Aos 64 anos, João Cotrim de Figueiredo, eurodeputado e antigo líder da Iniciativa Liberal (IL), candidata-se agora a Presidente da República. Depois do anúncio a 13 de agosto, conseguiu em 48 horas as 7500 assinaturas necessárias para ir a eleições e já formalizou a candidatura junto do Tribunal Constitucional.Quais as razões que o levaram a candidatar-se a Belém? A IL tinha uma candidata (Mariana Leitão), que entretanto se tornou líder do partido e saiu da corrida presidencial. A sua candidatura vai além da IL? A iniciativa de me candidatar foi estritamente pessoal. Não consigo precisar a altura, mas a decisão ocorreu algures pelo final de junho, não tendo diretamente nada a ver com a retirada da candidatura por parte de Mariana Leitão. Prendeu-se com o facto de eu ter sentido, analisado, visto, uma faixa do eleitorado que não se revia, nem estava entusiasmado com nenhum dos candidatos. Acho que as evoluções recentes, quer da minha campanha, quer das sondagens, mostram essa tendência.Teria avançado mesmo que Mariana Leitão continuasse na corrida?Provavelmente não. Por achar que esse espaço já estava preenchido?Sim, bastaria esse espaço ter uma alternativa minimamente entusiasmante ou credível e provavelmente eu não teria avançado.Como define esse espaço? É o de um público mais jovem?É, sobretudo, o espaço dos que acham que Portugal pode ser mais e melhor, que é a minha formulação mais propagandística, se quiser. São tipicamente as pessoas que querem fazer a sua vida em Portugal, ou seja, não serem obrigadas a fazer essa vida fora do país, resistindo aos obstáculos e às dificuldades que Portugal, obviamente, apresenta em relação a outros países. É verdade que uma parte grande dessas pessoas mais dinâmicas e com mais vontade de fazer são de idade mais jovem. Mas há muita gente, a meio da sua vida e até no final da sua vida profissional, que continua a ter essa vontade de mudar as coisas. E que não se revê nos outros candidatos?Sim, acho que não é muito polémico dizer que estão muito mais interessados ou na política do dia ou até olhar para trás do que propriamente olhar para frente e preparar o futuro.É liberal, mas assume-se como um candidato de direita?Não gosto de qualificar essa discussão de direita e esquerda sobre os liberais. Cada vez que há uma investidura de uma nova Assembleia da República, nunca ninguém percebe o que é que nós estamos a tentar dizer. Percebo que seja mais fácil fazer a distinção esquerda e direita em termos clássicos desde o tempo da Revolução Francesa. Acho que não faz grande sentido na política atual e ainda menos numas eleições presidenciais. O que digo é que é muito mais importante a forma e a atitude que um Presidente da República tem, uma vez eleito, em relação, por exemplo, ao futuro, ou a energia com que o faz, ou o conhecimento técnico que tem nas matérias, do que o seu espaço de origem ser de um partido considerado mais à direita ou mais à esquerda. Escolhem-se personalidades e escolhem-se caráteres, também.Acha que há espaço, em Portugal, para um liberalismo no centro-esquerda?Não vou ser um Presidente só para os liberais. Não é para isso que sou candidato. Há uma parte da resposta à primeira pergunta que não dei e que é importante para justificar esta: é que não só via que esse espaço não estava representado, como mesmo o futuro de Portugal, que depende hoje muito do futuro do projeto europeu, era mais bem defendido, quer na perspetiva portuguesa, quer na perspetiva do projeto europeu, no Estado-membro mais bem defendido do Parlamento Europeu. Eu explico. O Parlamento Europeu tem óbvias limitações de intervenção, de capacidade política, desde logo porque não tem iniciativa legislativa. Os impactos da sua ação resultam do debate que lá se verifica e das emendas que pode apor a diplomas que vêm de outras instituições europeias. Tem uma intervenção política direta limitada. Atrevo-me a dizer que mesmo que funcionasse muito melhor do que funciona hoje, sem alguma cacofonia, sem alguma irregularidade e instabilidade nos apoios e nas maiorias que se criam à volta das propostas, mesmo se funcionasse bem, continuava a ter no Conselho Europeu (CE) o principal óbice para a tomada rápida das decisões e das reformas que a Europa precisa. Portanto, são os representantes dos Estados-membros que continuam, na maior parte dos casos, a privilegiar os seus interesses nacionais muito acima dos interesses do projeto europeu, o que é uma miopia terrível. Qualquer Estado-membro sabe que fora da União Europeia (UE), per si, estaria sempre pior do que dentro. Esta UE tem gravíssimos problemas que já foram identificados, entre outros, pelos relatórios Letta e Draghi. Mesmo assim, é melhor do que estar sozinho. Também não estou satisfeito com o estado da Europa, gostava que ela se reformasse. É aí que digo: para reformar, o grande estrangulamento está no CE. Fazer política nos Estados-membros, de forma a que o representante desse Estado-membro no CE seja, digamos, mais arrojado e capaz de defender as reformas que a Europa precisa, é uma forma de ajudar Portugal e a Europa. Tenho a facilidade de saber que o interesse português e o interesse europeu estão, em larguíssima medida, alinhados.Acha que tem vantagem face aos outros