O dia tristonho numa altura em que o ar já devia cheirar a verão impediu-nos de estrear as maravilhas da esplanada sobre o Tejo do Monte Mar de Lisboa mas a comida e o ambiente desta extensão do histórico restaurante sobejaram para animar o almoço. A receber-me em casa, Maria Pinto Coelho, gerente dos já três Monte Mar, nem me deixa pensar em pagar a conta. Seleciona uma série de entradas - as deliciosas torradinhas com manteiga, queijo de Azeitão, presunto, paté de sapateira - para compensar a falta de sol e pegamos de conversa com simplicidade, apesar de nos estarmos a conhecer. Prática e direta, de gargalhada fácil, vai-me contando um percurso em que quase tudo aconteceu por acaso - temperado com a sorte de ter nascido na família que detém o grupo Onyria, que acumula os restaurantes com os hotéis Quinta da Marinha e Palmares (Algarve)..Mais velha de seis irmãos, todos habituados a trabalhar desde cedo - mesmo em miúdos, faziam pequenas tarefas como regar o campo de golfe para ganhar dinheiro para as suas coisas, princípio que também passou aos seus cinco filhos -, e sem grande paixão pelos livros, decidiu tentar a sua sorte na escola de hotelaria do Porto, onde tinha amigos. "Era um curso muito prático e foi fantástico, adorei aquilo, apesar de ter sido duro, eu era uma miúda de uma família grande da Quinta da Marinha e de repente estava a aterrar no meio dos cozinheiros, todos aos gritos e aos palavrões, a exigir imenso e a trabalhar até à exaustão." Passou seis meses a servir à mesa e outros seis na cozinha e nunca mais quis outra coisa. "Percebi que era por ali que queria levar a minha vida.".Uma boa ideia para resolver um problema no golfe que o pai estava a explorar na Penha Longa valeu-lhe um lugar no restaurante do clube aos 21 anos - já então tinha passado vários verões a servir à mesa no restaurante do tio, no Algarve, e um ano no Novotel - e desde então nunca mais parou. Nem sequer quando teve os filhos, hoje entre os 19 e os 11 anos: "Como sempre correu tudo bem, 15 dias depois de os miúdos nascerem eu já estava a trabalhar.".Essa é, assume, uma das desvantagens de se trabalhar em família - além de Maria, outros três irmãos estão nas empresas do pai -, nunca se desliga verdadeiramente, as conversas inevitavelmente vão dar ao negócio. Mas o que tem de bom suplanta largamente as chatices..Vencer o preconceito.Enquanto nos entretemos com as saborosas entradas e o vinho branco da casa, conta-me que teve, apesar de tudo, dificuldades para chegar onde hoje está. Estava ainda no golfe, com o filho mais velho com ano e meio e a segunda acabada de nascer, quando disse ao pai que precisava de abrandar o ritmo e ficou decidido que passaria em part-time para o Monte Mar de Cascais (então o único). O substituto nunca chegou e gerir um restaurante em part-time não era pera doce, pelo que a carga de trabalho até aumentou. Mas o que foi realmente difícil foi convencer equipa e clientes de que tinha talento e qualificações para o cargo.."O Monte Mar sempre foi um restaurante muito tradicional e na altura era gerido quase como a tropa, era só homens e tinham hábitos muito enraizados. Então entro eu, uma miúda, e imediatamente o chefe de sala e o subchefe demitem-se." Não admitiam estar às ordens de uma mulher e ainda menos com idade para ser filha deles. Mas se o pai não vacilou na decisão, também não seria ela a desistir. "Puxei o Carlos Rocha, que na altura era um dos empregados mais novos ali, para chefe de sala e a mulher, Laura, para chefe de cozinha, fizemos uma equipa e até hoje são eles o meu braço direito e esquerdo em Cascais. Foi uma experiência ótima, no fim de contas.".Conseguiu vencer o preconceito dentro de casa, mas admite que ainda hoje ele persiste no que aos clientes diz respeito. "Não consigo ter mulheres a servir às mesas. Já tentei mais de uma vez e simplesmente não funciona, acabam por sair. Há dois anos decidi inovar e pôr uma relações-públicas à porta, para