Salário mínimo de Montenegro é "a gozar" para Catarina Martins e "não é para levar a sério" por António Filipe

Salário mínimo de Montenegro é "a gozar" para Catarina Martins e "não é para levar a sério" por António Filipe

Ex-deputado do PCP e eurodeputada bloquista protagonizaram um debate em que mesmo os raros momentos de discórdia foram serenos. Greve geral, segunda volta, Ucrânia, Palestina e Eurovisão foram temas.
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Representantes de uma área política que corre o risco de não estar representada na segunda volta das eleições presidenciais optaram por um registo tranquilo e cordato, muito diferente da maioria dos debates televisivos que precederam o encontro do comunista António Filipe e da bloquista Catarina Martins no estúdio da RTP.

Na véspera da greve geral, o ponto forte do debate foram as críticas de ambos às declarações de Luís Montenegro, que nos últimos dias avançou com a meta de elevar o salário mínimo nacional para os 1600 euros, associando-a ao efeito da revisão da legislação laboral que o seu Governo defende. "Está a gozar com as pessoas", acusou Catarina Martins, enquanto António Filipe viu na falta de reação das confederações empresariais um claro sinal de que "ninguém leva a sério" o que o primeiro-ministro disse.

Mesmo nos assuntos em que os dois candidatos têm claras divergências, como o apoio à Ucrânia para se defender da invasão russa, António Filipe e Catarina Martins esforçaram-se por encontrar pontos de contacto. Nem que as tivessem de ir buscar ao Médio Oriente, convergindo nos "dois pesos e duas medidas" da União Europeia, muito menos empenhada na causa palestiniana, o que levou a bloquista a apelar à RTP para repensar a posição de participar no Festival da Eurovisão apesar da participação de Israel.

A eurodeputada bloquista aproveitou oportunidades para se colar tanto quanto possível aos socialistas Mário Soares e António Guterres, embora não tenha feito a habitual referência a Jorge Sampaio, enquanto António Filipe reconheceu em Catarina Martins uma pessoa "de esquerda sem mas", ao contrário de António José Seguro e de Jorge Pinto. Quanto às dificuldades de qualquer um dos dois candidatos convencer um número suficiente de eleitores para passar à segunda volta, nenhum quis desenvolver o tema.

Do Nobel da Paz até ao Festival da Eurovisão

A entrega do Nobel da Paz à líder da oposição venezuelana Maria Corina Machado leva Carlos Daniel a pedir comentários aos dois candidatos, ressalvando que Catarina Martins tem uma posição mais crítica em relação à "deriva autoritária" do regime de Caracas.

A eurodeputada do Bloco de Esquerda começa por dizer que Portugal deve manter relações com a Venezuela para a proteção da comunidade de emigrantes e lusodescendentes. Quanto à situação política, divide críticas entre quem está no poder e quem o combate na clandestinidade. "Devo dizer que não tenho nenhuma simpatia pelo governo de Nicolás Maduro e condenei várias vezes a absoluta falta de transparência eleitoral, mas não serei capaz de apoiar a entrega de um Prémio Nobel a uma pessoa que sugeriu a invasão do seu próprio país por Donald Trump."

António Filipe diz que os dois candidatos estão de acordo na defesa dos interesses da comunidade portuguesa, recordando o "erro crasso" do governo socialista que reconheceu Juan Guaidó como legítimo presidente da Venezuela. Também diz que ambos estão de acordo quanto a Maria Corina Machado, por si desqualificada por ter telefonado a Trump e Netanyahu, enquanto Catarina Martins revela ter defendido que o prémio fosse entregue à relatora das Nações Unidas Francesca Albanese, muito crítica em relação ao governo de Israel, aproveitando para destacar o papel da organização liderada por António Guterres, "que tem sido "muito atacado na sua defesa do povo palestiniano e na voz que levanta contra o genocídio". No mesmo tom, apela à RTP para repensar a sua participação no Festival da Eurovisão caso haja participação de Israel.

O debate termina com a questão dos limites à utilização das redes sociais por menores de 16 anos na Austrália, e o fim do anonimato defendido em Espanha, com Carlos Daniel a perguntar o que os candidatos pensam. António Filipe diz que "vale a pena fazer esse debate na sociedade portuguesa", embora não tenha a ver com as funções presidenciais, defendendo que "não há nenhuma violação dos direitos humanos" em levar a que os detentores das plataformas tenham a identificação dos utilizadores. Já Catarina Martins diz "estar provado que as redes sociais têm um impacto muito negativo na saúde das crianças e dos jovens", fazendo um paralelismo com o que dizia do tabaco há alguns anos, e refere que as redes sociais já devem ser responsabilizadas pelos crimes "que permitem que aconteçam".

Catarina Martins defende apoio à Ucrânia, mas concorda com António Filipe nos "dois pesos e duas medidas" 

Quanto a questões internacionais, Carlos Daniel pede a Catarina Martins para explicar o seu voto no Parlamento Europeu a favor de ajuda militar à Ucrânia, realçando que esse é um tema que a separa de António Filipe. "Faço parte de uma tradição da esquerda que acredita na autodeterminação dos povos, em todos os cenários, e que acredita que os povos têm direito à resistência armada", diz a eurodeputada bloquista, para quem "é normal que se apoie a Ucrânia perante a invasão da Rússia".

