Depois de 44 anos na Polícia Judiciária (PJ), que balanço faz deste percurso e desta etapa final na Direção Nacional? O que ficou de mais marcante?Foram 44 anos de desafios, de realização pessoal, de fazer aquilo que gostava e de gostar daquilo que fazia. A temática da investigação sempre me inspirou, apesar de ter entrado na PJ quase por acaso - concorri a um organismo público que recrutava peritos de criminalística e acabei por seguir para a Judiciária.Ao longo das décadas fui tendo desafios diferentes: os dos anos 80, depois os dos anos 90, em várias categorias, locais e unidades. A parte final da carreira foi ainda mais intensa. Integrei uma equipa que queria “abanar” a PJ no sentido positivo: enriquecê-la com pessoas, com meios, com participação. Estes últimos sete anos na Direção Nacional foram, por isso, ainda mais intensos do que os anteriores 37.Consegue recuar às sensações que teve quando entrou na Polícia Judiciária e compará-las com a PJ que deixou agora?A PJ é hoje completamente diferente, embora continue a ser a mesma instituição. Quando entrei, era uma polícia quase “rural”, em que a prova assentava muito na relação pessoal. Trabalhava-se de outra forma, com um tempo diferente.Entretanto, tivemos um marco civilizacional: a revolução digital. Hoje há mais comunicação, mais abertura, e substituímos espelhos por janelas - deixámos de trabalhar só para nós, numa lógica de autoavaliação, e passámos a interiorizar e concretizar a noção de auxílio ao sistema de Justiça, a trabalhar sob o escrutínio da sociedade. Esse escrutínio é hoje muito maior, para o bem e para o mal.Também mudou o modelo de investigação. A PJ era praticamente a única entidade a investigar criminalidade mais séria. Hoje há várias forças com competências complementares. Passámos de um modelo isolado para um modelo de complementaridade, de trabalho de equipa. De resto, o investigador individual deu lugar ao investigador coletivo.A tecnologia mudou tudo, também: vestígios genéticos, digitais, biológicos, e agora o rastreamento digital - essencial numa realidade em que nem sempre há “local do crime”, porque muitos crimes ocorrem na nuvem digital.Antes a resolução de um caso dependia mais da capacidade do indivíduo do que da instituição…Sim, dependia mais da capacidade individual do que do grupo ou da instituição. Hoje é o contrário: depende da organização, da articulação entre entidades e da complementaridade.E há ainda a atenção mediática. A criminalidade e a investigação deixaram de ser rodapés de jornal para serem primeiras páginas. Isso aumenta a exigência e pressiona o tempo de resposta.Essa pressão social dificulta a investigação?Não diria que dificulta - é uma circunstância. Como chover ou fazer sol. É algo que nos rodeia e ao qual temos de nos adaptar, mantendo o objetivo essencial: prestar um serviço técnico-científico à Justiça, para esclarecer situações graves e complexas.A LOIC (Lei de Organização da Investigação Criminal) atribui à PJ matérias mais graves e complexas, mas hoje gravidade, complexidade e organização são conceitos mais fluidos. O importante é garantir que cada entidade intervém no seu nível: umas com maior capilaridade, numa fase inicial, outras - como a PJ - com atuação mais profunda, resultante do desenvolvimento da investigação.Faz sentido reforçar competências da PSP e GNR em matérias como o tráfico internacional de droga ou crimes com armas de fogo?Reconheço que há ambições dessas forças. Mas o modelo atual tem dado provas. Não excluo que haja ajustes no futuro, mas a prioridade deve ser evitar redundâncias e manter especializações distintas.O essencial é garantir vasos comunicantes entre entidades: partilha de informação, diálogo institucional, complementaridade. A sociedade não tolera guetos institucionais.Consegue destacar um caso - resolvido ou não - que o tenha marcado de forma duradoura?Destaco Pedrógão Grande. A resposta dada pela PJ e pelo Instituto de Medicina Legal foi elogiada internacionalmente: em cinco dias conseguimos identificar e devolver os corpos às famílias.Eu cheguei ao local no início e fui dos últimos a sair. Era diretor do Laboratório de Polícia Científica e a primeira intervenção era sobretudo de identificação humana e processamento do local, em articulação com a Medicina Legal.Foi marcante. Mas responder bem não significa que o problema fique resolvido - aquelas pessoas morreram. A dor e o sofrimento ficaram.Como nos abusos sexuais. Identificar um caso não é motivo de satisfação. A verdadeira satisfação só existe quando a prevenção evita o crime.Há outros casos que me marcaram: os desaparecimentos. Rui Pedro, Rui Pereira, Rita, a