Pode um partido “compensar”, por alegadas “perdas financeiras”, alguém que se candidata nas suas listas? E pode fazê-lo através do pagamento de faturas de prestação de serviços a uma empresa da qual a pessoa em causa é simultaneamente sócia e funcionária? A existir tal situação, asseguram ao DN juristas especializados, seria “muito irregular”. É que, explicam, das duas uma: ou há serviços prestados, e não se trata de “uma compensação por perdas financeiras”, ou não há serviços prestados, e “ninguém pode receber de partidos políticos por serviços que não presta”.“Seria precisa muita imaginação”, comenta Margarida Salema, presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP, que funciona na dependência do Tribunal Constitucional) entre 2009 e 2017. Assegurando nunca ter ouvido falar de algo do género, assume que, a existir, a deixaria “abismada”. Isto porque, adverte, “todas as despesas de um partido têm de ser reportadas e identificadas, e corresponder a serviços e bens reais”, e “o fim de um partido é fazer atividade política, não efetuar compensações por danos”. Acrescendo, diz ainda esta professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), que “se se trata de uma compensação, tem de surgir nas contas do partido como tal, e nunca como uma prestação de serviços”, sob pena de se tratar de “uma fraude”.Rui Tavares Lanceiro, também professor da FDUL e ex-assessor jurídico do Tribunal Constitucional, lembra que, nos termos da lei, "o financiamento dos partidos através da subvenção pública pode ser usado para as despesas do partido, que podem incluir propaganda ou mesmo financiar a remuneração de funcionários dos partidos”, mas "não existe uma previsão de remuneração por ser candidato — aliás, o financiamento das campanhas políticas é autónomo.” .Ser candidato não é um serviço que possa ser remunerado."Rui Tavaes Lanceiro, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Sublinhando porém que, se “os partidos podem usar o financiamento para pagar serviços prestados, tem de se perceber que serviços foram prestados e se estes se incluem nas finalidades dos partidos”. E conclui: “O que é certo é que ser candidato não é um serviço que possa ser remunerado.”Outro jurista, que prefere não ser identificado, vai mais longe: “Não se percebendo que serviços estariam a ser prestados que justificassem o pagamento, estar-se-ia perante uma situação de desvio de fundos (no sentido de, se se tratar de um partido com subvenção pública, esta estar a ser transferida para entidades ou pessoas diferentes do partido, sem justificação)”. Haveria “um pagamento de serviços fictícios” que seria uma fraude à lei, por constituir uma simulação, e poderia até implicar um crime, caso existisse um contrato — o crime de falsificação de documento.“Não é avença”, é “empatia”, diz Amaral DiasVem este enquadramento jurídico-legal a propósito do caso, revelado esta semana, que tem como protagonistas o partido Alternativa Democrática Nacional (ADN), a anunciada candidata presidencial do partido, a psicóloga e influencer digital Joana Amaral Dias (JAD), e a empresa Mutant Expression.Em 2024, o ADN pagou 25 830 euros à Mutant Expression (ME); em 2025, estará a pagar à mesma empresa, pelo menos nos três últimos meses, 4000 mensais (3252 euros mais IVA). Pagamentos que, nas contas do partido enviadas para o Tribunal Constitucional surgem, entre as várias despesas, sem nada de assinalável a não ser o montante relativamente elevado — em 2024, terá sido a despesa isolada mais expressiva do ADN, à excepção da relativa à “campanha eleitoral” — e o nome dos sócios da ME. É que entre eles, que são três, consta o de JAD, sendo o sócio-gerente o respetivo marido, Pedro Pinto (sem relação com o líder parlamentar do Chega).Uma descoberta que provavelmente nunca ocorreria na análise da ECFP, e que sucede graças a uma notícia do Correio da Manhã desta