8% das mortes em Portugal já têm como causa fatores ambientais

A 15 de novembro de 2023, o mundo atingiu os 8 mil milhões de habitantes, mas desde 1970 que “o planeta Terra perdeu a capacidade de regeneração para sustentar a sua população.” Este é o alerta sistemático da Organização Mundial da Saúde (OMS) para relembrar os Estados-membros que as políticas de Saúde têm de ter em conta fatores ambientais. O primeiro apelo da OMS foi lançado há mais de duas décadas, quando recomendou aos países que tornassem a “emergência climática” uma “emergência de Saúde Pública” e uma “prioridade política”, mas até aqui o percurso de cada Estado tem sido diferente. Em relação a Portugal, o primeiro relatório Saúde Ambiente 2024, produzido pelo Observatório Português da Saúde e Ambiente (OPSA), que hoje é apresentado publicamente numa cerimónia na Fundação Gulbenkian, pelas 18.00 horas, revela que o país até “registou avanços” com “políticas robustas” nalgumas áreas, mas, depois, tem falhado na concretização, na monitorização e fiscalização dessas políticas.Mas não só. No que toca à Saúde e Ambiente o relatório destaca mesmo que “falta informação” e “literacia” à “população em geral” e aos próprios “profissionais dos serviços de saúde”, embora estudos realizados recentemente por autoridades de saúde indiquem que mais de 50% da população portuguesa se manifesta preocupada com o impacto dos fatores ambientais na saúde.“Apesar das evidências serem inegáveis, as políticas de saúde em Portugal continuam quase totalmente divorciadas destas questões, os mecanismos de monitorização dos fatores ambientais determinantes da saúde são quase inexistentes, as estruturas de saúde não estão preparadas para prevenir ou reagir atempadamente a fenómenos extremos de origem climática ou ao surgimento de uma nova pandemia, os profissionais de saúde não recebem formação específica sobre os efeitos do ambiente na saúde e tanto a legislação em vigor como a prática dos serviços de saúde descuram a sua pegada ambiental, contribuindo assim para as mortes e para as doenças que tem como missão combater”, alerta o documento.O estado das coisas é inegável e, segundo os dados da OMS, partilhados neste documento, “8% das mortes em Portugal e 4% do total de anos perdidos por incapacidade têm origem na poluição do ar, temperaturas extremas e noutros fatores ambientais”.O relatório do OPSA classifica o retrato como “preocupante”, sublinhando que o impacto dos “aspetos ambientais na saúde humana está a aumentar de forma cada vez mais acentuada, em consequência da aceleração das alterações climáticas, do aumento da poluição e da perda de biodiversidade”.Os especialistas que participaram na elaboração do documento relembram que “as alterações climáticas estão a suceder ao ritmo dos cenários mais pessimistas”, confirmando: “O ano de 2024 foi o mais quente alguma vez registado”, mesmo assim “é possível que tenha sido o ano mais fresco do resto das nossas vidas”.Em relação a 2024, e globalmente, o documento indica terem sido identificados “219 fenómenos extremos”. Um ano em que “as alterações climáticas acrescentaram, em média, 41 dias adicionais de calor perigoso, que ameaçaram a saúde das pessoas”. Em Portugal, foram registados 20 dias de calor perigoso, com “duas ondas de calor entre 23 e 28 de julho e entre 15 e 21 de agosto”.Outra consequência das alterações climáticas são as catástrofes ambientais e o país tem sido visado também, particularmente com incêndios. “Entre 2011 e 2023 arderam 2 948 578 hectares, cerca de 33% do território continental”, cita o documento. Mas além do território perdido, os incêndios provocaram ainda “mortalidade direta, causada pela exposição a PM2.5 (poluição por partículas finas), estimando-se que os incêndios de 2017 tenham causado um total de 189 mortes, correspondendo a 3092 anos de vida perdidos (YLL), com um custo de 360 milhões de euros”.Este relatório do OPSA, organismo fundado em 2022, no âmbito do Conselho Português da Saúde e do Ambiente (CPSA), é o primeiro de muitos outros que o observatório pretende publicar. O objetivo, segundo o presidente do CPSA, Luís Campos, é que estes sejam uma “ferramenta de apoio a decisões mais informadas, ajudando todos aqueles que estão empenhados em assegurar um futuro mais limpo, saudável e sustentável para nós e para as gerações futuras”.Luís Campos explica ainda que “a criação do observatório se deveu à constatação da enorme carência de informação que permita monitorizar, avaliar e recomendar práticas sobre a inter-relação entre saúde e ambiente em Portugal”.Avanços e desafios nas políticas e na execuçãoNeste sentido, o documento enumera o que Portugal já tem e já faz e onde ainda está longe de atingir o que deve ser feito. E nesta avaliação é considerado que, nas últimas duas décadas, Portugal registou avanços na qualidade do ar e da água, na transição para as energias renováveis e na urbanização sustentável”. Os desafios continuam a estar nas “alterações climáticas, no aumento do tráfego rodoviário e poluição do ar, da poluição emergente e das desigualdades socioeconómicas, as quais