André Ventura apresentou prioridades do Chega para uma revisão constitucional.
André Ventura apresentou prioridades do Chega para uma revisão constitucional.Foto: Leonardo Negrão

“Teste do algodão” da revisão constitucional mostra os limites da maioria à direita

Desafio de Ventura a Montenegro e Rocha para aproveitarem “condições únicas” não tem resposta. Mesmo com dois terços de deputados à direita, PSD quer consenso e duvida que mexer seja prioritário.
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A falta de respostas à carta aberta enviada por André Ventura a Luís Montenegro e Rui Rocha, desafiando os presidentes do PSD e da Iniciativa Liberal a juntarem-se ao Chega na “criação de uma plataforma de entendimento ou de consenso constitucional anterior ao início do processo formal de revisão”, está a ser vista como um sinal de que o “teste do algodão” ao primeiro-ministro em vias de recondução revela que os mais de dois terços de deputados à direita do PS eleitos para a próxima legislatura não levarão a uma revisão da Constituição à revelia da esquerda, e em particular do maior partido desse lado do espetro político.

Aproveitando as “condições únicas” decorrentes do resultado eleitoral de 18 de maio - o PSD já tem 87 eleitos, o Chega 58, a Iniciativa Liberal conta com nove e o CDS dois, podendo a direita atingir 160 se Chega e PSD dividirem os mandatos dos círculos da emigração -, André Ventura apelou a uma “limpeza ideológica” no texto constitucional, a começar pelo preâmbulo, e a acrescentar-lhe a introdução do círculo de compensação nacional - como já sucede nos Açores -, de penas de prisão perpétua sujeita a revisão, do crime de enriquecimento ilícito, da contenção da possibilidade de recursos judiciais, da “retirada do peso excessivo do Estado do texto constitucional”, da “garantia de liberdade de articulação dos vários serviços públicos com os privados, num espírito de complementaridade”, da garantia de progressividade fiscal e da “despolitização de determinados cargos ou instituições”.

Rui Rocha já tinha aproveitado a audiência com Marcelo Rebelo de Sousa para confirmar que a Iniciativa Liberal mantém a intenção de tentar retirar o “pendor ideológico” da Constituição da República Portuguesa e reduzir o papel do Estado na economia, ressalvando não estar em causa um “ajuste de contas com a História”. Mas ficou claro que, sem surpresa, os liberais dispensam plataformas de entendimento lideradas por Ventura.

Nada diferente é a posição da coligação que saiu reforçada das eleições legislativas. Para o CDS, cujo líder, Nuno Melo foi “esquecido” entre os destinatários da carta aberta de Ventura, e o PSD as prioridades são outras, desde logo a formação do novo Executivo de Luís Montenegro. A nota dominante nas intervenções é a necessidade de dialogar com todos os grupos parlamentares, admitindo-se viabilizar propostas destes e daqueles quando voltar a estar em curso um processo de revisão constitucional. O último arrancou no fim de 2022, decorreu ao longo do ano seguinte, já com Montenegro na liderança do PSD, e só não foi concluído pela dissolução da Assembleia da República, na sequência da demissão de António Costa.

Coordenador do grupo parlamentar social-democrata no processo de revisão inacabado, André Coelho Lima disse ao DN que compreende o silêncio do seu partido em relação ao repto do líder do Chega: “Tenho presente que André Ventura vai procurar destruir o PSD. Imagino que ele queira alterar a Constituição e encostar o PSD às cordas. O partido não lhe pode dizer que sim.”

Apesar de ter havido uma alteração das circunstâncias parlamentares, pois o caminho para dois terços do hemiciclo deixa de depender apenas do entendimento entre PSD e PS - mesmo os dois grupos parlamentares da AD e o Chega não bastariam por si só, necessitando ainda da Iniciativa Liberal -, André Coelho Lima realça que “a decisão está sempre do lado do PSD” e que o partido só vai “aprovar aquilo com que concorde”.