quarta-feira na qual o diário, em manchete, titula: “Partido paga avença a candidata”, especificando: “Joana Amaral Dias (JAD) recebe dinheiro do ADN” e “empresa do marido passa a fatura”.Asserções que, nesse mesmo dia, quer JAD quer o presidente do ADN, Bruno Fialho, certificaram serem falsas. Em direto na CMTV, a psicóloga recusou que se pudesse “chamar avença porque a avença tem um significado”, explicando que se trata, isso sim, de “uma compensação salarial parcial, muito pequena, em relação aos rendimentos que iria perder da comunicação social” devido, acusa, à sua ligação ao ADN, a qual teria tido como consequência ser “amordaçada, castigada”. JAD assegurou não se tratar de um pagamento mensal, explicando que é feito à empresa que refere como sendo “do marido” (da qual, porém, de acordo com a informação obtida pelo DN, é sócia na mesma percentagem que ele) porque, citando a própria, “sempre fui assalariada da empresa do meu marido”: “Todas as faturas anteriores, todos os pagamentos que recebi como analista da CNN, comentadora da TVI e colunista do jornal Sol, foi sempre através da empresa do meu marido, que é uma empresa de consultadoria de comunicação, informática, etc.” O pagamento de que é recipiente deve-se assim, comenta, ao facto de “o ADN ter uma postura solidária e empática com todas as pessoas que são vilipendiadas e punidas por terem uma posição política em Portugal”. Na sua página de Facebook, JAD foi mais truculenta: “É mentir. É mentira que haja uma avença, muito menos uma avença para me candidatar ou fazer campanha”. Fialho contradiz Joana: afinal há prestação de serviçosBruno Fialho também usou as redes sociais para difundir um comunicado no mesmo sentido: “O ADN nunca pagou qualquer valor a título de avença ou compensação política à Dr.ª Joana Amaral Dias”.E prossegue: “O que de facto ocorreu, e que sempre foi assumido com total transparência dentro do partido, foi a decisão de assumir parte das perdas salariais que a Dr.ª Joana Amaral Dias sofreu em consequência directa da sua candidatura pelo ADN, a qual levou ao seu afastamento injustificado dos trabalhos que exercia em várias estações de televisão, órgãos de comunicação social e no seu próprio podcast.”Questionado pelo DN, porém, o presidente do partido não esclarece qual órgão (ou órgãos) do partido decidiu sobre o pagamento em causa, e quando, nem se existe um contrato escrito com a empresa Mutant Expression.Ainda assim, embora lamentando que “já noutros partidos que cometem ilegalidades, os jornalistas não parecem ser tão interessados”, Bruno Fialho respondeu a algumas perguntas do jornal. Nomeadamente sobre qual o objeto do contrato/prestação de serviços em causa, tal como surge nas faturas, e como inscreve o partido esta despesa na respetiva contabilidade: “Serviço de Consultadoria, porque foi exatamente isso que foi feito”. ."Nunca ninguém afirmou que a empresa não prestou serviços (...). A compensação foi feita através de serviços prestados, senão não teríamos razão legal para pagar à empresa. Não vou voltar a responder a mais perguntas.”Bruno Fialho, presidente do ADN.De facto, em faturas enviadas pela empresa ao ADN, e às quais o DN teve acesso, lê-se “Assessoria de comunicação — Consultadoria” e, num mail enviado por Pedro Pinto (o sócio-gerente da ME) para o ADN acompanhando uma fatura (ao qual o DN teve igualmente acesso) está escrito “segue a fatura relativa ao serviço de consultadoria da Joana”.Quer então dizer que Joana Amaral Dias prestou serviços de consultadoria ao ADN? Consultadoria de que tipo? “A empresa prestou o serviço”, é a resposta, lacónica, do presidente do ADN. E afiança: “Se a intenção fosse cometer alguma ilegalidade ou irregularidade, como infelizmente acontece noutros partidos, teríamos simulado pagamentos em quilómetros, evitando o pagamento de impostos. Mas não foi esse o caso.Tudo foi feito dentro da legalidade, com o pagamento dos devidos impostos, precisamente para não prejudicar o Estado nem os contribuintes. Não tente procurar o mal onde ele não existe.”O DN, porém, persistiu na tentativa de esclarecimento: tanto o senhor como JAD afirmaram publicamente que não se trata de uma avença mas de uma compensação, ou seja, não haveria serviços prestados. Sendo o objeto do contrato prestação de serviços de consultadoria, que diz terem sido prestados pela empresa, é necessário insistir: houve ou não prestação de serviços?