continuam a exigir atenção e a adoção de políticas mais eficazes”, lê-se no documento, que destaca também que “a colaboração entre o governo, as comunidades e organizações de saúde será fundamental para garantir um ambiente saudável e equitativo para todos”. O relatório, que pretende ser também um alerta a toda a sociedade portuguesa, refere que “a monitorização da evolução das Determinantes Ambientais da Saúde em todo o território nacional é muito escassa, sendo crucial a existência de portais de dados abertos e transparentes para conhecer os desafios presentes e futuros e para desenhar as políticas nacionais e locais de promoção do bem-estar e da saúde ambiental da população”, repetindo o apelo: “A emergência climática tem de ser considerada uma emergência de saúde pública, no entanto, apesar da intervenção do CPSA no período de discussão pública do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC 2030), este ignorou considerações sobre o domínio da Saúde-Ambiente.” Mas tal não acontece só em Portugal. O OPSA refere que “a nível internacional, as conferências das partes (COP) representam um esforço global para enfrentar desafios ambientais, mas nem todas as determinantes ambientais da saúde recebem a devida atenção”. Por exemplo, “a COP29 foca-se nas alterações climáticas, uma das determinantes ambientais da saúde, e existe uma COP para a Biodiversidade e outra para a desertificação, mas não existem COP para todas as determinantes ambientais da Saúde”, considerando que, mais uma vez, a COP29, “ficou muito aquém dos resultados desejados”.Em relação ao nosso país, o documento enaltece a “implementação de políticas robustas e de regulamentações direcionadas para a redução ou controlo de poluentes industriais, agrícolas e atmosféricos, em linha com as políticas europeias”, mas, destaca, por outro lado, que “a fiscalização da implementação dessas políticas necessitam de melhoria, especialmente no que diz respeito ao controlo de indústrias e explorações agrícolas de pequena dimensão”, sendo premente “fortalecer o diálogo e colaboração entre o governo, as indústrias e a sociedade civil para uma abordagem integrada na identificação e redução da poluição química, obter dados longitudinais de exposição da população portuguesa a compostos químicos perigosos através de um Programa Nacional de Biomonitorização Humana e educar e sensibilizar a população e os setores produtivos sobre os riscos da poluição química com vista à implementação de práticas mais sustentáveis e responsáveis, no sentido de incrementar a eficácia das políticas públicas”.Portugal tem excelente qualidade na água da torneiraO mesmo documento indica que Portugal é dos países que “tem uma excelente qualidade de água da torneira (ERSAR)”, contudo, ressalva, “a gestão dos recursos hídricos e o seu impacto na Saúde não se esgotam na água que é consumida nos edifícios”. E explica: “As alterações climáticas e a globalização têm vindo a provocar efeitos para os quais Portugal não está totalmente desperto e preparado. Cada vez mais, de forma a alinhar com as políticas europeias e mundiais que estão em curso, a qualidade da água acaba por ser um assunto que requer um modelo de governança mais completo, que deve envolver o Ambiente (APA), a Saúde (DGS) e as entidades gestoras da água, além de outros potenciais stakeholders, de forma a permitir uma coordenação entre diferentes níveis governamentais e a implementação de medidas em todas as regiões de forma equitativa.”Também nesta área, o alerta é repetido: “A falta de dados centralizados, abrangentes e atualizados sobre os impactos dos indicadores de qualidade da água na saúde também limita a eficácia das políticas.”Por outro lado, é destacado que o impacto dos fatores ambientais, que advém das temperaturas extremas, incêndios, inundações, secas, etc., não incide só de forma direta na Saúde da população, mas também nas situações socioeconómicas que expõem os mais vulneráveis, como crianças, idosos, pessoas com multimorbilidade, sem-abrigo e populações mais pobres.O documento cita o projeto Saúdes, realizado em Portugal, que “conclui que 10% da população exibe elevado grau de ‘ansiedade climática’ ou ecoansiedade, sem que a mesma se relacione com uma maior exposição ao risco ambiental”. Ou seja, especifica, “num inquérito publicado em 2021, 97% dos jovens em Portugal declaram estar preocupados com o futuro por causa das alterações climáticas, 80% classifica o futuro como assustador e 37% está hesitante em ter filhos por este motivo”.Por isto, o OPSA recomenda que se “desenvolvam programas de educação para profissionais de saúde para reconhecer e gerir os impactos climáticos na saúde dos idosos, com foco em doenças crónicas exacerbadas por fatores ambientais”.Doenças relacionadas com poluição do ar e da água e plásticos No seu relatório, o OPSA destaca que “a poluição do ar, da água, dos plásticos, de pesticidas e de outros contaminantes, é atualmente o maior fator de risco para a mortalidade global”. Aliás, em 2024, “foi encontrada uma associação entre nanoplásticos e aterosclerose: 58% dos doentes com