04 agosto 2016 às 00h00

"Treinavamos à volta do campo de futebol, quando pisámos o tartã não corríamos, voávamos"

Integrou uma geração de ouro do atletismo português. Participou em Jogos Olímpicos e conquistou títulos mundiais. Esteve em atividade na alta competição durante mais de vinte anos. Hoje, mantém-se "no ativo" por outras vias. E conta histórias como ninguém

João Gobern

São muitos os quilómetros, de pista e de estrada, que se acumulam nas pernas desta mulher, que chega a esta conversa... de bicicleta. Sempre "a mexer", aceita o desafio para contar histórias e mostrar ideias. Sem pressas...

O que leva uma miúda de 15 anos a achar que a corrida e o atletismo podem ser componentes importantes da vida?

É muito simples... Sou de uma família de dez irmãos, o que hoje é raro, e fui sempre uma maria-rapaz: gostava de jogar à bola, ao pião, ao arco, à corda... Vivi a minha meninice com muita alegria, mas também com muita responsabilidade. Quando se dá o 25 de Abril, eu já corria. Ao domingo, íamos com os pais ao terço e, a seguir, um grupo de uns trinta, raparigas e rapazes, ia correr, espontaneamente, sem orientação de ninguém. Depois da Revolução, acabámos por integrar um clube, o Juventude de Ronfe, e aí apareceu um homem, que ainda hoje é conhecido por Toninho Serralheiro, que era mecânico, trabalhava na mesma empresa que eu, e que começou a ser o nosso treinador...

A Aurora já trabalhava?

Eu fui trabalhar com 14 anos. Eu vivi o 25 de Abril já empregada, numa empresa têxtil com 1200 funcionários. Era uma confeção... Vivi a fase das greves e das reivindicações, fui sempre muito participativa. O único problema tinha que ver com a minha irmã Alberta, que era encarregada, e eu não queria ir contra ela nem arranjar-lhe sarilhos...

Voltemos às corridas...

Com o Toninho, que não tinha qualquer formação, passámos a correr duas vezes por semana, às segundas e sextas, à volta do campo de futebol. E chegámos a correr à volta da Igreja...

Já tinha noção do que podia atingir como atleta?

Não fazia ideia! Corria porque gostava, nessa altura não sonhava com o que estava para vir... Isso mudou em 1976, quando o Toninho resolveu levar uma equipa de seis atletas aos campeonatos nacionais, no Estádio do Jamor. Para nós era uma alegria, só por irmos à capital. Mas não tínhamos dinheiro para ficar numa pensão ou num hotel, e os nossos pais também não podiam ajudar... Houve um primo do Toninho, que vivia em Monsanto, que se ofereceu para nos deixar ficar em casa dele e da mulher. Esse lado estava resolvido. Depois, todas tivemos um problema com os nossos pais, por irmos acompanhadas com um homem casado... Teimámos, mas foi terrível! Um empresário que conhecia a minha irmã sabia das nossas dificuldades e deu-me 7$50 para eu comprar uns sapatos de bicos, que eu até aí corria com umas sapatilhas muito duras, desconfortáveis para correr. Lembro-me de que nem sequer havia o meu número, o 36, mas eu resolvi rapidamente a questão: comprei uns 37 e enchi a frente com jornais, de maneira que o sapato não saísse... E lá fomos, três para os 800 metros, outras três para os 1500.

Mas nunca tinha pisado uma pista de atletismo?