Joana, a Maddie… muitos nunca foram devidamente esclarecidos, e provavelmente nunca serão. Hoje trabalhamos melhor, do que antes, mas ainda há margem e necessidade de progressão. Portugal precisa de responder melhor ao fenómeno dos desaparecidos.Portugal continua a ser um país seguro? Ou estamos mais violentos?Não concluo que Portugal esteja mais violento. Continuamos a ser um país seguro. E não o digo por corporativismo - digo porque comparo os nossos números com a realidade internacional, e porque noutros países a autoridade do Estado tem sido posta em causa de forma sistemática. Aqui não.Naturalmente, não estamos imunes ao mundo. O mundo está mais violento, saiu da pandemia desequilibrado, houve acumulação global de droga devido ao fecho das fronteiras, há tensões sociais e comunicação instantânea. Somos confrontados, em segundos, com crimes, acidentes, tudo. Isso gera a perceção de que “está sempre a acontecer algo terrível”. Mas a perceção não é sinónimo de aumento real de violência.. Por que é que a perceção de insegurança cresceu tanto?Porque estamos expostos permanentemente à informação.Basta ter a televisão ligada em certos canais…E também porque certos fenómenos se tornaram mais complexos e mais chocantes - por exemplo, os crimes sexuais. Antes era mais fácil separar criminalidade sexual intrafamiliar, de rua ou digital. Hoje está tudo híbrido: pais que abusam, filmam e partilham com amigos; difusão instantânea de conteúdos; crimes presenciais que se prolongam digitalmente. E, por outro lado, estamos todos mais sensíveis e menos tolerantes a estes fenómenos - ainda bem. Aumentou a consciência dos direitos das vítimas e a violência sexual, porque é de violência que falamos quando nos referimos a crimes sexuais, não se aceita, não se tolera, não se opta pela indiferença. Há hoje muito mais sinalização.Portugal regista hoje milhares de crimes sexuais por ano. O RASI mostra aumentos sucessivos, incluindo quase 10% em crimes de violação. O que explica esta subida? Há mais crime ou mais denúncia?O aumento estatístico deve ser lido com cuidado. Temos indicadores claros de que o tempo entre o facto e a denúncia está a diminuir. Isso sugere que o crescimento dos números decorre sobretudo da maior visibilidade do fenómeno e da maior tendência para a sinalização, e não necessariamente de um aumento real da criminalidade sexual.A sociedade está hoje muito menos tolerante e denuncia mais. Há um trabalho transversal de várias entidades e muitas - a PJ incluída - têm trabalhado para incentivar a sinalização. O silêncio deixou de ser encarado como resposta possível. A vítima sente maior confiança em procurar ajuda e tem cada vez mais mecanismos de denúncia ao seu dispor.Por isso, quando vemos aumentos percentuais, não podemos interpretá-los automaticamente como agravamento da realidade. Significa que o sistema está a ser mais credível e que as vítimas estão a procurar a PJ mais cedo. O que não diminui a gravidade dos casos, mas ajuda a explicar porque é que a criminalidade participada cresceu. Isto sugere que o aumento estatístico dos abusos e violações decorre mais da visibilidade do fenómeno do que de um aumento real.Recentemente a PJ foi criticada por causa de uma publicação que fez, a alertar as mulheres para os casos da submissão química, porque houve quem achasse que estavam a culpar a vítima por não ter cuidado…E é importante reforçar que a vítima nunca é culpada. A comunicação da PJ que gerou polémica não contrariou isso. A vulnerabilidade da vítima não justifica o crime, quem pratica o crime é sempre o responsável.E esses casos de violações utilizando substâncias químicas para submeter as vítimas têm aumentado? Que substâncias são usadas?Sim, têm aumentado. Sobretudo através de substâncias como GHB ou quetamina - um analgésico veterinário, usado em cavalos. Estas substâncias circulam em mercados ilícitos e hoje têm formatos mais difíceis de detetar: líquidos incolores, sem cheiro, sem sabor. Isso facilita o uso dissimulado.O problema é que os vestígios toxicológicos desaparecem rápido. Quando a vítima desperta, procura ajuda, fala com alguém, ainda passam horas. Muitas vezes a análise dá negativo, mas o crime existiu. Por isso é tão importante cruzar com videovigilância. Aliás, devíamos falar de “videoproteção” e não videovigilância. As câmaras protegem-nos, não servem para nos vigiar.Concorda que a violação passe a crime público?A lei deve acompanhar o pensamento social dominante. Pessoalmente, se eu fosse vítima, numa perspetiva egoística, preferia que não fosse crime público. Mas do ponto de vista da investigação, faz sentido que o início do