“A ideia de que o Homem já não precisa da religião está muito longe de ter sido provada”
O seu livro O Direito da Religião, lançado este mês, foi escrito a pensar em estudantes de Direito, estudantes de Teologia, ambos ou num público mais vasto?
Eu sou jurista de formação, mais no âmbito de direito público e direito comercial, mas este livro interessa um pouco a todos, àqueles que têm religião e até àqueles que não a têm - porque, na verdade, a pessoa pode ter religião ou não ter, pode gostar ou não do fenómeno religioso, ou gostar de uma religião e não de outras, mas a religião é uma realidade da vida social, e isso é inescapável. E por mais laicista ou mais antirreligioso que se possa ser, isso é uma inevitabilidade. E acho que o Estado tem o dever e o direito de regular o fenómeno religioso respeitando um conjunto de parâmetros que a modernidade trouxe como sendo os parâmetros adequados: a ideia da separação cooperativa.
No fundo, esta é a minha grande pré-compreensão: que o fenómeno religioso existe, não deve ser perseguido, mas também não tem de ser privilegiado - é um fenómeno social, como outros, como a cultura, a arte, o desporto, e acho que o Estado deve ter um relacionamento com o fenómeno religioso, embora as circunstâncias possam mudar de país para país.
Na sua lógica, para estudar esse fenómeno é necessário perceber a sua história, de onde vimos, para perceber para onde é que vamos...
Sim. Aqui, a minha maior dificuldade foram os conhecimentos não jurídicos, porque eu não sou sociólogo de religiões, nem sou teólogo, nem historiador, embora tivesse colocado essa hipótese como segunda escolha se não tivesse ido para Direito. Mas o direito, quando regula, quando estabelece o conceito de religião (o que é que pode ser, o que não pode ser, o que é o ministro de culto, o que não o é…), tem de definir o que são os sentimentos religiosos, [e para o fazer] o direito vai buscar conceitos que vêm das ciências sociais e das ciências religiosas. Penso que, nesse aspeto, [o livro] pode interessar também a um vasto campo de cidadãos ativos que têm interesse em saber se as leis que existem são certas ou erradas.
Durante muito tempo houve dúvidas sobre a inconstitucionalidade de uma Concordata que apenas existia com a Igreja Católica, não só pelo facto de ela existir em si, como por ter normas que tinham privilégios para a Igreja Católica - isso depois foi revertido, a meu ver, com a Segunda Concordata, de 2004. Aliás, agora o Estado português até tem mais concordatas com uma religião não católica do que com a católica: tem dois acordos com o Imamat Ismaili. E não percebo por que razão outras confissões religiosas não estabelecem acordos com o Estado português da mesma forma, como prevê a Lei de Liberdade Religiosa.
Este é um tema que nunca tinha sido verdadeiramente estudado em Portugal, pelo menos não de uma forma tão sistematizada. Tendo em conta que o direito religioso, canónico ou outro é muitas vezes a base do ordenamento jurídico, por que pensa que os juristas portugueses, até hoje, o evitaram?
Olhe, é um mistério. Eu, num certo sentido, sinto-me, também por isso, orgulhoso deste livro, não só porque gostei muito de o fazer, o que me obrigou a estudar coisas um pouco mais “fora da caixa”, mas porque, realmente, o último livro que foi feito nesta matéria é o manual de um grande constitucionalista na passagem da monarquia para a república, da Faculdade de Coimbra, que se chamava [José] Marnôco e Sousa, o Manual de Direito Eclesiástico e Português, de 1910. Comprei-o num alfarrabista, está bastante bom, mas é de 1910. Depois deste ano, em 1911, veio a república e, como sabemos, um período de perseguição da Igreja Católica e do laicismo exacerbado. A disciplina foi eliminada e nunca foi reinstituída nas faculdades… Enquanto noutros países, que são tão democráticos ou até mais do que nós, e pluralistas - caso da Alemanha, de Espanha ou de Itália -, há disciplinas facultativas e até obrigatórias de Direito Eclesiástico.
Acho que ou há aqui um preconceito em relação a estes assuntos - e lamento, porque falar de religião não quer dizer que a pessoa esteja a ser prosélita, como é óbvio, se fala de religião de uma forma correta, como jurista ou como decisor político. E há pessoas que acham que não deve haver uma disciplina destas e que isto deve ser repartido por várias disciplinas jurídicas: um pouco, no Direito Constitucional, a liberdade religiosa; no Direito Penal, os crimes contra os sentimentos religiosos; no Direito do Trabalho, saber se o trabalhador pode faltar por motivos de culto… Mas a minha ideia é a contrária - mostrar o interesse da unidade da disciplina embora com vários ramos: matéria do trabalho, da comunicação social, da cultura, da fiscalidade, da justiça, tudo isso.
Estudar juridicamente o fenómeno religioso é importante até para proteger as religiões minoritárias...
