"Extradição será um atentado do Estado contra a Constituição"

A extradição para o Brasil de Raul Schmidt, que viu a nacionalidade originária reconhecida, merece criticas de Nuno Brandão, penalista de Coimbra, e de constitucionalistas
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No dia em que o coletivo do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) vai decidir se a detenção de Raul Schmidt, arguido da investigação Lava Jato, foi ou não legal, outra voz de repúdio sobre a prevista extradição para o Brasil do empresário junta-se às de constitucionalistas que já alertaram para a ilegalidade da decisão. "A concretizar-se, esta extradição será um atentado contra a Constituição Portuguesa. Uma violação de um direito fundamental dos cidadãos portugueses", declara Nuno Brandão, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

O facto a provocar a indignação deste académico é que Schmidt, nascido no Brasil, é neto de portugueses e por isso o Estado português reconheceu oficialmente a sua "nacionalidade originária". Este reconhecimento, explica o professor de Direito, "concede, retroativamente, desde o dia do nascimento, os mesmos direitos fundamentais, consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP) a qualquer cidadão nacional, entre os quais a proteção de não ser extraditado para outro país". Nuno Brandão lembra que a CRP apenas admite a extradição de um cidadão português para outro país "quando exista reciprocidade, ou seja quando esse outro país também admita extraditar um cidadão seu, que tenha cometido crimes em Portugal". Ora, sublinha, "não é isso que acontece com o Brasil, cuja Constituição, tal como a portuguesa, também estabelece essa proteção aos seus cidadãos". Um caso público em que isso aconteceu foi o do padre Frederico, condenado por homicídio no nosso país, que o Brasil se recusou a extraditar. No sentido inverso, mais recentemente, Portugal também se recusou a entregar à policia brasileira Duarte Lima, acusado do homicídio naquele país de Rosalina Ribeiro.

Mas a "engrenagem" tem a sua "pedra" que os tribunais portugueses valorizaram. É que o reconhecimento do empresário - que já tinha nacionalidade desde 2011, por naturalização - como português de plenos direitos só aconteceu no passado dia nove de janeiro, através de um averbamento à certidão de nascimento, por parte do Instituto de Registos e Notariado. Isto depois de uma longa batalha judicial, que começou em 2015 quando a polícia portuguesa prendeu o empresário, durante a qual Raul Schmidt viu recusados os seus requerimentos, invocando a sua ascendência lusa, a todos as instâncias judiciais (da Relação, ao STJ e ao Tribunal Constitucional) para impedir a extradição. Durante este período a legislação já permitia a nacionalidade plena ao empresário, mas como a regulamentação só foi publicada em 2017, ficou impedido de usar esse direito a seu favor. Os três constitucionalistas a quem a defesa pediu pareceres - Gomes Canotilho, Paulo Otero e Rui Moura Ramos - foram unânimes na condenação ao que classificaram deste "abuso" do Estado.

Já depois do reconhecimento de dia nove de janeiro, no dia 18, numa altura que a defesa de Schmidt já tinha dado entrada com vários recursos, tendo em conta esta nova situação, a todas as instâncias judiciais e à ministra da Justiça (que decidiu não intervir), o Tribunal de Relação decidiu concluir a extradição e pediu a necessária "certidão de trânsito em julgado" dos anteriores indeferimentos. Esta foi confirmada pelo Tribunal Constitucional, indicando o dia de nove de janeiro para esse trânsito em julgado, precisamente a mesma data do averbamento de Raul Schmidt como português nato. Uma "coincidência" que a defesa assinala, sublinhando que, ainda assim, quando a Relação finalizou o processo de extradição, já era público o reconhecimento da cidadania. Mas o juiz desembargador considerou o averbamento um mero "expediente" que deveria ser tratado fora daquele processo principal.

Por tudo isto, esta manhã de quarta-feira, quando o coletivo do STJ e o seu relator Vinício Pereira Ribeiro, avaliarem o pedido de Habeas Corpus, não vão só estar a decidir sobre a legalidade da sua detenção (pela segunda vez, no passado dia seis, no Sardoal) para ser extraditado. Vão ter nas suas mãos um momento histórico, inédito à luz do Direito, que é a extradição de um português de plenos direitos, para um país onde não existe essa reciprocidade. "Apesar do reconhecimento ser posterior aos indeferimentos, a verdade é que existe agora esse dado novo, do conhecimento do Estado português, que tem como dever a proteção dos seus cidadãos. Se ignorar este facto, que o tribunal estará a violar a lei", conclui Nuno Brandão. Caso a extradição seja anulada, as autoridades brasileiras enviam o processo contra o empresário para Lisboa e será julgado pelos tribunais portugueses pelos crimes de que está acusado: corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa.

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