Nada! O mais que se tinha feito era cronometrar as corridas, mas à volta do campo de futebol. Agora, aquela pista vermelha, com oito corredores, aquilo parecia um sonho. Quando pisámos o tartã, nós não corríamos, voávamos! O meu treinador disse-me para eu correr como treinava: "Pões-te atrás das tuas adversárias e eu, cá de fora, vou-te ajudando." Bom, houve eliminatórias, passei à final e, aí, a uns cem metros da meta, já eu vinha de braços no ar, com o Toninho a gritar-me que ainda era cedo. Sei que logo ali bati o recorde nacional, que era da Rosa [Mota]... Ainda brinquei com os jornalistas, apesar de ser muito tímida, quando lhes disse que tinha ganho por causa da biqueira dos sapatos 37, que chegava primeiro do que eu... Fomos festejar e, no dia seguinte, seguimos para os 3000 metros... Outro recorde nacional, na primeira ocasião que pisava uma pista. Sei que, durante 14 anos, fui recordista de todas as distâncias entre os 800 metros e a meia-maratona.

E aí mudou a sua vida...

Na segunda-feira, quando cheguei ao trabalho, fui chamada à administração. Ainda cheguei a pensar que me iam mandar embora... Afinal, queriam dizer-me que estavam dispostos a ajudar-me e eu aproveitei logo para pedir que me deixassem saír mais cedo para, ao menos de inverno, conseguir treinar antes de anoitecer. Fiz mais uma época no Juventude de Ronfe, até que na época de 1977-78 aparecem os grandes clubes. O professor Moniz Pereira, com quem nunca cheguei a trabalhar - ao contrário do que dizem, eu nunca representei o Sporting -, veio de propósito a Ronfe. Foi uma festa! A aldeia parou, três mil e poucos habitantes... Apareceu num Mini alugado, porque tinha vindo de avião até ao Porto. Fizemos um treino, ainda no campo de futebol, e o professor, por quem eu tinha uma enorme estima, disse que me queria no Sporting. Que é como quem diz, em Lisboa. E aí é que esteve o problema: eu tinha 17 anos e os meus pais opuseram-se. Depois apareceu o FC Porto, depois o Benfica. Acontece que os meus patrões eram portistas...

Ou seja, a Aurora foi empurrada para o FC Porto...

Não, eu escolhi mesmo... Ficava mais perto, continuava a viver com a família, mantinha o emprego - e eram outros tempos, outras mentalidades. Ainda por cima, tive oportunidade de conhecer o professor Fonseca e Costa, um grande senhor, que, tendo estado só quatro ou cinco anos no FC Porto, mudou tudo no meio-fundo e no fundo na zona Norte do país. Ía ao Porto duas vezes por semana, às terças e quintas. Trabalhava de manhã e a seguir ía a correr almoçar para apanhar a camioneta.

Nessa altura, já havia outros sonhos?

Já pensava que podia ir mais longe, sim. E a medalha do Carlos Lopes em Montreal [Jogos Olímpicos de 1976], nos 10 000 metros, veio incentivar muita gente nova a começar e a não desistir do atletismo. Agora imagine-se o meu orgulho, em 1977, quando fui campeã nacional de corta-mato, o Lopes ganhou o título masculino e começaram a chamar-me "o Carlos Lopes de saias"...

[citacao:Quando entrei ganhava 1800 escudos por mês, pagava equipamento e viagens e ainda poupava]

Como foi a entrada num grande clube?

Tenho momentos inesquecíveis e curiosos. Por exemplo, eu tinha uma autorização especial de José Maria Pedroto e era a única do atletismo que treinava à mesma hora que os homens do futebol. Porquê? Porque tinha de apanhar a última camioneta para Ronfe, só isso... O senhor Pedroto, à primeira, ficou espantado com aquele "rapazinho" que andava ali às voltas. Depois, até me autorizou a treinar na relva e, mais tarde, quando queria abanar uns jogadores, punha-os a correr comigo. Foi um tempo de ouro. Às vezes, apanhava com uma bolita, noutras os futebolistas metiam-se comigo e diziam que eu estava lenta...

Pode saber-se quanto é que ganhava?

Quando entrei, eram 1800 escudos por mês. Desse dinheiro, ainda poupava. Comprei equipamento, pagava as viagens da camioneta...

... que demorava quanto tempo?