procedimento seja automático, sem depender da queixa, aumentando a probabilidade de recolha de vestígios e indícios, de prova e, consequentemente, de sanção dos agressores sexuais, evitando novos casos e novas vítimas.Ainda assim, deve preservar-se a possibilidade de a vítima sair do processo, sem que tal implique o arquivamento. A solução não pode ser apenas mudar a natureza do crime. Tem de proteger as vítimas de uma revitimização.Entre 1998 e 2000 esteve na Madeira, durante a vaga de casos de pedofilia. Que lições tirou dessa experiência?Havia grande tolerância social, não só local mas europeia, relativamente ao turismo sexual, envolvendo crianças. Muitos turistas repetiam práticas que tinham noutros países e zonas pobres do mundo.Tínhamos uma legislação pouco clara, permissiva dentro das famílias. Só ao longo dos anos - 1995, 1998, 2001, 2007 - o país foi clarificando o que é crime sexual contra crianças.A experiência da Madeira foi decisiva. Mudámos metodologias, tornámo-las transversais: procurando que uma vítima, no Funchal, fosse tão bem tratada como uma vítima doutra qualquer região, no norte ou no Algarve. Depois vieram o processo Casa Pia e outros casos complexos. A PJ foi evoluindo, estudando, formando os seus quadros, ajustando métodos, melhorando.A recente conferência - em Lisboa, no âmbito das comemorações dos 80 anos da PJ -, promovida a propósito da Criminalidade Sexual, Construir a Mudança, evidencia e reforça o patamar de excelência alcançado, na prevenção e na investigação criminal, destas matérias.Falou pessoalmente com vítimas de abusos? Como é estar frente a frente com alguém que viveu isso?Sim, muitas vezes, na Madeira e no continente. A grande dificuldade começa antes da entrevista: recolher a informação disponível, definir a abordagem, perceber se a vítima responde melhor a um entrevistador homem ou mulher. É um processo de conquista de confiança. A vítima já está fragilizada; cabe-nos equilibrar a função de obter prova com a função de proteção, reganhar a confiança perdida.Usamos salas com vidro unidirecional, entrevistas estruturadas, técnicas cognitivas. É essencial não ter demasiada gente à volta da vítima. E também é fundamental supervisionar quem trabalha nestas áreas, para evitar que banalizem o sofrimento ou que carreguem sofrimento paralelo. Todos somos pessoas; isto exige gestão emocional e racional.Há capacidade para responder à criminalidade sexual que migrou para o digital?A PJ tem tido essa capacidade e tem sido exemplar na articulação internacional, especialmente com EUA, Brasil e parceiros europeus. Mas a dimensão do digital cresce mais depressa do que a capacidade de resposta, sobretudo ao nível pericial.A criação do Laboratório Digital da PJ foi fundamental - acelera análises, dá resposta célere e evita discussões artificiais sobre mobilidade de polícias. Mas a perícia só é eficaz se as perguntas forem feitas no tempo certo. A qualidade da pergunta determina a qualidade da resposta.Os abusos presenciais e digitais exigem respostas separadas?Não. Embora salvaguardando a especialização e a conjugação de saberes, as respostas tendem a ser cada vez mais integradas. A criminalidade sexual é híbrida: pode ter preparação digital, execução presencial e difusão digital posterior. Uma fotografia ou um vídeo multiplica o impacto do crime e perpetua a vitimização. Por isso criámos o Observatório de Criminalidade Sexual, em 2022, para unir estas vertentes.. Portugal tem registado casos de divulgação pública de imagens de abusos e agressões sexuais. Que impacto têm?São devastadores. Uma coisa é o crime que ocorre entre quatro paredes. Outra é esse mesmo crime ser filmado, divulgado, replicado, apontado. Há um aumento exponencial do sofrimento e da exposição da vítima.A PJ tem detido dezenas de indivíduos condenados no estrangeiro, nomeadamente do Brasil. O que explica a entrada em Portugal destas pessoas, sem controlo?Às vezes o momento da condenação ou o registo da mesma no sistema de alerta da Interpol é posterior ao momento da entrada. Outras vezes os sistemas falham na comunicação - e isso não é exclusivo do Brasil. Temos, aliás, desafios internos: informação da detenção não pode ser “um papel”. Tem de ser um mecanismo eficaz, imediato e transmitido a todo o sistema, capaz de desencadear estratégias pró-ativas, para capturas, como de resto tem acontecido.A presença de grupos criminosos estrangeiros como o Primeiro Comando da Capital (PCC) deve preocupar-nos?Não tenho uma visão cor-de-rosa das coisas. Há fenómenos que nos chegam - violência, organizações criminosas internacionais -, mas não com a dimensão que se vê na