Do lado do PS, enquanto presumível candidato único à sucessão de Pedro Nuno Santos, José Luís Carneiro deixou claro, na reunião da Comissão Política em que Pedro Nuno Santos se afastou da liderança, que os socialistas não serão “parceiros para nenhuma operação de subversão da Constituição”, acrescentando ter a crença de que “esse não será o caminho da AD”.

Uma posição muito mais moderada do que a da coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, para quem o facto de os partidos de direita terem a possibilidade teórica de fazerem a revisão constitucional sem outros contributos é uma “situação nova e perigosa”. No final da audiência no Palácio de Belém, a futura deputada única falou num “grande empenho de congregar todas as forças para impedir esta revisão constitucional que ameaça a democracia”.

Para André Coelho Lima, que não vê “drama nenhum” em haver propostas do Chega aprovadas, à medida do que no último processo iria acontecer com algumas apresentadas por partidos tão díspares quanto o Livre, Iniciativa Liberal, o Bloco de Esquerda ou o próprio Chega, “está-se a tentar hiperbolizar” o efeito da nova configuração parlamentar e “o silêncio do PSD está a ser muito inteligente”. Curiosamente, o próprio Ventura admite, na carta aberta, que “face às enormes dificuldades que os portugueses enfrentam no presente”, a revisão constitucional não é prioridade absoluta.

As sete revisões anteriores

1982

A Constituição da República Portuguesa tinha seis anos aquando da primeira revisão. O processo prolongou-se de abril de 1981 a setembro de 1982, mas houve consenso entre a Aliança Democrática, que estava no poder - e que incluía o CDS, único a votar contra o texto fundamental de 1976, por visar a transição para o socialismo -, e o PS, maior partido da oposição, refletindo o clima pós-revolucionário.

Uma das principais alterações foi o fim do Conselho da Revolução, criado pelo Movimento das Forças Armadas, no rescaldo do 11 de março de 1975. Não se limitava a ser um órgão consultivo da Presidência da República, podendo legislar em matéria militar, aprovar tratados e acordos internacionais ou autorizar que o Chefe de Estado declarasse a guerra e fizesse a paz, tal como o estado de sítio ou o estado de emergência.

Visto como uma tutela militar sobre o poder político, o Conselho da Revolução deu lugar ao Conselho de Estadoe ao Tribunal Constitucional, com outras competências a transitar para o Governo e para a Assembleia da República.

A redução da carga ideológica do texto original também se refletiu na flexibilização do sistema económico, marcadas pelas nacionalizações do período revolucionário.

1989

A primeira maioria absoluta monopartidária, obtida pelo PSD de Cavaco Silva em 1987, não impediu novo consenso entre os partidos do então arco da governação (PSD, PS e CDS). Voltou a haver mexidasde teor ideológico, com “transformação numa sociedade sem classes” a dar lugar a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, e também novas preocupações, entre as quais “defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território”.

No que toca à abertura da economia, além da referência explícita ao licenciamento de canais privados de televisão (que viriam a surgir em 1992), foi inserida a “coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção” e, acima de tudo, foi retirada a irreversibilidade das nacionalizações.

1992

O Tratado de Maastricht introduziu na Constituiçãoa possibilidade de, “em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social”, Portugal convencionar o exercício em comum de poderes necessários à construção da União Europeia. E os cidadãos de Estados-membros com residência em Portugal ganharam o direito a elegere a serem eleitos para o Parlamento Europeu.

1997

Desta vez foi o Tratado de Amesterdão a ditar a revisão, que abriu a possibilidade de iniciativas legislativas de cidadãos, candidaturas autárquicas de movimentos independentes e referendos locais e regionais.

2001

Alterar regras de extradiçãoe de asilo foi necessário para que Portugal pudesse ratificar a convenção que criou o Tribunal Penal Internacional. Por outro lado, acrescentou-se a menção de que o português é a língua oficial de Portugal.

2004

A Constituição passou a ter espaço para a orientação sexual e foi introduzido o princípio da limitação de mandatos dos detentores de cargos políticos.

2005

A última revisão concluída até hoje possibilitou um referendo para aprovar um tratado que vise o aprofundamento da União Europeia.

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