Há mais portugueses a terem problemas com jogo a dinheiro

Novos formatos online ou jogos sociais fazem aumentar o número de doentes. Serviço Nacional de Saúde tratou 135 jogadores em 2016
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Tudo começou com o póquer online. "Uma das melhores memórias que guardo desse tempo é de conseguir transformar um depósito inicial de 50 euros em 20 mil euros", conta Álvaro, licenciado, hoje na casa dos 30 anos. Corria o ano de 2009 e dava-se o boom do jogo online a dinheiro. Foi jogando, muito, mas nunca deu conta do problema. Foi quando já trabalhava e surgiu o Placard que tudo se desmoronou. "Foi o início da espiral descendente de adição ao jogo. Comecei por jogar valores pequenos e quando dei por mim já fazia apostas de 100, 200 euros todos os dias. Como é óbvio o salário que eu tinha não aguentava. Comecei a roubar dinheiro no trabalho, simplesmente para jogar. Esta situação ainda durou alguns meses até ser descoberto e despedido."

Apesar de serem minoritárias, entre o universo de portugueses que habitualmente jogam - o jogo é uma atividade lúdica que pode ser praticada de forma responsável -, situações como a vivida por Álvaro aumentaram em Portugal nos últimos anos. "Os dados mais recentes de natureza epidemiológica no nosso país sinalizam um aumento da prevalência de indivíduos com perturbação aditiva por jogo", disse ao DN o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), organismo do SNS que, desde 2011, dá resposta a pessoas com estes problemas através dos centros de respostas integradas. Mas ainda dá os primeiros passos. No final de 2016 o número de doentes a serem seguidos nos serviços públicos era de 135. Nos serviços privados, o número será maior, mas não está contabilizado no IV Inquérito Nacional de Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral - Portugal 2016-17, que resulta da parceria da Universidade Nova com o SICAD.

Este inquérito aponta para um aumento e diz que, comparativamente ao último inquérito de 2012, "a prevalência de jogadores com alguns problemas ou com provável perturbação de jogo subiu de 0,3% para 1,2% e de 0,3% para 0,6%". Não refere a quantidade de pessoas a que correspondem as taxas.

Da autoexclusão ao tratamento

Estes dados incluem todo o tipo de jogo, desde casinos, bingos, online e jogos sociais como o Placard e a Raspadinha. "As formas e os contextos de jogo são múltiplos e diversificados, gradativamente mais apelativos. São referidos casos de indivíduos com utilização problemática deste tipo de jogos, em diferentes níveis etários", esclarece a Divisão de Intervenção Terapêutica do SICAD. Em Portugal, à semelhança da tendência internacional, as situações de "perturbação de jogo são mais prevalentes nos homens entre os 35 e os 44 anos".

Álvaro é mais novo e hoje, após pedir a autoexclusão de vários jogos, está em tratamento. "Tomei conhecimento também das reuniões dos Jogadores Anónimos, as quais frequento regularmente." Sabe que tem uma doença mental, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e que, dizem os especialistas e o SICAD, ainda tem escassas respostas terapêuticas. "Terei de lutar com ela toda a minha vida. A minha recuperação está a correr bem, mas às vezes tenho recaídas", admite.

O número de apostadores que pediram para ser impedidos de jogar é revelador da consciência do problema: desde que foi emitida, a 25 de maio de 2016, a primeira licença de jogos online, já 13,3 mil jogadores pediram autoexclusão, numa média de cerca de mil jogadores por mês.

Henrique Lopes, investigador da Unidade de Saúde Pública da Universidade Católica, realizou em 2009 o primeiro estudo epidemiológico sobre o jogo em Portugal. "Na altura o número de dependentes foi calculado em 16 mil. Certamente aumentou, o online é hoje outra realidade, mais massificada, e não havia a Raspadinha como jogo a sério. Com estes dois efeitos haverá seguramente mais", disse ao DN.

No mundo existirão 70 milhões de dependentes. O jogo na internet gerou um novo perfil: jogadores mais jovens, com mais mulheres, nível cultural mais elevado. "No jogo mais clássico, a adição demora uma década em média. No online, o ritmo é intenso, muito mais rápido", explica Henrique Lopes. A diversidade de oferta atual é um mundo novo, ainda por estudar. "As novas plataformas trazem sempre riscos. Veja-se que o Código da Estrada só foi criado muitas décadas após surgir o automóvel. Há muito estudo a fazer", exemplifica.

Preocupação com adolescentes

Mais preocupante é que se crie o hábito em crianças. "Há muita oferta na internet de jogos gratuitos, até de roletas, para crianças. A aprendizagem fica lá. São ganhadores com facilidade nesses jogos virtuais e podem criar a ideia de que também acontecerá no jogo a dinheiro", critica Henrique Lopes.

O SICAD refere que os últimos dados permitem "antecipar potenciais situações de morbilidade em jovens no domínio dos CAD [comportamentos aditivos e dependências] sem substância, o que é preocupante". Baseia-se no ESPAD, um inquérito em meio escolar, nos países europeus, respeitante aos comportamentos de utilização de substâncias psicoativas e de jogo em jovens de 15 e 16 anos. "Os resultados do ESPAD 2015 denunciam que, no plano português (similar à média europeia), 20% dos jovens utilizam a internet para práticas de jogo de forma regular. O jogo online parece ser muito mais comum nos rapazes (39%) do que nas raparigas (5%)."

Como responder a estas tendências? Não é simples, mas a prevenção e a informação são sempre formas. "Em Portugal, a dependência do jogo é escondida. Há muito preconceito, falta de atenção familiar, escassez de estruturas de saúde a dedicarem-se ao problema", aponta o investigador da Unidade de Saúde Pública.

Teresa, jogadora compulsiva durante 20 anos, em abstinência desde 2011 (ver texto ao lado), realça que "há um estigma social maior sobre um jogador, pelo facto de não haver uma substância na adição como o álcool ou a droga". Certo é que o jogo compulsivo causa graves distúrbios sociais, com altas taxas de suicídios e desfalques em locais de trabalho.

A nível de tratamento, a formação de técnicos especializados no SICAD é recente. "Estamos décadas atrasados, mas o caminho está a ser trilhado agora", considera Henrique Lopes. Pedro Hubert, psicólogo e fundador do Instituto de Apoio ao Jogador, uma entidade privada pioneira no tratamento, diz igualmente que "não há muita oferta. O SICAD está a dar os primeiros passos, está mais vocacionado para o tratamento do abuso de substâncias, mas vai fazendo o que pode", diz o psicólogo.

O jogo faz parte da sociedade, diz Henrique Lopes, e "é ingenuidade pensar que se pode proibir o jogo, as pessoas iam começar a jogar de forma ilegal". Daí os Estados assumirem os grandes jogos, com as receitas a irem para fins sociais. Em Portugal é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem disponível o programa Jogo Responsável. Os utilizadores têm ao dispor uma linha em que são fornecidas medidas preventivas e de apoio a casos de jogo excessivo. Os jogadores podem definir os montantes máximos que podem apostar e têm informação sobre as recomendações para um jogo saudável e sobre quais são os sinais de risco de jogo problemático.

Henrique Lopes aponta uma característica desta adição que evidencia a dificuldade em resolvê-la. "É a dependência com maior taxa de recaída."

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