirou muito ,mas também a muitas outras situações que me ensinam todos os dias coisas novas.

A SEKEM começou com 70 hectares em 1977. Que área tem atualmente e quantas pessoas trabalham nas várias empresas e organizações?

H.A.: A SEKEM gere atualmente alguns milhares de hectares em diferentes locais por todo o Egito e tem cerca de 2 mil colaboradores em muitos campos diferentes ao longo da cadeia de fornecimento de alimentos, têxteis, produtos farmacêuticos e também gere escolas e um centro médico na Universidade de Heliópolis para o desenvolvimento sustentável. Há toda uma série de pessoas na comunidade SEKEM, mas serve milhões de clientes, principalmente no Egito, e tem agora uma rede com milhares de agricultores que são membros da Associação Biodinâmica Egípcia e que cooperam connosco ou apenas se inspiram e são educados na SEKEM.

Até que ponto é possível reproduzir a transformação do deserto em terras agrícolas? 
Naglaa Ahmed, diretora-executiva de projetos da Associação Biodinâmica Egípcia (EBDA): Não estamos a trabalhar apenas no deserto ou com os agricultores do deserto. Estamos a trabalhar em todo o Egito, em diferentes áreas onde o rio Nilo chega, ao sul do Egito e nas áreas desérticas. Começámos com o aumento de escala em 2000 agricultores, agora temos 10 mil agricultores. Depois do prémio, vamos trabalhar com mais 5 mil agricultores que estão à espera de serem inscritos. Nos próximos 40 anos contamos estar a trabalhar com 250 mil de todo o Egito. Além disso, estamos a replicar o modelo em diferentes países, como a Índia e o Brasil.

A agricultura biodinâmica foi considerada por algumas pessoas uma pseudociência com conceitos esotéricos. O que é para si a agricultura biodinâmica e em que medida é a chave para um mundo mais sustentável?
N.A.: É abordar o organismo vivo no interior do solo, ter biodiversidade, trabalhar com diferentes práticas sem pesticidas nem fertilização química, sem sementes OGM, com melhores práticas de colheita, e a perspetiva social a trabalhar em conjunto para se ter um produto saudável e de qualidade para ser vendido em primeiro lugar aos consumidores locais, e só depois para exportação. 
H.A: O que realmente conta no final, no Egito ou em Portugal é se o sistema agrícola biodinâmico é mais eficiente, mais produtivo, mais rentável para o agricultor. Melhor que julgar a teoria é julgar a prática. E aí está o segredo do sucesso. A agricultura biodinâmica no Egito funciona perfeitamente para os pequenos agricultores que a aplicam, tendo um bioma maravilhoso e solos vivos com um potencial de sequestro de carbono mais elevado do que os agricultores biológicos ou convencionais têm. A agricultura biodinâmica no nosso contexto provou ser bem-sucedida e estar a funcionar. E noutros países também. O movimento biodinâmico mundial, que está a celebrar o seu 100.º aniversário, é um movimento crescente em 65 países e muitos milhares de agricultores estão a ver os benefícios da aplicação desta forma consciente de lidar com a natureza.

cesar.avo@dn.pt

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