Foi um dia todo à volta do mesmo tema: a Portugal Telecom e a alegada influência de José Sócrates em vários temas da empresa, como a OPA da Sonae ou a venda da brasileira Vivo.Esta terça-feira, dia 8 de julho, durante a segunda sessão de julgamento - a primeira em que José Sócrates ou qualquer outro arguido falaram em tribunal -, o antigo primeiro-ministro muniu-se de documentos, uma smoking gun (“a prova definitiva” que anula a acusação) e até referências filosóficas.Na parte da manhã, o antigo primeiro-ministro começou por prometer a apresentação de provas para mostrar a sua inocência. “Vou apresentar provas de que esta acusação é falsa”, garantiu, antes de passar em revista os nomes da Caixa Geral de Depósitos (CGD) que estiveram na reunião da Portugal Telecom, incluindo Armando Vara (também arguido neste processo e já condenado no âmbito do caso Face Oculta), e lembra o voto contra à OPA da Sonae..Da "cordialidade" com Ricardo Salgado às repreensões da juíza: o primeiro dia de José Sócrates em tribunal.Para comprovar a sua tese, leu algumas passagens da ata da reunião feita pela CGD. “Não sei se todos nesta sala ouviram os nomes do Conselho de Administração, será que todos foram instruídos pelo Governo e por mim em particular para que votassem contra a OPA da Sonae? Muitas destas pessoas são insuspeitas de simpatia política do partido que eu liderava na altura”, argumentou Sócrates, antes de garantir que “nenhum dos membros” desta administração teve “instruções do Governo”.Utilizando vários documentos durante a intervenção, Susana Seca pediu que o antigo primeiro-ministro “não cite” partes que constem da acusação, ao que o arguido respondeu que falaria “da forma mais conveniente” para a sua defesa.Um desses documentos foi referido por Sócrates como a smoking gun, a “prova definitiva”: um despacho do então secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, Carlos Costa Pina, “assinado três dias antes da reunião da Assembleia-Geral de acionistas da PT. Foi escondido pelo Ministério Público (MP). É falso o que dizem. O papel desmente a acusação”.Depois de ir lendo várias declarações de outros envolvidos no processo, feitas na fase de instrução, Sócrates teve o primeiro embate com a juíza, que o alertou para essa situação. Para o tribunal, as declarações feitas na fase de inquérito “não valem nada” porque a prova “é produzida” em tribunal. No caso, este processo está a ser julgado. “Se disse que essas pessoas vêm cá, não é preciso ler depoimentos delas. Poupa tempo a todos”, disse a presidente do coletivo de juízes (composto ainda por Rita Seabra e Alexandra Pereira), ao que Sócrates a acusou de “ofensiva hostilidade”. Na parte da tarde, o tom aguerrido do antigo primeiro-ministro manteve-se e começou a tarde a falar de Ricardo Salgado e da relação que manteve com o ex-banqueiro, garantido que foi de mera “cordialidade” e que nunca foram amigos. Segundo Sócrates, desde que saiu do Governo “nunca mais” falou com o gestor, também arguido neste caso.Além da juíza-presidente, também um dos procuradores do MP foi um ‘alvo’ de Sócrates, que será esta quarta-feira, dia 9, questionado pelos procuradores sobre os factos da acusação.Quando o antigo primeiro-ministro se preparava para ler a transcrição de uma conversa telefónica entre Ricardo Salgado e ele próprio, José Sócrates foi interrompido por um dos procuradores. Visivelmente irritado, o principal arguido da Operação Marquês disse a Rui Real que se quisesse “falar”, devia pedir “a palavra à senhora juíza”, a quem pediu que trate “as duas partes por igual”. A isto, o magistrado disse a Susana Seca que não era “ele” (Sócrates) quem ditava as regras da audiência, o que só contribuiu - bastante - para que o arguido ficasse ainda mais exaltado. “Ele?! É ‘o senhor’”, retificou Sócrates.Mas o momento mais quente de todo o dia chegou quando a juíza Susana Seca repreendeu o também ex-líder do Partido Socialista.Após escalpelizar a OPA da Sonae à PT, qual o comportamento do Governo e as influências (ou não) exercidas pelo Grupo Espírito Santo na operação e a separação das redes de cobre a cabo, a juíza questiona qual o objetivo do Executivo com este processo (alegadamente, “garantir que a PT tinha concorrência”, fosse através da venda da PT Multimédia ou de um spin-off), ao que Sócrates respondeu de forma irónica: “Só agora é que percebeu, senhora juíza?”