O Parlamento desdobra-se esta sexta-feira, 11 de julho, a discutir várias iniciativas com perspetivas diferentes sobre a Lei n.º 33/2025, que consagrou, pela primeira vez em Portugal, o conceito de violência obstétrica. A ordem do dia foi imposta pelo CDS, que pretende revogar a lei, assinalando uma dissonância em relação ao PSD, que só pretende remover da legislação o próprio conceito. Em qualquer dos casos, a esquerda e várias vozes da sociedade civil veem esta discussão, e a potencial consequência, como um retrocesso, principalmente porque a lei foi aprovada em março deste ano, a partir de duas iniciativas - uma do BE e outra do PAN.“Violência obstétrica é a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais”, diz a lei.Reconhecendo que “as preocupações com a gravidez” são “legítimas”, o projeto de lei do CDS argumenta que a lei “foi desprovida de qualquer diálogo com a Ordem dos Médicos ou com a Ordem dos Enfermeiros, bem como as sociedades científicas, os colégios de especialidades e a sociedade civil”.Para além disto, a lei passou a prever que “os hospitais e os profissionais que praticarem episiotomias [corte no períneo realizado durante o parto vaginal para facilitar a passagem do bebé] alegadamente injustificadas passam a sofrer penalizações”, continua o CDS no documento, lembrando ainda que, noutros países, “o conceito de violência obstétrica é alvo de duras críticas”, não tendo sido “adotado pela Organização Mundial da Saúde” e não estando “alinhado com os padrões seguidos” na União Europeia”.Assim, os centristas querem revogar a lei, em desafinação com os seus parceiros no Governo, os sociais-democratas, que querem retirar o conceito de violência obstétrica. O PSD reconhece “os generosos propósitos” nas iniciativas que originaram a lei, mas considera que o resultado final contém “soluções concretas não sustentadas na desejável evidência científica”.Os sociais-democratas argumentam ainda que “a lei adotou um conceito de violência obstétrica excessivamente lato e indesejavelmente vago, cuja aplicação facilmente poderia redundar na criação de um inaceitável estigma sobre médicos e outros profissionais de saúde”.Conceito abrangenteLembrando que “a Ordem dos Médicos nunca reconheceu o termo ‘violência obstétrica’” e considerando em simultâneo que “isso é um problema que é deles”, a fundadora da Associação Saúde das Mães Negras (SaMaNe), Carolina Coimbra, sublinhou ao DN que há milhares de mulheres vítimas desta forma de violência, “que sentiram isso nos seus corpos”. A SaMaNe integra uma carta aberta com dezenas de outras associações e coletivos feministas que demonstra preocupação perante a possibilidade de uma lei que consideram “progressista e humanista” ser revogada.“Se todos os médicos e enfermeiros e enfermeiras e médicas trabalhassem com empatia e ouvissem as utentes, não era necessária esta lei”, explica Carolina Coimbra, apontando, porém, que a legislação, como estava antes desta lei ter surgido, não era suficiente, o que motivou a definição do conceito.“É necessário que haja esta nova lei para dar mais força às mulheres, para verem os seus corpos respeitados e terem experiências do parto e da gravidez diferentes do que têm tido ultimamente”, apela, enquanto prepara o terreno para falar de situações de violência obstétrica que ultrapassam a violência física. Referindo um inquérito conduzido pela SaMaNe que originou, em 2023, um relatório sobre a experiência durante a gravidez das mulheres negras em Portugal, Carolina Coimbra garante que houve muitas grávidas “que sofreram racismo e violência obstétrica”.“Mulheres que estavam a ter o primeiro filho, em que os médicos partiram do princípio que elas já tinham tido muitos filhos e que deram logo a opção de fazer a laqueação das trompas”, exemplifica, enquanto recorda outros casos, em que “mulheres que estavam no terceiro filho, e que até queriam ter mais, foram forçadas a fazer uma laqueação de trompas, porque disseram que era uma questão de vida ou morte”, acabando depois por saber que não era assim.