aterosclerose têm nanoplásticos nas placas de ateroma e estes doentes têm um risco de AVC, EAM ou morte súbita 2,5 vezes maior”.A relação entre a poluição do ar e as doenças respiratórias também já está amplamente documentada e, de acordo com estudos internacionais, que avaliaram o impacto à escala global e regional, “estima-se que o Dióxido de Nitrogénio seja responsável por cerca de 2280 novos casos de asma por ano em Portugal e que haja entre 12 800 e 32 000 admissões na Urgência atribuíveis ao ozono e entre 6400 e 14 400 devido às partículas com menos de 2,5 micrómetros de diâmetro (PM2.5).Outro estudo recente, realizado na Área Metropolitana de Lisboa, citado pelo OPSA, mostra haver “uma associação entre o aumento dos níveis de poluentes atmosféricos (CO e O3) e o número de admissões hospitalares de emergência por agudização da Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica”. E, mais uma vez, o observatório recomenda “a implementação de políticas fortes de Saúde Pública para reduzir a poluição do ar”. Por outro lado, o documento regista que “Portugal fez progressos importantes na vigilância clínica e laboratorial dos casos de doenças relacionadas com a qualidade da água, mas a vigilância ambiental destas ainda é incipiente na maioria dos casos”. E dá exemplos: “Em 2023, observou-se um aumento de infeções, em relação a 2022, provocadas pelo Campylobacter (+189 casos) e doença dos legionários (+116 casos)”. No entanto, “Portugal não faz a monitorização das infeções pelo Norovírus, que é já feita a nível de outros países da Europa, por considerar não ser de comunicação obrigatória”.Impacto ambiental e os serviços de SaúdeUm dos desafios identificados pelo OPSA é quantificar o impacto ambiental causado pelos próprios serviços de saúde. “Portugal enfrenta desafios na implementação de políticas climáticas e de sustentabilidade no setor da saúde, especialmente nos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Atualmente, são escassos ou inexistentes os dados sobre o impacto ambiental dos CSP, como o consumo energético, as emissões de Gases de Efeito de Estufa (GEE) e a gestão de resíduos”.No texto, é ainda destacado o facto de existir “um enorme desconhecimento da contribuição dos vários setores para o impacto ambiental do sistema de saúde, incluindo de serviços como os laboratórios de patologia clínica”. E critica o facto de só agora “as sociedades científicas, as ordens profissionais, e outras organizações começarem a inscrever estes temas nas suas preocupações e a criar grupos de trabalho para realizar esta avaliação e elaborar recomendações”.Uma lacuna que, segundo o OPSA, “impede uma visão clara do desempenho ambiental dos Cuidados de Saúde Primários e limita a capacidade de adotar medidas corretivas eficazes e de acompanhar o progresso em direção às metas climáticas nacionais e internacionais. A ausência de indicadores específicos dificulta também o desenvolvimento de práticas sustentáveis adaptadas à realidade dos CSP, onde é fundamental equilibrar a acessibilidade dos cuidados com a sustentabilidade ambiental”.No final, o relatório lembra que “a exposição humana prolongada a produtos químicos provenientes do ambiente, ou veiculados pelos alimentos que ingerimos ou a água que bebemos e pelos variados produtos de consumo que utilizamos (p. ex. medicamentos, têxteis, artigos de higiene ou limpeza) poderá ter um impacto negativo na saúde, desde efeitos agudos até efeitos a longo prazo”, defendendo a adoção de “medidas e políticas públicas mais fortes e preventivas”. Das alterações climáticas à LiteraciaAlterações climáticas. São causadas pela emissão de gases com efeito de estufa, que duplicaram nos últimos 50 anos, mas também pela desflorestação crescente, que reduz a capacidade de captura de CO₂ da atmosfera. Em 2023, foram desflorestados no mundo 37.000 km², o equivalente a 10 campos de futebol por minuto.Degradação dos ecossistemas. Estima-se que 75% da superfície terrestre sem gelo já tenha sido significativamente alterada e que tenham sido perdidas mais de 85% das zonas húmidas. Globalmente, nove em cada dez pessoas respiram ar com níveis elevados de poluentes, excedendo os limites das diretrizes OMS.Plástico. A quantidade de plástico já produzida ultrapassa uma tonelada por habitante do planeta e estima-se que, se não forem tomadas medidas, em 2050 haverá, em peso, mais plástico nos oceanos do que peixes. Em mais de 20% dos rios e lagos da Europa foram detetados níveis preocupantes de pesticidas e cerca de 21% dos carcinógenos associados ao cancro da mama foram encontrados em materiais que estão em contacto com os alimentos que consumimos.Literacia. A consciencialização pública para o impacto dos fatores ambientais na Saúde “é baixa”, o que reflete também a adoção reduzida de comportamentos ecológicos. O OPSA defende tal “requer o desenvolvimento de programas orientados à promoção da consciência social, o treino e a prevenção necessários à criação da resiliência futura”.

8% das mortes em Portugal já têm como causa fatores ambientais

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