12 maio 2018 às 00h50

"Gostava que Marcelo viesse ver uma corrida ao Campo Pequeno"

Almoço com Rui Fernandes, cavaleiro tauromáquico

Joana Petiz

Não podia haver sítio mais emblemático para nos encontrarmos do que o Campo Pequeno, cuja temporada deste ano inaugurou ao lado de João Moura Jr. e João Ribeiro Telles. Foi ali que Rui Fernandes tomou alternativa há 20 anos, uma data que há de comemorar com a devida homenagem na corrida marcada para 6 de setembro. "Estes 20 anos passaram num ai", desabafa, os trejeitos do Alentejo onde treina com alguma frequência a cortar as frases de um cavaleiro nascido e criado na Costa de Caparica, onde ainda vive com a mulher e a filha de 4 anos, na quinta onde cria e cuida dos seus cavalos. Diz-me que, não sendo aquele meio taurino por excelência, há por ali tradição de sobra e "muita afición ao cavalo e às corridas", e apresenta como evidências Paulo Caetano, Vítor Ribeiro e José João Zoio, todos ali dos arredores. Quanto a ele, é o primeiro da família a dedicar-se a esta profissão - o que ainda angustia os pais, apesar do apoio que sempre lhe deram; ele próprio admite que não gostaria que a filha se virasse para os toiros, ainda que adorasse vê-la ligada aos cavalos -, mas as coisas correram depressa e bem. "De gaiato, tive a sorte de o meu pai gostar de cavalos e ter amigos toureiros, bandarilheiros e apoderados, o que acabou por me puxar esta paixão - mas ninguém se acreditava..." E já vai deixando a semente no sobrinho mais velho, de 16 anos, que "anda com a tonteira de tourear".

Sentados na esplanada do Rubro a aproveitar o calor que sabe bem e a liberdade de ali podermos fumar, o tinto da Herdade do Esporão a acompanhar a cecina que é estrela da casa, recorda que tinha apenas 11 anos quando se estreou na arena. "Um bandarilheiro amigo do meu pai montou uma novilhada e convenceu-o a deixar-me tentar. A preocupação do meu pai era se eu caía do cavalo, mas quando eu percebi que podia ali tourear... ai, Jesus! Nunca mais parei." Quem o viu sair em ombros em Castellón, ainda agora em março, alcançando a sua terceira porta grande naquela praça na Feira de la Magdalena, dificilmente acredita que para essa estreia só fez uma espécie de curso intensivo de uma semana. "Já tinha andado com os cavalos de volta das vacas mas sem saber o que andava a fazer. Aquilo para agarrar nas rédeas só com uma mão e segurar a bandarilha com a outra para quem nunca tinha pegado numa bandarilha, não tinha técnica nem nada, foi complicado." Suficientemente entusiasmante, porém, para lhe dar ganas de seguir esta vida, independentemente da imensa dedicação e do esforço (inclusivamente financeiro) a que a sua arte obriga.

Conta-me que depois dessa estreia, nos seus primeiros anos de amador, o pai lhe passou uma série de regras que teria de cumprir se realmente quisesse ser cavaleiro. Incluindo que teria de cuidar dos cavalos ele próprio e que em cada saída tinha ao menos de fazer dinheiro suficiente para cobrir os gastos. Treinou-se então por garraiadas e novilhadas, com várias passagens por Albufeira, onde os jovens talentos eram frequentemente convidados com despesas pagas, até que José Cortes, grande amigo do pai, montou uma corrida mista que lhe oferecia a oportunidade perfeita para tirar a prova de praticante. Um par de anos mais tarde, a sorte voltou a sorrir-lhe ao aceitar tourear numa novilhada em Vila Franca. "Ninguém queria ir porque era abrir a praça a cavalo, ir à frente de seis novilheiros, mas lá fui e aquilo correu perfeito!" A sua lide não passou despercebida a Palma Fialho, então organizador da mais importante corrida do país, a Corrida da Rádio, que o contratou logo ali. "Foi um espetáculo!" Confirmado o talento, não demorou até conquistar Luís Toucinho para apoderado e tirar a alternativa, tornando-se profissional aos 19 anos, no Campo Pequeno, e logo conseguindo ganhar o prémio de melhor rejoneador em Olivença (Espanha).

O entusiasmo com que ainda recorda essas primeiras conquistas mal o deixou provar a saborosa cecina e já o chuletón chega à mesa com a certeza de Rui Fernandes de que as corridas muito evoluíram desde que pela primeira vez toureou. "Há um grau de exigência enorme. Antigamente um ferro acima da média tinha imenso impacto, mas hoje o público exige três ou quatro desse nível. E também aperfeiçoámos os cavalos, o toiro está mais selecionado e o espetáculo ganhou harmonia. Não é por acaso que o cavalo lusitano é o melhor que há para se tourear do mundo, é porque a seleção tem sido feita há décadas."