“Também temos mulheres que estão grávidas pela primeira vez, vão à consulta no centro de saúde e perguntam-lhes logo: têm a certeza de que querem ter este bebé”, relata Carolina Coimbra.Sobre um dos argumento do CDS para revogar a lei - o facto da Ordem dos Médicos (OM) não ter sido ouvida - o DN conversou com a advogada e membro da direção da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas Mia Negrão, a quem não parece importante que a OM tivesse sido ouvida neste contexto. “Seria como termos, por exemplo, as pessoas que estão presas pelo crime de violação ou de violência doméstica, a terem de ser ouvidas quando vai haver um projeto de lei sobre violência doméstica ou sobre violação. Deve ser crime público? Não deve ser crime público? Vamos então perguntar aos violadores o que é que eles acham”, compara a advogada, lembrando que esta instituição reguladora da profissão iria sempre opor-se a esta lei.Sobre o argumento de que o conceito de violência obstétrica não está “alinhado com os padrões seguidos noutros países” europeus, Mia Negrão lembra que o “Conselho da Europa, em 2019, emitiu a resolução 2306, que fala sobre violência obstétrica e ginecológica”, referindo episiotomias, a “manobra de Kristeller [pressão externa feita sobre o útero no momento do parto]”, “intervenções sem consentimento das grávidas, constrangimentos a que estão sujeitas durante as consultas, nomeadamente não serem totalmente informadas e esclarecidas”. De acordo com a advogada, a resolução fala ainda sobre “a dinâmica de poder que existe, a assimetria de poder que existe numa consulta médica, num parto hospitalar. Portanto, o Conselho da Europa está a olhar para estes assuntos.”Ainda assim, lembra Mia Negrão, o conceito não está legislado no espaço comunitário, ao contrário do que acontece em países da América latina, como a “Venezuela, o Chile, o Brasil”.“Na União Europeia, fomos pioneiros a legislar e ainda bem, é um motivo de orgulho. Fomos citados na imprensa internacional por esse marco tão importante, um marco histórico, e, portanto, voltar atrás seria um retrocesso absolutamente inadmissível”, conclui.Proteger as mulheresO DN conversou com a deputada do Livre Isabel Mendes Lopes, que recorda, através das audições do partido, relatos de “procedimentos não consentidos, em que nem sequer foi perguntado o que é que a mulher queria ou não, ou até quase abuso oral”, referindo-se, neste último caso, a “frases que muitas vezes até se dizem quando acontece um parto”.“Numa situação em que as pessoas estão mais vulneráveis, é preciso também haver um cuidado extra em relação ao conforto e em relação a todas as questões de consentimento. E é muitas vezes isso que não acontece”, aponta, defendendo que é preciso “haver [nos estabelecimentos de saúde] formação em direitos humanos, haver formação em boas práticas de relacionamento com pacientes”.Dizendo não entender “esta vontade do CDS de revogar a lei ou do PSD de retirar o conceito de violência obstétrica da lei”, Isabel Mendes Lopes alerta para um “problema real” que deve estar “nomeado”. “E é isso que nós tentamos fazer na nossa proposta, é melhorar a lei que já existe”, afirma.A líder do BE, Mariana Mortágua, ao DN considera que “o PSD não concorda com a lei, por pressão da Ordem dos Médicos, por conservadorismo, seja pelo que for”, motivo pelo qual “está a recorrer a um expediente administrativo, que na verdade nem tem peso, para poder fazer uma alteração e recuar numa lei que tem muito apoio e que tem reconhecimento internacional”. Mariana Mortágua lembra que “há vários relatórios internacionais, nas Nações Unidas, no Parlamento Europeu, no Conselho de Europa, que usam o termo violência obstétrica, que condenam práticas reiteradas, clínicas que não têm justificação terapêutica e que não têm o consentimento das mulheres”.“Nós não estamos a inventar a roda, estamos a seguir um processo legislativo e político que está a ser feito em muitos países”, justifica, antes criticar a OM por ter uma posição “conservadora” perante o tema, “que é protetora de um conjunto de práticas reiteradas que não protegem o direito das mulheres”..Imigrantes são mais vulneráveis à violência obstétrica em Portugal? Pesquisa quer ouvir relatos de brasileiras