Ida e volta, Ronfe-Porto-Ronfe, eram quatro horas. O que quer dizer que eu passava mais tempo nas viagens do que nos treinos. Às vezes, se perdia a camioneta, tinha de apanhar um táxi e os motoristas, vendo o táxi, já sabiam que era eu... Mas davam-se coisas excecionais: quando não me viam aparecer para a camioneta das 20.45, que era a última, tentavam fazer o percurso mais devagar para que eu os pudesse apanhar mais depressa... Muitas vezes, o meu jantar eram uns morangos que comprava porque chegava a casa às onze da noite, comia uma sopinha (e, de vez em quando, uma tigelinha de vinho da adega do meu pai) e ia dormir. Às oito horas, estava a trabalhar... E trabalhei até 1984: na primeira vez que fui aos Jogos Olímpicos, a Los Angeles, ainda trabalhava de manhã...

Foi a sua estreia numas Olimpíadas?

Foi... Em 1980, eu talvez fosse a única mulher do atletismo em condições para estar presente. Mas Portugal boicotou os Jogos de Moscovo e não me deixaram fazer os mínimos... Só que treinar todos os dias, com sacrifícios, e sonhar participar na maior competição que existe, só de quatro em quatro anos, pode compreender a frustração. Em 1984, tive o azar de a distância mais longa, para as mulheres, ser de 3000 metros. E, em verdade, o professor Fonseca e Costa olhar para mim sobretudo como corredora de pista e nunca ter mostrado ambição para as distâncias mais longas. Se fosse hoje... Mas hoje também é fácil falar.

Mas teve direito a uma prova épica, daquelas que não se esquece...

Partindo de uma enorme dúvida, que era a capacidade de chegar à final perante adversárias tão poderosas. Digamos que o objetivo maior, aí, começou por ser um novo recorde nacional. O grupo português era fortíssimo - houve medalhas para o Lopes, para a Rosa, para o esquecido António Leitão. Nas eliminatórias, consegui o recorde e o apuramento. Na final, estavam a Mary Decker, favorita e a correr em casa, a Zola Budd, a Puica, romena, a alemã Kraus... Houve quedas, encontrões, descontrolos e eu, de repente, percebi que poderia voltar a bater o recorde e, se caíssem mais algumas, ainda chegar a uma medalha. Mas só caíram quatro [risos]... Fui sexta na final dos Jogos Olímpicos, que é um lugar extraordinário para aqueles que não achem obrigatório ganhar medalhas...

É um lugar fantástico, até tendo em conta a concorrência...

Levou, por exemplo, a que a Rita Borralho [antiga atleta do Benfica] me desafiasse a ficar um mês a fazer provas nos Estados Unidos e a amealhar alguma coisa. Em dólares... Deu para melhorar a minha vida, tal como o primeiro carro que comprei, um Fiat 127, e que - agora já posso dizê-lo - conduzi sem carta durante um ano...

Sem carta?!

Eu sabia conduzir, atenção... Não tinha era tempo: ou treinava ou ia às aulas de condução. Vinha devagarinho, de Ronfe ao Porto, depois voltava... Também não havia o trânsio nem a vigilância policial que há hoje... Mas depressa caí em mim e percebi o disparate que andava a fazer. E fui tirar a carta...

Logo a seguir, ainda em 1984, chega o seu primeiro título mundial.

A Federação Portuguesa de Atletiso (FPA) tinha decidido levar uma equipa forte aos Mundiais de Estrada, nesse ano em Madrid. Depois dos Jogos e do "mês americano", fiz uma semana de descompressão e treinei a sério dois, três meses. E havia mais um dado: eu queria demonstrar que, em Portugal, não havia só a Rosa Mota... Lembro-me da prova do primeiro ao último metro e de ter pensado: "Estou bem e daqui a pouco vou-me embora e vou ganhar isto..." E fui. Ganhei.

Ainda assim, o título de estrada que lhe dá mais prazer chega em 1986...