. Isto levou a juíza a repreender o antigo primeiro-ministro: “Não sei se o senhor fez um curso de gestão comportamental, mas não se diz que alguém não percebeu, sim se calhar foi o senhor que não se expressou bem. Aqui estamos todos ao mesmo nível cognitivo e fica já advertido quanto a comentários com esse teor e ironias dirigidas quer ao tribunal, quer ao MP. O senhor não vai continuar nesse tom.”E Sócrates tentou ainda refutar a acusação de corrupção que lhe é imputada com recurso à filosofia. “Para quem estudou”, a imputação destes crimes a Sócrates é “uma falácia lógica do princípio de petição”. Ou, “em termos mais inteligíveis”, isto significa que “as premissas justificam as conclusões e vice-versa”. Resumindo: “Se há fortuna escondida, há corrupção. É como dizer que a Bíblia diz a verdade porque foi escrita por Deus e que se Deus a escreveu, então a Bíblia diz a verdade.”A “golden share” e o Passos Coelho que foi “passivo”Durante a audição, José Sócrates apontou baterias a vários outros nomes, tanto arguidos como não, incluindo António Costa (arrolado como testemunha no processo), tal como fez há uma semana.Segundo o antigo primeiro-ministro, foi o atual presidente do Conselho Europeu quem lhe apresentou Manuel Pinho, antigo ministro da Economia. “Por isso é que chamei António Costa como testemunha. É altura de, uma vez por todas, o dr. António Costa vir explicar isto.”.Operação Marquês. Demora do caso "mostra quase com evidência como as leis são más".Antes, Sócrates trouxe o nome Ricardo Salgado para o seu depoimento, recusando sempre de forma perentória qualquer relação de amizade com o ex-banqueiro. “Não era meu amigo, nunca fui ao seu gabinete, não tinha o seu número de telefone, não sabia onde morava. A relação entre nós foi sempre de cordialidade”, garantiu, continuando: “Nunca estive com o senhor Ricardo Salgado a não ser no meu gabinete, e a seu pedido. Vi-me forçado, durante este processo, a explicar que tive dez reuniões com ele.”Perante o tribunal, lembrou ainda que o ex-administrador do Grupo Espírito Santo (GES) “apoiou e financiou” a candidatura de Cavaco Silva à Presidência da República. Certamente não vai dizer que o dr. Cavaco Silva é meu aliado político. “Desde o incidente da venda da Vivo [em que Salgado e Sócrates terão divergido] que as relações entre nós, entre o GES e o Governo eram muito más, de ostensiva hostilidade”, algo que terá ficado patente sobre o pedido de ajuda externa, de que Salgado seria a favor e Sócrates contra.Isto já depois de ter dito que o ex-banqueiro foi também contra a utilização da golden share do Estado na PT (que permitia ao Estado ter direito de veto mesmo sendo acionista minoritário) aquando da venda da participação na brasileira Vivo (a telefónica portuguesa tinha 50% do capital da Brasilcel, que controlava a empresa brasileira). “Na véspera da Assembleia-Geral de acionistas da PT, o doutor Henrique Granadeiro [chairman da PT e também arguido no processo] ligou-me, lembro-me que no final de um jogo de futebol frente a Espanha, a dizer que os acionistas da empresa tinham decidido vender aos espanhóis [da Telefónica, que ficou com os 50% da PT na Brasilcel]”, recordou José Sócrates, que passou em revista outro episódio. No dia da reunião dos acionistas, o Governo reuniu-se e foi exposta a situação e “o ministro das Finanças começou por dizer que, estando numa posição difícil no mercado, se compreende o posicionamento dos acionistas”.Na versão de Sócrates, nesse dia, Ricardo Salgado terá aparecido no local, e ficou “lá em baixo”. O então primeiro-ministro saiu da sala e demorou “minutos”, tendo informado o ex-banqueiro sobre a utilização da golden share, que pediu para “não usar”. “Agora anos depois, vêm acusar-me de estar conluiado com o dr. Ricardo Salgado, que terá vindo ter comigo para me pedir que utilizasse a golden share para votar contra a Vivo. Isso é completamente estapafúrdio”.Durante o dia que levou a depor perante o coletivo de juízes, José Sócrates trouxe ainda dois nomes para o tribunal: José Maria Ricciardi e Pedro Passos Coelho. O antigo primeiro-ministro (que sucedeu a Sócrates) teve “muita influência” na “desgraça da PT”. “Grande parte da criminalização do processo Marquês teve como consequência atribuir ao Governo do PS tudo o que aconteceu à PT. Isso não é verdade. A desgraça da PT tem muita influência do Governo do doutor Passos Coelho. Não foi o meu, foi o seguinte. Não direi que foi cúmplice, mas assistiu passivamente”, criticou. Já sobre Ricciardi, a quem chamou um “personagem” de que lhe “custa falar”, Sócrates atribuiu-lhe o “inuendo” que “insinua” que o primo de Ricciardi (Ricardo Salgado) e o principal arguido deste processo eram “próximos”..De Carlos Alexandre a José Sócrates: Quem é quem na teia do 'Processo Marquês'?.Breve história do Processo Marquês escrita no dia em que faz 10 anos