Sim, acho que esse é o ponto importante, porque aqui a cooperação [do Estado com as organizações religiosas] deve ser, apesar de tudo, sensata. Ou seja, não se vai dar mais dinheiro àquela religião que não tem qualquer significado social, mas isso não pode significar que não se dê nada, porque senão ela vai desaparecer por não ter o mínimo de subsistência. Portanto, tem de haver aqui dois níveis: uma liberdade mínima, garantida e com um apoio mínimo garantido para todas as confissões religiosas, independentemente da sua dimensão social ou do número dos seus fiéis, um direito de subsistência, e depois, claro, a cooperação deve ter em conta - aliás, isso está na Lei da Liberdade Religiosa - a representatividade social das igrejas. Pelo que é natural que as religiões maioritárias possam receber mais dinheiro ou mais apoio do que as minoritárias. Mas penso que isso tem sido feito com algum cuidado, apesar de tudo.
No livro compara vários ordenamentos jurídicos internacionais. Há algum ordenamento constitucional que destaque, que faça um melhor equilíbrio entre separação Estado-religiões?
Acho que a Alemanha é talvez o melhor exemplo. É um país multirreligioso, dominantemente cristão, mas dividido ao meio, ou até um pouco mais protestante do que católico, mas há lá vários protestantismos. E, de facto, tem havido o respeito pelo fenómeno religioso e acordos estabelecidos com o fenómeno religioso. Desse ponto de vista, é de todos os países aquele que tem levado mais ao limite essa possibilidade de se fazerem acordos. Penso que esse método, chamado concordatário ou pactício, de haver acordos entre o Estado e as confissões é um método importante. A lei permite que em certos assuntos cada confissão religiosa estabeleça as suas próprias regras, os seus feriados, os direitos para os seus fiéis que são trabalhadores, por exemplo, ou certos apoios sociais. Por isso pode haver uma combinação entre o núcleo central, que é unitário e unilateral, que é uma lei, ou aquilo que está na Constituição, mas depois haver certas matérias em que se pode dar liberdade às confissões religiosas para elas estabelecerem as suas próprias regras de funcionamento.
E qual é a sua opinião relativamente às medidas que França tem tomado, como a proibição da burka em qualquer local público, o hijab ou cruzes cristãs nas escolas?
Acho que tem sido um excesso e que algumas normas são claramente inconstitucionais, porque põem em causa a liberdade e o direito de a pessoa se identificar com símbolos da sua religião na sua própria roupa ou em objetos que possam trazer ao pescoço, por exemplo. Creio que isso é manifestamente inconstitucional - embora excecionando os assuntos que têm a ver com a segurança, como a identificação das pessoas. Sobretudo no caso das escolas: se a pessoa vai vestida de certa maneira ou se leva um crucifixo na lapela, quer o professor, quer o aluno, a grande questão é se isso significa um proselitismo religioso. Isso é que é preciso saber, se é uma colocação ostensiva para convencer alguém, digamos, numa mensagem subliminar de querer doutrinar alguém ou não.
Acho que a pessoa se veste como quiser, e isso não tem de ser visto como uma doutrinação permanente, é o seu modo de vestir. E tem de ser aceite, não podemos proibir as pessoas de se vestirem de certa maneira só porque se acha que o facto de elas estarem assim vestidas já estão a doutrinar ou já estão a influenciar outras para quererem ser da sua religião ou para haver um conflito religioso.
Houve um caso, também francês, que acabei por não colocar no livro: há uns meses, uma impugnação de um presépio, que tinha sido colocado numa praça pública, por uma associação da laicidade, dizendo que o presépio era uma manifestação de religiosidade que punha em causa a laicidade do Estado. E a solução encontrada foi dizer que o presépio não era uma manifestação religiosa mas sim uma manifestação cultural - não se tratava de proselitismo religioso, mas sim de uma cultura que era a maioritária no país.
Esse tipo de atitude vai para além da laicidade...
É verdade que, às vezes, a palavra laicidade quase corresponde ao laicismo, mas há uma diferença. Alguns preferem a palavra separação, mas a separação também é uma palavra demasiado crua, porque dá a ideia de que não há qualquer ligação possível. A separação dá a ideia de que é uma separação absoluta. O laicismo é não só estar separado como não querer que a religião exista, ou querer diminuir a influência social da religião. Isso não pode ser.
O Estado deve ser laico, não laicista. O Estado laico pode ter cooperação em relações com as várias confissões religiosas. Penso que esse é o ponto importante, e deve respeitar aquilo que as religiões têm.
Um dos assuntos que aborda no livro é a dificuldade de um Estado moderno articular, dentro de uma lógica de liberdade religiosa, certos assuntos, como o bem-estar animal, tendo em conta os preceitos de muitas religiões, como o abate para consumo. Porque se trata aqui de verdadeiros conflitos de direitos.
Sim, temos o caso do abate dos animais religioso, que é uma coisa que me parece até bastante excessiva, que até pode ser inconstitucional, porque a Lei da Liberdade Religiosa diz, a certa altura, que este tem de ser feito respeitando os direitos dos animais. O problema é que, se isto for levado ao extremo, vamos limitar certas práticas que implicam que os animais tenham de ser abatidos de certa forma, como no caso do Islão, por exemplo, e que nos animais, para serem comidos, tem de se extrair todo o sangue, o que pode implicar algum sofrimento naqueles segundos que precedem a morte do animal. E acho que aí, sinceramente, tem de se promover a liberdade religiosa.