“Nunca ninguém afirmou que a empresa não prestou serviços, tal como o fez com os órgãos de comunicação social. A compensação foi feita através de serviços prestados, senão não teríamos razão legal para pagar à empresa. Não vou voltar a responder a mais perguntas.”“Isto foi uma decisão a dois, entre o Bruno Fialho e a JAD”“O aspeto que dá é que lhe estão a pagar pela ‘presença’, mas uma campanha não pode funcionar assim. Podem pagar a artistas para atuar, mas não a alguém para ser candidato”, comenta o jurista ouvido pelo DN e que pede para não ser identificado. “A lei está pensada para prevenir que as empresas financiem os partidos, mas aqui parece passar-se o contrário: um partido a financiar uma empresa.”Para além do exame das contas pela Entidade, que pode aplicar coimas, há a possibilidade de o Ministério Público considerar que há matéria para investigar, crê o mesmo jurista. Se depender de José Manuel Castro, secretário-geral do ADN desde setembro de 2024, tudo terá de ser explicado, com o presidente do partido a esclarecer o que há a esclarecer: “Ele está a reagir muito mal às perguntas, não quer responder a nada. Aliás chegou a negar veementemente que estivesse a pagar à JAD. Até se perceber que o pagamento ocorria através daquela empresa.”Frisando que nas contas enviadas pelo ADN ao Tribunal Constitucional a Mutant Expression surgia no meio de outras firmas, sem nada que chamasse a atenção, e em nome de Joana Amaral Dias apareciam apenas despesas relacionadas com a campanha ou com ações do partido (“Por exemplo transportes, ou hotel”), este advogado certifica não ser verdade que “os órgãos partidários tenham permitido o pagamento a JAD”, e que “não há qualquer contrato ou documento justificativo. Temos objetivamente o recebimento de uma determinada quantia a título de serviços prestados, mais quais foram os serviços?” .“Não há qualquer contrato ou documento justificativo. Temos objetivamente o recebimento de uma determinada quantia a título de serviços prestados, mais quais foram os serviços?”José Manuel Castro, secretário-geral do ADN.Bruno Fialho, atesta, “é simultaneamente presidente e tesoureiro, e tomou esta decisão sozinho. Isto foi uma decisão a dois, entre ele e a JAD, e não há qualquer contrato ou documento justificativo. Se aparecer algum, é falso.”Para o secretário-geral do ADN, a questão é simples: “Este partido tem uma subvenção mensal de 24 mil euros. É dinheiro público, e o dinheiro público exige uma transparência absoluta. Já propus até uma auditoria externa às contas, porque estão a ser analisadas e há mais coisas que não parecem bater muito certo.”Trata-se de uma decisão que Joana Amaral Dias, defensora, no seu discurso público, da mais absoluta transparência, será decerto a primeira a apoiar. Aliás há dois anos, enquanto colunista do DN, escrevia: “Todos ‘dão um jeito', um jeitinho, um desenrasca. É ‘mexer os cordelinhos’. É a nação das influências, a identidade das informalidades e habilidades, troca de favores, amiguismo, clientelismo, nepotismo. Ismos pútridos que medram nos lobbies partidários, noutros grupos de interesse organizados ou de privilegiados que se julgam investidos de direitos consuetudinários e vivem nos mundinhos onde tudo isso é desculpável e irrecusável”.O DN enviou, por email, várias perguntas ao sócio-gerente da Mutant Expression, mas não obteve resposta.