Apesar disso, Catarina Martins garante estar empenhada num acordo de paz "que os ucranianos queiram", dizendo-se "chocada" com a proposta do presidente norte-americano Donald Trump, que "vai de encontro a todas as pretensões de Putin". E diz que há uma diferença entre apoiar a defesa da Ucrânia e promover "uma escalada militar", voltando a ser instada pelo moderador a clarificar até onde deverá ir essa ajuda.

"Já devíamos estar há muito tempo numa negociação de paz em que a União Europeia se fizesse ouvir, em vez de ser subalternizada em relação aos interesses de Trump, que também são os de Putin", diz a candidata presidencial, para quem a melhor solução seria a neutralidade ucraniana garantindo a integridade do seu território. E critica a União Europeia por "não ter investido na diplomacia da paz" em 2022, quando Zelensky estaria mais disposto a negociar.

"Continuar a deixar os ucranianos morrerem como estão a morrer, e a sua economia a ser destruída, porque a União Europeia continua a ser um capacho dos Estados Unidos, que neste momento estão aliados com a Rússia, é um erro brutal e uma irresponsabilidade", remata.

António Filipe volta a defender, como em todos os debates, que "é completamente errado defender que se chega à paz com o envio de armas". E prefere dirigir-se à interlocutora, dizendo que "ambos somos solidários com o povo da Palestina, mas não nos passa pela cabeça que a paz no Médio Oriente passa por enviar armas para os palestinianos". Quanto à Ucrânia, enumera as "oportunidades para chegar à paz" que considera desperdiçadas pela União Europeia. "O caminho é apostar tudo na diplomacia", insiste o comunista, para quem "quanto mais tarde chegar a paz, pior será para a Ucrânia", voltando a defender que "entre Putin e Zelensky venha o diabo e escolha".

Quando Carlos Daniel faz notar que na Palestina o candidato presidencial apoiado pelo PCP "consegue identificar facilmente o agressor e o agredido", perguntando-lhe porque tem dificuldades em fazê-lo na Ucrânia, António Filipe aponta os "dois pesos e duas medidas" que considera existirem na União Europeia entre a Palestina e a Ucrânia, tendo em conta a "recusa da existência de um genocídio".

Catarina Martins concorda que há dois pesos e duas medidas, mas critica António Filipe. "O facto de um governo não ser um bom governo não se resolve com uma invasão. Portugal teve uma ditadura durante 48 anos, tinha uma guerra colonial, e certamente que ninguém de esquerda pediu para ser invadido", diz a bloquista, recordando que esteve em Kiev com opositores a Zelensky, mas testemunhou que "todos querem combater a invasão da Rússia".

"Também condenei a invasão", reage António Filipe, para quem a solução militar do conflito "passará necessariamente pela capitulação da Ucrânia". "Eu não quero isso", garante.

Candidatos explicam o que fariam na Presidência da República

António Filipe diz que a sua candidatura se distingue em quatro pontos: o respeito por quem trabalha, ser de uma esquerda "que não se conforma com o domínio do poder económico sobre o político", uma "candidatura patroótica que não aceite as imposições da União Europeia e da NATO", bem como "defensora dos valores de Abril".

Desafiado a dizer qual dos pontos o diferencia mais de Catarina Martins, António Filipe reconhece que divergem quanto à União Europeia, mas diz que "não lhe passaria pela cabeça apelar à desistência de ninguém".

Catarina Martins diz que Portugal precisa de uma Presidente da República "que fale menos dos jogos partidários e que fale mais das necessidades do país". Nomeadamente os problemas na Saúde e a falta de respostas para os portugueses mais idosos. "Sugiro que a Presidente da República ponha esses temas na agenda", contrapondo críticas a Marcelo Rebelo de Sousa, por si caracterizado como alguém "muito presente no debate da estratégia partidário e até do arranjo parlamentar", o que diz traduzir-se nas dissoluções da Assembleia da República.

Dissolver a Assembleia da República seria algo que diz só considerar fazer "se estiver em causa o estado de Direito democrático". Algo que sucederia se o Parlamento apresentasse uma solução de Governo que não cumpra a Constituição. Quanto a Marcelo Rebelo de Sousa, defende que "poderia ter trabalhado numa solução" alternativa aquando da demissão de António Costa, na sequência do envolvimento do seu nome na Operação Influencer.

António Filipe diz esperar que "nunca seja utilizada" a prorrogativa presidencial de demitir um Governo que ponha em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. "Ainda bem que nunca fomos confrontados com isso", diz, considerando que o Presidente da República "é o último garante da democracia".

"Cumprir a Constituição é respeitar os direitos sociais e exigir políticas públicas que defendam o Serviço Nacional de Saúde, o direito à habitação, que garantam o acesso dos jovens aos mais elevados graus de ensino, que dignifiquem os direitos dos trabalhadores e que promovam a cultura", defende o antigo deputado comunista, acrescentando que "os portugueses têm o direito de exigir um Presidente da República que esteja do seu lado".