É verdade. A FPA organizou os Campeonatos em Lisboa e, entre Belém e o Cais do Sodré, passando por onde são hoje as Docas, estavam mais de 30 mil pessoas a assistir, a aplaudir, a puxar. Era uma época em que os portugueses gostavam mesmo de atletismo... Para essa prova, eu nem fiz estágio, só fui dormir ao hotel da seleção. Na véspera, senti uma dorzita e ainda recorri, em Vila do Conde, a um massagista chamado Dias, que trabalhava no Rio Ave. Pedi autorização ao António Morais, que era o treinador do clube. O Dias, depois de me tratar, obrigou-me a prometer que, logo na segunda-feira seguinte, passaria por lá para mostrar a medalha. E eu cumpri. Fizemos fotografias e tudo... Como já vinha mais animada, fui a casa da minha futura sogra comer uma feijoada e beber um copinho de vinho, sem problemas... Fomos para Campanhã encontrar-nos com o professor Fonseca e Costa, apanhámos o Foguete (hoje é o Alfa...) e, chegados a Lisboa, fomos jantar a uma marisqueira. E eu comi uma açordinha de marisco, com uma imperial. E fui dormir...

Vá lá, que essa viagem foi das mais curtas. Mas deve ter havido outras...

A pior foi a da Austrália, em 1985, quando eu fui a primeira portuguesa chamada a uma seleção da Europa - foram aí umas 75 horas de avião... Mas tudo foi compensado: quando cheguei a Camberra, tinha dezenas de emigrantes, carregados de ramos de flores, à minha espera... Como vimos recentemente, se há alguém para quem os êxitos desportivos dos portugueses são importantes, são os emigrantes... Ora, eu ia competir com a Olga Bondarenko, contra a qual não tinha hipóteses, mas o segundo lugar ninguém me tirava. Estádio cheio de emigrantes, bandeiras portuguesas que não acabava, e lá vamos. Tive sorte: ela enganou-se e, em vez de 25 voltas, só deu 24. Quando ela parou, ainda lhe dei um toque quando passei por ela, a pensar: "Anda daí comigo, mas, cá para mim, a desejar que ela não viesse..." Ganhei, foi uma festa. E só sei que passei uma semana a pedir autorização, todos os dias, para poder ir jantar a casa de emigrantes portugueses... Aconteceu-me atravessar o mundo sempre com um maravilhoso apoio, bandeiras portuguesas, do FC Porto, do Benfica, do Sporting, sem distinções.

[citacao:Em 1988, vivi o único momento em que pensei seriamente em desistir do atletismo]

Com essas viagens e estágios todos, sabendo que continuaria a contar com o apoio dos emigrantes, nunca encarou a hipótese de sair e de ir viver para o estrangeiro?

Não... Eu era muito agarrada a isto tudo, à terrinha, à família e às pessoas de quem gostava. Só pus a hipótese de sair em 1993, quando a minha filha nasceu e eu tive uma série de lesões, nos tendões. Aí ponderei, porque teria melhores oportunidades para recuperar o tendão de Aquiles fora daqui. Mas falou mais alto a proximidade da família...

Depois disso, ainda houve mais dois Jogos Olímpicos...

É verdade, mas antes de Seul, em 1988, vivi o único momento em que pensei seriamente desistir do atletismo. Em 1987, o Campeonato do Mundo de Estrada decorreu no Rio de Janeiro e eu fui terceira, numa prova em que todos os europeus - e eu também - se viram aflitos com a adaptação ao clima. Não consegui fazer melhor. Foi um ano horrível, com muitas lesões. Por outro lado, com as épocas anteriores, eu já tinha provado que era tão campeã como outras, a imprensa já me dava o espaço que eu penso que merecia, sem que eu nunca deixasse de criticar e falar abertamente... 1987 foi também o ano do meu casamento, mas o professor Moniz Pereira não nos deixou, a mim e ao meu marido, ir de férias - não me dispensou do Campeonato de Mundo. A seguir, fui aos Estados Unidos, correr uma meia-maratona com um cachê muito jeitosinho, e fiquei em casa de um portista que, por alguma razão, decretou que eu e o meu marido tínhamos de dormir em quartos separados. Depois da prova, em que fiquei em segunda, atrás da Ingrid Kristiansen, que era a melhor do mundo, dos 10 000 à maratona, ofereceram-nos um banquete. Foi o meu segundo casamento...