Pois, esse é o problema… E agora vou ter de partir do exemplo dos animais para ir para os humanos...
Sim, pode ir à vontade.
É que este tipo de conflito de direitos entre a lei civil e a religiosa também pode então defender, no limite, que a excisão é prática religiosa e, como tal, o Estado não a pode proibir.
Foi muito bem colocado. E leva-me a um dos assuntos que ia referir [no livro], mas depois não referi, porque já era tanta coisa… Mas na Alemanha, por exemplo, recentemente foi feita uma alteração ao Código Civil a permitir a circuncisão (já vamos à excisão) feita pelos judeus como uma prática religiosa logo à nascença dos rapazes. Era entendido, por alguns, como uma mutilação e como uma ofensa à integridade física do bebé que tinha acabado de nascer, o que foi complicado, e a Alemanha acabou por alterar o Código Civil para permitir essa prática para quem o entendesse, dando esse direito absoluto aos pais para fazerem a circuncisão dos seus filhos. É um assunto complicado, tem de reconhecer, é cortar uma parte do corpo da pessoa. Mas a lei entende que os pais têm esse direito sobre o corpo dos filhos.
A questão das decisões de excisão feminina já é mais complicada, porque é uma mutilação de uma gravidade muito superior, implica consequências definitivas sobre aspetos de dimensão sexual e do prazer sexual das mulheres. O grau de violação da integridade da pessoa é muito diferente, pelo que eu proibiria e não aceitaria argumentos religiosos para permitir uma decisão de tal forma.
Mas, a partir do momento em que a religião se pratica dentro de um determinado Estado de direito (secular, naturalmente), o direito religioso tem de aceitar as leis, a hierarquia legal desse Estado no qual ele se encontra?
Sim, tem. Essa é uma das questões difíceis. A atividade religiosa não pode pôr em causa os direitos dos cidadãos, de um modo geral. Não pode pôr o direito da integridade física, o direito da integridade moral de todas as pessoas, incluindo as próprias pessoas, da sua confissão religiosa. Isso está mais ou menos claro.
Mas admite que haja normas aplicadas dentro do Estado de direito, vindas do direito religioso, que vão contra a Constituição?
Sim, por exemplo, o sacerdócio não ser aberto às mulheres…
Ah sim, essa regra é contra o princípio da igualdade.
Claro, mas acho que aí se trata de uma função religiosa muito, muito importante para uma confissão e esta também tem direito a ter uma identidade. Desse ponto de vista, considero ser um aspeto moral da sua doutrina, um núcleo irredutível da vida religiosa, e o Estado não pode impor o princípio da igualdade de género no acesso à condição de ser clérigo. Já não é o mesmo, por exemplo, no caso dos tratamentos médicos que podem levar à morte de uma pessoa menor. Se a pessoa for maior e estiver consciente, tudo bem, tem preferência a liberdade religiosa, agora se for menor, acho que os pais, embora tendo, em geral, o direito de conduzir os destinos do menor em todos os aspetos da vida, não têm o direito de lhe favorecer a morte por recusarem um tratamento médico por razões religiosas. Aí, eu acho que o Estado tem de se impor, tem o dever de salvar a vida desse menor, mesmo que isso implique a violação da liberdade religiosa como será, naquele caso, interpretada pelos pais. Já tem havido alguns casos desses.
O Estado, que se supõe secular, ao dar um estatuto especial às religiões não está, no fundo, a fomentar a superstição e quem dela beneficia?
Não, desde logo porque não é superstição, é crença, é um nível mais elevado. Depois porque a liberdade religiosa, no fundo, é uma conjugação de várias liberdades que já existem: a liberdade de opinião, a liberdade de associação… Mas acho que o Estado tem de reconhecer a existência do fenómeno religioso tal como ele existe, ainda que tenha vindo a evoluir.
A religião significa um acreditar num conjunto de “verdades” e “de deveres” impostos pelo “transcendente” e que tem impacto na vida social das pessoas, enquanto a superstição é acreditarmos que, pela manipulação de certos objetos ou de certos instrumentos, aquilo tem uma força sobrenatural. É algo de mais baixa intensidade. A questão, aqui, é da própria singularidade do fenómeno religioso, que pressupõe a necessidade de fazer o tal agrupamento dos pedaços dos outros direitos, que estão dispersos, e que uma religião pressupõe as suas várias dimensões.
Hoje vivemos numa sociedade secularizada, é verdade, e há uma laicização social progressiva, mas isso não significa que as pessoas tenham perdido necessariamente a fé, embora até hoje a coloque noutros termos. A ideia de que o Homem já não precisa da religião porque teria chegado à plenitude da sua inteligência está muito longe de ter sido provado. Ainda não me convenceram dessa afirmação.