Dos cavalos fala com uma paixão que é difícil encontrar quem tenha maior pelos animais - e tem até certa vergonha de dizer que tem nas suas boxes cerca de 40, a maioria lusitanos que cria também para a vertente de ensino de desporto, tendo na sobrinha de 15 anos uma aluna igualmente apaixonada. Para quem, como Rui, vive no meio dos cavalos, perder mesmo um "é uma grande tragédia". Sobretudo quando estão entre os que lhe são mais queridos. "Tive alguns mesmo custosos de engolir", admite, recordando um que apanhou uma febre e teve a má sorte de, no tratamento para lhe ser retirado líquido dos pulmões, a agulha se ter partido e entrado na corrente sanguínea, acabando por matá-lo. "Foi o cavalo que mais amei em toda a vida, tinha imenso significado para mim e todos se lembram dele apesar de eu não ter chegado a tourear muito com ele. Chamava-se Macarena, era preto e tinha sido o meu avô a oferecer-mo ainda em poldro, por isso crescemos juntos e tínhamos uma ligação fortíssima. Aquilo custou-me tanto que estive uma semana de cama, passei mesmo mal." É visível que ainda sofre com isso, mas naquele tempo foi tanto o sofrimento que Rui Fernandes chegou a equacionar desistir da carreira tauromáquica. Também na praça sofreu uma perda que o deixou em lágrimas em frente a uma multidão em Sevilha. "O Xelim tinha-me sido oferecido por um amigo no México - era muito reguila, dava coices, mordia, era um talibã, mas gostei imenso dele. Trouxe-o para cá e deu-me muito trabalho de disciplina, mas estava ótimo. Acontece que tinha chovido, o piso estava escorregadio, ele perdeu as mãos e os pés, caiu e o toiro foi-se a ele. Depois daquilo tudo, só quando eu me encostei a ele e lhe fiz uma festa é que ele fechou os olhos. Custou-me um disparate. Ainda me dói quando toco no assunto." Custa-lhe mais ver um dos seus cavalos sofrer do que quando é ele próprio a magoar-se? "Estou mentalizado para o que pode acontecer enquanto cá andar e se tiver de prescindir de tudo pelo que esta profissão já me deu, estou preparado."

Para quem está todos os dias com os cavalos, a cuidar deles, a treiná-los, não é de estranhar esta afinidade. O treino para tourear requer uma longa aprendizagem que começa ainda em poldro, aos 3 anos, e não demora muito menos de uma década. "Tem um ano de treino de base, começa a levar-se à tourinha, depois com um toiro manso, uma vaca, a primeira corrida... mas é preciso tempo para ganhar maturidade e experiência, e como acontece com as pessoas, isso só se ganha com o tempo, a fazer erros, a experimentar. Para o que lhe é pedido na praça, tem de ter o físico mas também a mente preparada, para que não seja colhido e para que quem está na bancada veja um espetáculo harmonioso."

Rui considera-se um privilegiado por fazer o que mais gosta - tem até dificuldade em imaginar o que faria se não fosse cavaleiro tauromáquico. "Qualquer coisa no campo, alguma profissão em que me sentisse realizado no aspeto de fazer bem ao próximo, porque fazer alguém feliz, resolver os seus problemas e vê-la abalar contente é das coisas que mais me satisfazem." Seja como for, reconhece que adora a vida que leva "e estou orgulhoso de ter seguido esta profissão, que me ensinou muito, deu-me princípios, fez-me conhecer países incríveis". Mas não é uma vida fácil. E sobretudo não é uma vida barata, entre o que se gasta com as casacas, os animais, o seu transporte para as corridas. "Tento comparar a minha vida com a de uma equipa de futebol: tentamos sempre ser campeões mas às vezes temos de vender jogadores para sobreviver." Se para as corridas em Espanha ou França a logística já é complicada e os custos avultados - para a que hoje fará em Madrid, por exemplo, teve de levar dois motoristas, mais três pessoas para cuidar dos cavalos, dois bandarilheiros, o moço de espadas, o apoderado... "é um conto de nunca acabar, para se andar dignamente nesta vida", ri-se -, sempre que vai tourear ao México ou à Colômbia, só levar os cavalos de avião custa à volta de sete mil euros por animal, mais impostos. E por cá não existem quaisquer apoios públicos à tourada.

Lembra-se de ainda ter tido patrocínios privados, mas a má publicidade de que a tauromaquia foi sendo alvo afastou muita gente, incluindo empresas que até gostariam de se envolver mas temem as consequências que isso teria junto dos clientes. "Junto das pessoas que se dizem amigas dos animais - digo-o assim porque não acho que o sejam; se nunca puseram a sua vida à frente para defender um animal... Mas as coisas são como são. Foi pena termos deixado que se chegasse a este ponto, porque olhamos para os números de uma corrida televisionada e há milhares de pessoas a ver. Então há quem goste." E ainda que descarte esses males pela paixão que tem pelo que faz, há alguma mágoa quanto àqueles que se juntam à porta da praça de Lisboa "a berrar insultos e a ofender-nos sem sequer nos conhecerem; não é correto".