Podemos partir desse episódio para uma confissão: sente que se privou de muita coisa por causa das exigências da alta competição?

Com toda a sinceridade, eu acho que nunca me privei de nada... No meu tempo, não havia discotecas, era uma juventude diferente. Nunca abdiquei de beber o meu copo de vinho ou a minha cervejinha, até porque tínhamos um médico que defendia que a cerveja nos fazia bem por ser diurética... Vivia numa aldeia, sem liberdade para a vida noturna - e hoje parece-me que há liberdade a mais nesse capítulo... Portanto, não houve privações. O que era isso para alguém que chegou a treinar por correspondência?

Desculpe: "Treinar por correspondência?"

Sim. Quando o professor Fonseca e Costa deixa o FC Porto e regressa a Lisboa, passámos a treinar por correspondência. Havia uma confiança muito grande entre técnico e atleta... Os planos eram traçados por antecipação e eu cumpria à risca, sabendo que, se não o fizesse, não estava lá o treinador para me chamar a atenção. Mas eu sabia que ele queria o melhor para mim...

Estamos a chegar à fase das maratonas...

Com toda a naturalidade, até porque, em pista, havia cada vez mais atletas, melhores e mais novas. O meu treinador decidiu que íamos experimentar em Paris... Foi o professor Fonseca e Costa, foi o Manuel Matias e fui eu... Durante a prova, houve outra vez a enchente dos emigrantes e das bandeiras, outro momento inesquecível. Era a primeira vez que fazia a prova e sabia que tinha de dosear muito bem o esforço. Cheguei a ter uma queniana - já havia quenianas, para quem ache que elas só apareceram depois - cinco minutos à minha frente, estavam 35 graus em Paris. Nos últimos dez quilómetros passei por ela. A dois quilómetros do fim, vejo o meu treinador, eufórico, a puxar por mim - eu ainda não sabia que o Matias já tinha ganho a prova masculina... Ganhei e fiz os mínimos para Seul.

Aí, as coisas não correram bem...

Desde o princípio. Mais uma vez, não tive direito à presença do meu treinador e, ao contrário do que faria hoje, não arrisquei levar o meu marido. Enquanto outros foram instalados em hotéis, eu fui para a aldeia olímpica... Mas estava segura de que, mesmo não ganhando uma medalha, ficaria nas cinco ou seis primeiras. Acontece que, por erro meu, por ingenuidade, decidi fazer a vontade a um patrocinador e corri com umas sapatilhas novas. Foi um suicídio! Cheguei aos 32 quilómetros, ainda vinha no grupo da frente, mas a planta do pé era só bolhas, um ardor, um sofrimento. Não queria desistir, mas tive de desistir. Fou um pesadelo!

Mas insistiu - em 1992, em Barcelona, lá estava na maratona outra vez...

Em Barcelona, penso que toda a comitiva - e em todas as modalidades - terá vivido os seus piores Jogos. Antes, fui a Roterdão para fazer os mínimos, e acabei a ganhar a prova. Na maratona olímpica, o calor e a humidade eram atrozes, de tal forma que, por volta da meia-maratona, acabei por desistir. Porquê? Ainda hoje, não sei. Desmaiei, caí para o lado... Mas se nesse aspeto foi um momento para esquecer, houve algo que ainda hoje me faz lembrar esses Jogos de uma forma oposta: passadas três ou quatro semanas, eu venho a saber que estou grávida da minha filha. No campo desportivo, falhei e assumo a responsabilidade. Mas também não me esqueço da debandada daqueles que até aí, na própria aldeia olímpica, se diziam meus amigos e, afinal, parecia que queriam que eu, ou outro parceiro qualquer, tivesse o pior resultado possível.