os receber, e os clientes tradicionais odeiam. Chegam a entrar pela porta do lado só para não terem de falar com ela - estão habituados a um certo ritual, ligam diretamente para o empregado que estão habituados a que os sirva, dizem o que querem e pronto. Simplesmente não lhes faz sentido ter alguém a perguntar-lhes o nome e a indicar onde se vão sentar.".Hoje continua a comer no restaurante de Cascais pelo menos uma vez por semana, mas este já não lhe exige grande atenção. A equipa que montou trata do assunto. Exceto das compras, que são sua responsabilidade - para todo o grupo, aliás. "É muito giro porque tenho de escolher com excelente qualidade e ao melhor preço uma variedade incrível de coisas. Desde peças para máquinas e areia para o golfe da Quinta da Marinha até aos produtos para as cozinhas dos restaurantes e dos hotéis, é tudo diferente. O melão ou a cebola que são ideais para o Monte Mar não são iguais aos que queremos usar nos hotéis.".Pouca gente para cortar batatas.O trabalho não a assusta, mas há aspetos complicados no negócio. E um dos mais difíceis é conseguir encontrar quem queira trabalhar nele. "É assustadora a falta de mão-de-obra que existe na hotelaria. Já tivemos de recusar boas oportunidades por isso. Ainda agora, no Algarve, tínhamos uma e deixámos cair porque não há gente para trabalhar." Não é questão de dinheiro ou sequer de qualificação, é mesmo falta de vontade, garante. Esta não é uma vida fácil e muitos jovens hoje não estão para trabalhar precisamente onde e quando os outros estão a divertir-se. E, mesmo entre os que seguem este caminho, a expectativa nem sempre está ajustada à realidade. "Não há pessoas para cortar batatas, só para serem chefs.".Na área de restauração do grupo, trabalham já mais de cem pessoas. Só aqui, no Monte Mar Lisboa, são 40. "É o departamento com mais pessoas e o meu trabalho aqui também passa um pouco pela psicologia, ouvir os desabafos... as pessoas precisam de falar e é importante ter essa disponibilidade para os ouvir.".Chega à mesa o crepe de lagosta que Maria encomendou só com feijão verde e as minhas vieiras com gambas grelhadas absolutamente no ponto. O irmão Luís vem à mesa cumprimentar-nos - acaba de chegar para uma reunião de preparação para o Rock in Rio, onde o Monte Mar estará representado a convite do Mercado da Ribeira, onde também tem um espaço. "A Time Out convidou-nos a participar, é um conceito diferente, uma espécie de minimercado fechado onde vão estar 15 restaurantes e que terá 300 lugares sentados. Nós vamos montar uma coisa mais chique, com ostras e espumante e outras comidas que as pessoas não estão habituadas a ter num festival", explica-me..Tivesse a primavera começado na devida altura e também aqui, no antigo Armazém F, a esplanada garantiria uns fins de tarde de luxo com o Lisbon Oyster Bar, que, dois anos depois de abrir casa em Lisboa, o Monte Mar tem pronto em cima do Tejo. O sunset é, de resto, uma aposta praticamente ganha - ali vão sobretudo turistas e quando o tempo está bom é frequente até haver filas para jantar..Pergunto-lhe se, depois do Cais do Sodré e do Mercado, há perspetivas de novas aberturas - Campo de Ourique, por exemplo. Maria assume que estão sempre à procura de oportunidades - "porque há muito negócio que não chega a Cascais" -, mas que preferem esperar pelo momento e sítio certo. Foi assim que aconteceu aqui, primeiro com um pé cauteloso em Lisboa, quando surgiu a oportunidade de um espaço na Ribeira, depois o restaurante a sério. "Em Cascais temos mar, aqui rio, mas é também um sítio único, a carta é a mesmíssima e o espaço - que manteve a traça industrial de origem - fantástico.".Mãe de campeãs.Hoje com 44 anos, Maria Pinto Coelho assume-se, acima de tudo, como uma mulher de família - as férias são sempre momentos de juntar todos, filhos, pais, irmãos, sobrinhos, seja na semana que sempre passam no Algarve ou na de neve, em Val Thorens. "São momentos perfeitos e que