Ambos recusam discutir cenários para a segunda volta

António Filipe admite que Catarina Martins, ao contrário de António José Seguro e de Jorge Pinto, "é de esquerda sem mas". "Não tenho qualquer dúvida disso", reconhece o comunista, respondendo a uma pergunta do moderador. Mas destaca que avançou quando "não havia nenhuma candidatura à esquerda", pois considera o antigo secretário-geral como um representante do "vasto consenso neoliberal" responsável por tudo o que sucedeu a Portugal nas últimas décadas.

"Tinha duas possibilidades: ou ficava à espera ou avançava com uma candidatura capaz de agregar essas vontades", diz António Filipe, acrescentando que Catarina Martins "avançou com toda a legitimidade", mas "não favorece a convergência".

Catarina Martins diz que esperou por uma candidatura independente, como a de Sampaio da Nóvoa, permitiria uma convergência que não foi possível. E por isso se apresentou, com apoios "para lá da área política de origem", mas com "uma visão de esquerda e de avanços civilizacionais".

Carlos Daniel refere que todas as sondagens indicam que nenhum dos candidatos que tem à sua frente poderão passar à segunda volta das eleições presidenciais. E pergunta a Catarina Martins se está preparada para apelar ao voto em Marques Mendes, Gouveia e Melo, ou até António José Seguro, para impedir que André Ventura seja Presidente da República. "É uma falsa questão", responde a bloquista, recordando que ainda é altura de fazer campanha e discutir ideias.

Pelos mesmos motivos, também António Filipe recusa discutir cenários para uma segunda volta.

"O primeiro-ministro está a gozar com as pessoas e isso é feio", diz Catarina Martins

Catarina Martins é incisiva quando o moderador Carlos Daniel lhe pede uma reação às palavras de Luís Montenegro, que apontou o objetivo de o salário mínimo nacional ser elevado a 1600 euros mensais num futuro próximo, mas ainda não calendarizado, por efeito do aumento de competitividade que garante advir das mexidas na legislação laboral. "Eu acho que o primeiro-ministro está a gozar com as pessoas e isso é feio", diz a candidata presidencial apoiada pelo Bloco de Esquerda.

Para Catarina Martins, "é bom que se fale verdade". Algo que defende não estar a acontecer quando o primeiro-ministro "que só aumentou o salário mínimo em 50 euros este ano" está a dizer que "nos próximos anos da legislatura vai aumentar 200 euros todos os anos".

António Filipe acrescenta que vê "um sinal claro de que ninguém leva isso muito a sério" no facto de as confederações empresariais não terem protestado depois de ouvirem o primeiro-ministro, que também apontou a subida do salário médio para os três mil euros. "Nem eles acreditam nele", reforça o candidato presidencial apoiado pelo PCP.

Candidatos convergem nas críticas a mexidas na legislação laboral

Na véspera da greve geral convocada pela CGTP e pela UGT, António Filipe diz que "levaria ao limite os poderes presidenciais" se lhe coubesse tomar a decisão de promulgar as alterações à legislação laboral pretendida pelo Governo. E acrescenta que espera que a mobilização nesta quinta-feira leve a que a proposta, por si qualificada de "retrocesso profundo nos direitos dos trabalhadores", venha a ser retirada.

Prevendo uma "muito elevada adesão dos trabalhadores que puderem aderir", o ex-deputado comunista diz esperar que o próximo Presidente da República "não tenha que intervir". Mas, caso seja eleito, garante que suscitaria, junto do Tribunal Constitucional, a verificação da constitucionalidade de normas como a não reintegração de um trabalhador cujo despedimento seja considerado ilegal.

Por seu lado, Catarina Martins recorre ao exemplo de Mário Soares, que em 1988 foi apelidado de "força de bloqueio" pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva por apoiar uma greve geral quando era Presidente da República. Feito mais um apelo ao eleitorado socialista, a eurodeputada do Bloco de Esquerda destaca que "amplos setores percebem que o que o Governo está a tentar fazer" é uma violência profunda contra os trabalhadores.

"Se os nossos salários são baixos e os nossos empregos são precários, não vamos ter uma economia forte", reforça Catarina Martins, sem ver que haja caminho para entendimento se o Governo "não tiver outra proposta para ser negociada". E deixa um alerta a todos os trabalhadores, "sindicalizados ou não": todos têm direito a fazer greve.

Antigos parceiros de "geringonça" debatem na RTP

António Filipe e Catarina Martins têm estado muito distantes da passagem à segunda volta das eleições presidenciais, a acreditar em todas as sondagens até agora realizadas, mas mantêm a ambição de encontrarem votos suficientes à esquerda. O antigo deputado do PCP e a ex-coordenadora do Bloco de Esquerda, agora eurodeputada, têm em comum o acordo de incidência parlamentar conhecido por "Geringonça", que permitiu ao PS de António Costa governar Portugal entre 2015 e 2019.

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