Pela sua experiência, é fácil ou é complicado fazer amizades a sério no atletismo de alta competição?

Hoje, eu resumo a coisa assim: não tenho amigos, tenho algumas pessoas de quem gosto. Há muita falsidade... Tenho um carinho muito especial pelo [Carlos] Lopes, até porque não me esqueço de ter assistido abraçada à mulher dele, à Teresa, à entrada dele no estádio em Los Angeles, em 1984. Passei com eles alguns momentos muito bons na minha carreira... Há a Manuela Machado, uma miúda (eu posso chamar-lhe "miúda"...) que tem feito muito pelo atletismo na terra dela, em Viana do Castelo, sendo reconhecida pelo presidente da câmara, o que é raro acontecer depois de se terminar uma carreira...

Quando soube que estava grávida, como é que reagiu?

Foi uma felicidade enorme. Se não tivesse acontecido, talvez ainda tentasse fazer mais uns Jogos, talvez continuasse a adiar algo que queria muito. Quando disse ao meu empresário na altura que já estava grávida, em Barcelona, ele queria, mesmo assim, que eu ainda fosse fazer a maratona de Tóquio, que estava programada. Mas não, eu náo estava disposta a arriscar ir correr com dois meses e meio ou três meses de gravidez. Correu tudo bem e eu digo só isto: não tive nenhuma medalha olímpica, mas a minha medalha mais preciosa é mesmo a minha filha, Mariana.

Tendo passado tantos anos no FC Porto, acabou a sua carreira como atleta individual...

É verdade. Mas, pelo meio, ainda tive uma história curiosa: há um momento em que, julgo que como desforra da vinda do Rui Águas para o FC Porto, o Benfica foi buscar toda a gente que andava no atletismo portista... Foi o José Regalo, foi o António Pinto... E eu tive na mão um cheque de três mil contos que seria o pagamento da minha transferência para o Benfica. Mas acontece que eu amava o FC Porto, a minha família, sobretudo o meu sogro, era portista. O presidente Jorge Nuno Pinto da Costa pediu-me para eu não me mudar, não sair, o que o deixaria sozinho, no que dizia respeito ao atletismo. E eu fiquei. Rasguei o cheque... Depois de deixar o FC Porto, ainda fiz uma época na Terbel, pagaram-me 500 contos... Mas, agora posso confessar, fazia-me confusão aquele equipamento verde e vermelho depois de tantos anos a correr de azul e branco...

A maternidade mudou a sua atitude perante a carreira?

Muda sempre, não é? Mudou, sim... Mas, acima de tudo, continuo a pensar que o fim dos meus dias de atleta de alta competição chegou por causa das lesões. Num ano, eu fui operada três vezes aos tendões... Três vezes! Agora, é evidente que, sendo mãe aos 33 anos, a minha capacidade de recuperação já era muito menor do que acontece hoje, com as minhas colegas, que decidem - e bem - ter os filhos mais cedo. De resto, já o disse, tanto à Sara [Moreira] como à Jéssica [Augusto]: se quiserem ter o segundo filho, podem fazê-lo depois de terminarem a carreira.

O momento em que um atleta arruma as sapatilhas é o quê? Uma parede escura? Uma ansiedade?

No meu caso, não. Note que eu sempre defendi, junto da federação, que deveria haver uma preparação para o momento em que os atletas medalhados mudam de estatuto, deixam aquilo que foi a sua ocupação. No meu caso, eu fui fazendo essa preparação sozinha. E não correu mal.

[citacao:"Herdei da minha mãe o instinto solidário"]

Acabou a sua carreira em 2000, mas só cinco anos depois foi condecorada. Se fosse hoje, não teria esperado tanto tempo...