O que o desgosta mais, porém, é a ausência do Presidente da República das praças. "O professor Marcelo Rebelo de Sousa era das pessoas de quem mais fã fui, gostava de o ouvir falar e fiquei supercontente quando foi eleito. Mas hoje estou um pouco desiludido, porque toda a gente sabe que ele gosta de corridas, era visto aqui muitas vezes e isso não impediu que fosse eleito, não o prejudicou. Sei que tem imensos compromissos agora como Presidente e ainda é das pessoas que mais admiro, tem feito um excelente trabalho. Mas custa-me acreditar que ainda não tenha arranjado um tempo para vir ver uma corrida ao Campo Pequeno. Gostava que antes de acabar o mandato me desse a alegria de vir."

Esse movimento antitaurino tem outro efeito: Rui Fernandes não consegue ter tantas corridas em Portugal quantas gostaria - "por mim toureava em qualquer parte". Ainda assim, está otimista quanto ao futuro - e tem razões para isso. Ainda outro dia, na rua, foi abordado por um miúdo, um fã de 8 anos que queria tirar uma fotografia com ele. "Eu gostei daquilo! Quem é que não gosta de se sentir amado?" Além da fotografia, o pequeno ganhou um convite para o visitar na quinta sempre que quisesse. Conta também que há uns tempos dois adolescentes, "daqueles malandros", o apanharam a entrar na propriedade e lhe pediram para ver os cavalos. Passaram o dia por ali e voltaram, primeiro com os pais, depois sozinhos, começou a dar-lhes pequenas tarefas que via que dois adolescentes gostariam de fazer, levou-os a corridas, à Golegã, e por fim convenceu-os a continuar os estudos. "Eles viram a nossa maneira de ser e isso ajudou-os. Agora têm uns 19 anos e são do mais porreiro que há!"

Já desistimos de tentar chegar ao fim da tábua de chuletón e seguimos diretamente para os cafés. Diz-me que é por tudo isto que viveu que lhe custa quando ouve que por ser dos toiros vai dar uma má educação à filha ou influenciar negativamente os sobrinhos. "É o contrário, não há aqui barbaridade, há educação e cortesia que faltam em muitos outros sítios. Hoje vivemos muito na ilusão, na mentira e no que nos querem incutir, mas este mundo dos toiros é de uma verdade incrível, de um companheirismo raro a todos os níveis - juntos, criamos os animais, preparamos a corrida, todos nos ajudamos e colaboramos. Num mundo com poucos escrúpulos como o atual, aqui eles sobrevivem e há muita solidariedade." Dá como exemplo os forcados. "Aquilo é mesmo paixão, aquele companheirismo é coisa bonita de ver e de viver. Um forcado é normalmente amador, tem vida, é homem de família, tem emprego, vai pegar pelo gosto e quando se magoa pode prejudicar a sua vida toda em prol da paixão que tem. Não há nada comparável a isto no mundo."

Custa-lhe que hoje as coisas não sejam como noutros tempos, em que a palavra era coisa sagrada - "uma palavra era uma escritura; hoje assina-se um papel e falha-se. E acho que o nosso meio ainda tem um bocadinho dessa ética, de saber estar e respeitar o próximo, a antiguidade, o mais velho". Lembra que se chegou a querer que as corridas passassem mais tarde na televisão, para os miúdos não verem, e espanta-se com a hipocrisia de o mesmo não acontecer com reality shows ou futebol. "Eu gosto de futebol, dos jogos, os jogadores são verdadeiros profissionais, mas o público e tudo quanto se passa ali à volta..."

Já com os segundos cafés à frente, confessa-se um sportinguista resignado - "levo isto na desportiva, que nós temos o Ronaldo para falar e de resto temos é de estar caladinhos..." - e até fica feliz com algumas vitórias do Benfica, pela sobrinha mais nova, de 8 anos. "Se ela está feliz, eu fico todo baboso." É um homem de família, mas reconhece que é a filha, Guadalupe, que pode fazer tudo dele. Fala sobre ela com os cantos da boca elevados de carinho e de olhos a brilhar. "A miúda é doente pelos cavalos, tem uma pónei que tem de ver todos os dias - quando chega da escola temos sempre de ir fazer a ruta turística: vai com a pónei às galinhas buscar ovos, passear os cães dela, ver o cavalo da mãe... é um espetáculo vê-la. Eu estava mesmo ansioso por viver isto e estou a adorar ser pai." De tal maneira que até se deixou abrandar na carreira para poder passar mais tempo com a filha.

Noutros tempos, chegava a passar o Natal e o fim de ano a trabalhar na América do Sul, sobretudo na Colômbia e no México, onde adorou tourear - "tão longe de casa e toda a gente sabe quem somos, lá o toureiro é um ídolo, é um ambiente único". Esteve por lá pela última vez antes de nascer a Guadalupe, mas agora que faz os 20 anos de alternativa, "gostava de lá voltar".

De momento, há de arrancar mas para o Alentejo, que tem treino marcado para esta tarde. Antes de nos despedirmos, pergunto-lhe o que gostava de fazer antes de sair do mundo dos toiros. Nem hesita: "Conseguir mudar um pouco o conceito que as pessoas de fora têm de nós."

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