António Costa quer dar às secretas acesso a dados dos telemóveis

Reforço dos poderes dos serviços de informações começa a fazer caminho no governo. Constituição é o principal travão
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O agravamento do fenómeno do terrorismo na Europa - com os atentados de Paris e mais recentemente o de Bruxelas - fez emergir em Portugal um velho debate sobre o direito (que não existe) de os serviços de informações poderem fazer escutas telefónicas.

Não querendo chegar a tal ponto, os socialistas começam, no entanto, a ensaiar discussões internas que reforçam substancialmente os poderes das secretas portuguesas na prevenção e combate do terrorismo.

A ideia é permitir aos espiões portugueses que tenham acesso não ao conteúdo das comunicações entre pessoas mas acesso aos metadados (por exemplo, às faturações detalhadas dos telemóveis dos suspeitos para que se perceba a quem telefonaram, quando e durante quanto tempo).

Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiro e formalmente o número dois do governo de António Costa, verbalizou-o recentemente, numa entrevista à Rádio Renascença: "O facto de os serviços de informação não poderem aceder aos metadados é uma limitação à capacidade desses serviços na frente preventiva de eventos como ataques terroristas."

Há, porém, um problema - e não é pequeno: a Constituição da República e o seu artigo 34 ("inviolabilidade do domicílio e da correspondência"). Lê-se no respetivo n.º 4 que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal". Dito de outra forma, para que se realizem escutas telefónicas são necessárias duas "formalidades": que haja um inquérito criminal e que seja um juiz a autorizar essa escuta.

O que agora os socialistas querem, segundo o MNE, levar à prática foi tentado na última legislatura, através de uma proposta de lei do governo assinada pelo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e pelo ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, Luís Marques Guedes.

A proposta entrou no Parlamento a 11 junho de 2015 e seria sujeita a votação final no plenário a 22 de julho do mesmo ano, sendo aprovada com os votos favoráveis do PSD, do CDS e do PS, e os votos contra do PCP, do Bloco e do PEV e ainda do deputado socialista Pedro Delgado Alves (que hoje integra a direção da bancada).

Previa a possibilidade de "oficiais de informações do SIS [a secreta interna] e do SIED [secreta externa]" acederem "a informação bancária, a informação fiscal, a dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou o utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, data, hora, duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização, sempre que sejam necessários, adequados e proporcionais, numa sociedade democrática, para o cumprimento das atribuições legais dos serviços de informações, mediante a autorização obrigatória", algo que passaria previamente por uma "autorização obrigatória" de uma comissão formada por três juízes do Supremo Tribunal de Justiça.

A lei foi aprovada mas a seguir o Presidente da República pediu a sua fiscalização preventiva de constitucionalidade (embora dizendo que concordava com a intenção do diploma). E o Tribunal Constitucional foi taxativo: chumbou a lei, com apenas um voto vencido (de um juiz, Teles Pereira, que de 2001 a 2003 tinha sido chefe do SIS).

Deputados do PS ontem ouvidos pelo DN sublinhavam precisamente a dificuldade de fazer uma lei destas de forma a passar no crivo constitucional. O TC disse basicamente que aceder a dados de tráfego de um telemóvel tem valor igual a aceder aos conteúdos das conversas. E sinalizou que, dentro da Constituição em vigor, as "secretas" nada poderão fazer fora de um processo criminal tutelado por um magistrado judicial. Ora é da natureza dos serviços de informações atuarem fora do enquadramento das imposições do Código de Processo Penal.

Para já, ao que o DN soube, não está decidido se a iniciativa legislativa avançará pelo lado do governo ou pelo lado do Parlamento. Augusto Santos Silva remeteu para a Assembleia da República, mas no grupo parlamentar do PS a vontade é mínima, para não dizer completamente inexistente. Um diploma tenderá também a criar problema dentro da plataforma política BE+PCP+PEV que apoia o governo. A esquerda parlamentar é notoriamente avessa a tudo o que lhe pareça securitária - mesmo se justificado com o terrorismo.

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