Com este Presidente, não tinha demorado tanto, não... Eu, que não votei nele mas por quem tenho muita admiração, acho que ele tem feito algo de extraordinário para tentar dar-nos alguma alegria, para recuperarmos o nosso orgulho. Só espero que, com tudo isto, não deixe para trás as outras responsabilidades de um presidente da República de um país de dez milhões em que há tantos políticos que chegam pobres aos cargos públicos e depois os abandonam com um património que nos faz pensar... Voltando à minha condecoração e ao facto de ter demorado 21 anos, após o meu primeiro título mundial para a receber, é mais uma prova de que nem sempre fui tratada com justiça, em pé de igualdade com outras...

Sentiu-se injustiçada no seu percurso?

Claro! Julgo que, ainda hoje, eu e o meu treinador, o professor Fonseca e Costa, seremos os recordistas dos processos disciplinares movidos pela Federação Portuguesa de Atletismo. Só porque não nos calávamos, porque sempre lutámos, não por nós, mas pelo atletismo. Posso referir só dois exemplos? O primeiro: em 1984, eu fui impedida de participar nos Good Will Games [Jogos da Boa Vontade, que se realizavam nos Estados Unidos], onde seguramente ganharia uma medalha que acrescentaria o meu currículo desportivo, onde ia dispor de vantagens financeiras, e fui obrigada a vir aos Campeonatos Nacionais, dar sete voltas e meia à pista... O segundo: quando desisti na maratona de Barcelona, passei dois dias muito complicados no hospital. E quantas pessoas da federação foram visitar-me e inteirar-se da minha situação? Nenhuma.

Ainda assim, depois de terminada a sua fase de atleta, não se afastou do atletismo...

Não, de todo. Tive a sorte de, em fases diferentes, ser abordada por duas empresas [a Runporto, dedicada à promoção de provas de atletismo, e a Liberty Seguros, também com prática de ligações ao desporto] para continuar próxima do meu atletismo e para representar a defesa de uma vida mais saudável e de um desporto sem doping. Ora, além do dinheiro, tive a sorte de encontrar líderes e equipas que me respeitam e que eu admiro muito. No meu caso, já demonstraram - na prática - mais apreço por mim do que outras casas onde passei muitos mais anos...

A Aurora marca presença em muitas iniciativas de solidariedade...

Até já houve quem me dissesse que eu vou a todas [risos]. Mas eu tive em casa o exemplo da minha mãe, que, depois de alimentados os filhos, arranjava sempre um destino para as batatas, para o arroz, para a sardinha que sobrasse... Herdei dela o instinto solidário e sinto que as pessoas gostam de mim, que de alguma maneira lhes sou útil. Percebi isso numa fase difícil, em que tive um familiar canceroso a ser tratado no Hospital de São João [no Porto]. Ia falar ou dar um abraço a outros doentes e, mesmo não estando ao meu alcance fazer nada de concreto por elas, percebi que apreciavam essa minha aproximação... Afinal de contas, não custa nada, pois não?

Considera-se uma mulher feliz ou a distância da sua filha, a viver no Canadá, impede essa possibilidade?

A minha filha, Mariana, tirou o seu curso. Mas, como acontece com muitos jovens, teve de procurar outro caminho profissional. Está no Canadá e está bem. E eu dou por mim a pensar que também eu, no meu tempo, com provas, com estágios, também tive de deixar os meus pais... Claro que gostaria de a ter por cá, mas ela está a fazer as corridas dela... Nós sempre fomos um povo de emigração, por mais que custe. E, felizmente, hoje temos o Skype e todos os meios para mantermos o contacto. Não é como no meu tempo, em que ligava para Ronfe e ficava com a chamada a meio quando acabavam as moedas. Em resumo: tentando ser consciente, acho que sou uma mulher feliz, sim.