Suécia, Bélgica, Holanda ou França, por exemplo. A realidade portuguesa continua diferente. Há visibilidade mediática, há alarme público, mas isso não corresponde necessariamente à dimensão real dos fenómenos.A nacionalidade dos detidos deve ser divulgada?A meu ver, a nacionalidade não é um elemento relevante para a investigação criminal. Investigamos condutas e factos, não características pessoais. Perfis criminais - abusadores, incendiários, etc. - são ferramentas de estudo, não matrizes para ir à procura de alguém. A investigação procura quem praticou uma conduta, não quem corresponde a um rótulo.Até nas bases de ADN excluímos marcadores geneticamente codificantes (para evidenciar características genéticas, como cor de pele, por exemplo). A ciência poderia fazê-lo, mas a lei portuguesa proíbe - e bem.Há alguma evidência de que certas nacionalidades cometam mais crimes em Portugal?Não. A principal nacionalidade dos autores identificados em Portugal é… portuguesa. E não temos qualquer indicador que associe o aumento da população imigrante ao aumento da criminalidade. O desconhecido gera insegurança, mas isso é sociologia, não criminologia.Que leitura faz da evolução da criminalidade violenta e da perceção pública recente?Vivemos um momento de muito alarme público. Alguns crimes violentos e, sobretudo, alguma violência nos crimes, tiveram grande mediatização. Mas a perceção social não corresponde necessariamente à prevalência real dos crimes. Embora se exijam cada vez mais respostas, céleres e competentes.As novas gerações da PJ estão preparadas para estes desafios?Muito. É das coisas mais gratificantes da minha carreira: ver gente nova, motivada, com formação académica elevada, muitos com mestrados e doutoramentos, e perfis diversificados.Na PJ não existe um único modelo de bom investigador ou de um bom perito. Há perfis intuitivos, metódicos, caóticos, organizados. A diversidade é uma riqueza. E a entrada constante de jovens mantém a instituição arejada.Esta Direção Nacional representou mesmo uma revolução na PJ?Representou. Sobretudo o diretor Nacional Luís Neves é, essencialmente, um “conquistador”. Depois da conquista tem de vir o “povoamento” - e essa é outra fase, de renovação, de reorganização, de evolução de metodologias e de sedimentação da cultura organizacional, que está em curso.Houve momentos em que se discutiu um novo modelo de polícia criminal e até a possibilidade de a PJ deixar de existir tal como existia. Mas, no meu entender, o essencial não é o modelo corporativo, mas sim garantir duas coisas: facilidade de acesso ao sistema por quem precisa dele e resposta especializada ao problema concreto.Qual gostaria que fosse o legado do seu trabalho na PJ?Embora já não faça parte da PJ, a PJ faz parte de mim. A saída foi uma decisão pessoal - percebi que, se continuasse, poderia começar a fazer mais parte do problema do que da solução. Era altura de virar a página.Tenho enorme orgulho em ter integrado a equipa de Luís Neves, nesses anos de transformação. Recebi manifestações muito carinhosas, que me emocionaram. E continuo ligado: a moderar conferências, a dar aulas, a participar em missões internacionais de identificação de vítimas - estive recentemente no estrangeiro, enquanto perito DVI, a acompanhar a identificação de cadáveres de reféns - e a sistematizar conhecimento acumulado.Sei que está a concluir o seu doutoramento. Qual é o tema?Sim. Na Faculdade de Direito de Coimbra. O tema é: Bases biométricas: porquê e para quê? Fala das bases de dados de ADN e impressões digitais - áreas que acompanhei de perto. Somos, todo o sistema, cada vez mais competentes nas recolhas de vestígios; é fundamental que as Bases de dados biométricas se escorem em soluções legais que aumentem a possibilidade de aumentar os termos de comparação, isto é, de inserção de amostras-referência.Hoje temos cerca de 20 e tal mil perfis de ADN registados - ainda muito poucos, comparados com mais de 300 mil impressões digitais. É um objetivo pessoal encontrar, no estudo académico, modelos com equilíbrio, técnico-científico, que possam fundamentar o desenvolvimento de melhores soluções legais.Depois de 44 anos, o que fica?Fica tudo. Um sentimento misto de honra, por ter pertencido à PJ, e de gratidão a tantos, tantos, que partilharam comigo este caminho. A PJ preencheu-me durante décadas. Mas há mais vida além da PJ e foi isso que decidi assumir, de forma natural, mas deveras impactante. Fechei a porta, sem a fechar totalmente. Continuo a ajudar onde posso, se a tal for chamado, mas já sem o peso institucional. Agora, o futuro já não é comigo - é com os que lá estão e com os que vêm aí.