nos unem imenso, e isso é mérito dos meus pais.".Orgulha-se de ter o filho mais velho já em Gestão, e as quatro filhas a fazer um percurso notável. "A Teresa [Padrela] é campeã de bodyboard da Europa! Aliás, eu meti as miúdas na Boogie Chics e de repente estava cheia de campeãs em casa, uma em oitavo lugar no ranking mundial, outra campeã de sub-14...".Porque também ela gosta de praia e estar com os miúdos é das coisas que mais gozo lhe dá, há tempos fez-lhes uma surpresa: quando estavam de férias com o pai, teve 15 dias de aulas intensivas e surpreendeu-os quando se meteu com eles de prancha dentro de água. "É das melhores coisas que há, estarmos ali os seis nas ondas, a rir-nos uns com os outros." Em casa, nunca teve Playstation ou coisa semelhante - "quando queriam brincar, empurrava-os sempre para a rua" - e acredita em dar-lhes espaço e tempo para aquilo que realmente querem e gostam de fazer..A paixão da corrida.Quanto a ela, tem o sonho de um dia ir de férias um mês para o fim do mundo, sozinha. Mas até lá vai cumprindo alguns outros, mais fáceis de realizar. "Este ano, depois de me inscrever seis vezes, vou finalmente fazer a Maratona de Nova Iorque!" Descobriu a paixão da corrida já com os filhos todos nascidos e desenvolveu-a também em jeito de homenagem ao primo Bernardo, a quem foi diagnosticada esclerose lateral amiotrófica há uma década. "Fiquei viciada em corrida, entrava em competição com colegas de trabalho e tudo, e penso sempre na sorte que tenho por poder correr", conta..Foi esse lado que a levou a descobrir outro talento. Primeiro, ao decidir fazer um calendário para se motivar a correr - que de repente e sem saber muito bem como estava a vender que nem pãezinhos quentes -, depois ao criar um grupo de challengers no Facebook, com desafios criados por ela que partilhava com quem gostasse de correr. Em menos de nada, tinha 17 mil pessoas a seguir o grupo, muitos deles brasileiros que partilhavam as suas histórias. "Senti que estava tocar as vidas de pessoas que nem conhecia e isso foi surpreendente. E fantástico.".A corrida também a levou a criar um site de roupa e acessórios de running cujas receitas tiveram um fim solidário: ajudar as crianças do Quénia a viver melhor. "A ideia de dar um objetivo solidário à Run Is a Gift [que tem a representação dos flipbelts, entre outros artigos], que estivesse localizado a maior distância, foi do meu irmão João", conta. A razão? As empresas do grupo Onyria têm por tradição ajudar a comunidade onde estão inseridas - patrocinam equipas de futebol de miúdos, por exemplo, e todos os anos organizam uma corrida solidária que termina com uma prova de estafeta em que os funcionários do grupo vão da Quinta da Marinha a Palmares e as receitas são doadas a uma associação..Os cafés são a oportunidade perfeita para lhe perguntar o que ainda se vê a fazer. Maria Pinto Coelho não sabe realmente se ambiciona algo diferente - talvez aprender a tocar um instrumento musical... De resto, tem uma carreira que adora, uma família grande e próxima, está plenamente realizada. Mesmo porque o pai, que continua à frente de todos os negócios, não se cansa de ter ideias e projetos para pôr a andar. "Sempre que ele viaja, para nós é uma doença, porque vem cheio de ideias de coisas novas para fazer", ri-se..Quanto aos seus próprios filhos, faz questão de dar continuidade aos valores e tradições de família - "eles trabalham para terem as suas coisas, fazem serviços de babysitting, por exemplo, organizam-se. As miúdas, aquilo que ganham nos campeonatos é o que investem para financiar outras provas onde queiram ir". De resto, só quer dar-lhes tempo para decidirem o que vão querer fazer. E que, no que ao estudante de Gestão diz respeito, talvez passe por seguir os passos da mãe e do avô na hotelaria..Monte Mar Lisboa .Pão torrado com manteiga.Casca de sapateira.Presunto.Vinho branco.Água.Crepe de lagosta com feijão verde.Vieiras e gambas grelhadas.2 cafés