candidatos, devido a essa experiência que também tem enquanto eurodeputado?Não. Só a tenho se os meus estimados adversários não quiserem fazer a leitura, que é razoavelmente pacífica. O que estou a dizer não é propriamente astrofísica, nem nada que muitas pessoas não tenham visto e escrito já. De facto, a Europa precisa de reformas urgentes, e quer a coragem para as fazer, quer a urgência que falta, tem muito a ver com os bloqueios no CE. Reformas institucionais não são reformas de tomada de decisão. Essas reformas que fariam, de facto, voltar a dar gás ao projeto europeu e ao desenvolvimento económico e social dentro da Europa, precisam de coragem. O Brexit também dificultou mais esse processo?Com alguma pena, registo que o Reino Unido hoje também já não é o que era há dez anos. Mas, mesmo assim, tenho de admitir que eram, desde logo, o segundo poder nuclear dentro da UE. No atual contexto de geopolítica, com os problemas da Defesa a voltarem, não é de somenos. Primeiro, a diferença é grande. Segundo, apesar de todas as mudanças sociais e políticas que se verificaram no Reino Unido nos últimos 10 a 15 anos, continuam a ser dos países europeus com uma afinidade mais natural com os problemas das liberdades individuais e da defesa.Mais liberal? Sim, mas no sentido clássico do termo, não tanto no sentido partidário ou ideológico. No sentido de atitude que os cidadãos têm, não só direitos de participar na vida cívica e na vida política, mas o dever de o fazer. Os ingleses têm esse hábito muito arraigado, fruto até, mais do que das suas heranças normandas, ou das vivências da mais longa e mais velha democracia do mundo, das invasões de vikings, que eram particularmente comunitárias. Estabeleceram uma lógica de ombudsman, de provador local, de aldeia, que ainda hoje se verifica, especialmente nas populações mais pequenas. É algo muito antigo que faz falta ao projeto europeu. Os ingleses decidiram livremente sair da UE. Hoje, as sondagens indicam que se arrepen- deram. Se calhar isso funcionou para aqueles que na Europa achavam que deixar sair o Reino Unido era uma vacina para todos os outros que alguma vez pudessem querer sair, mas teve um custo elevado.Em Portugal, têm existido ciclos em que estamos mais voltados para o Atlântico e para o mar, e outros em que estamos mais virados para o continente, como aparentemente acontece agora. É possível conciliar as duas coisas?Uma das matérias que acho que devemos preparar para o futuro é que a UE tal como a conhecemos, funcione de forma bastante diferente. Não tem a tal coesão política a nível do CE para continuar a exigir unanimidades ou maiorias muito vastas para a maior parte das suas decisões, dando origem àquilo que, em tempos, já se chamou Europa a várias velocidades e que agora, no grupo franco-alemão, aqui há três ou quatro anos, se passou a batizar como Europa de ciclos concêntricos. É uma forma poética de descrever a coisa? Não, mas mais inteligente, por acaso. Não é só semântica. No centro desses ciclos concêntricos estariam os países que admitiam as políticas comunitárias em maior número. Quanto mais dessas políticas comuns os países aceitassem, mais no centro do círculo estariam. Acontece que Portugal, nessa arquitetura, teria de tomar opções. É legítimo alguns portugueses acharem que a Europa é um empecilho e preferirem viver fora da Europa, mas se acharem, já agora, que o achem informadamente. A pergunta que faço é: têm ideia quais seriam as consequências? E qual seria a alternativa? Rapidamente se perceberia que não podíamos ficar sozinhos. Temos alianças que ou têm a ver com a geografia, e só temos um vizinho terrestre, ou têm a ver com interesses geopolíticos. Acho que aí o atlantismo se sobrepõe. Isto é um debate que acho que deve ser feito além da minha como Presidente da República, que é apenas mais uma, porque não tenho responsabilidade na política externa.O risco de, por exemplo, o partido de Marine Le Pen vencer as próximas presidenciais em França representa um risco para a própria sobrevivência da UE, como a conhecemos?Acho que qualquer governo que mude para mãos de forças políticas que não tenham o projeto europeu no centro das suas preocupações e dos seus interesses, dificulta. Há o risco de tentarem desmantelar a UE por dentro. Tendo dito isso, eu registo, e também não sou o primeiro a fazê-lo, que as forças de extrema-direita na Europa, no último ano e meio deixaram de criticar a UE da mesma maneira. Exatamente pelo que dizia ao princípio: toda a gente começa a perceber que se o projeto europeu, por algum motivo, fracassar e implodir, cada país sozinho ficará bastante pior do que está hoje.Definir-se-ia, se for eleito, como um presidente europeísta, mas realista? Sempre. Acho que devemos puxar a ambição até ao limite da realidade, e depois limitá-la exatamente para o que é possível fazer. A mudança e a vida das pessoas passa-se no mundo real. O que não conseguimos mudar no mundo real, com o tal realismo e as capacidades de ação sobre o mundo real, não contam. São intenções, são discursos bonitos, isso há muitos. As pessoas percebem a diferença no seu dia a dia, ou pior, desinteressam-se da política, e consideram-na, bem como aos políticos do costume, como culpados e incapazes de mudar as suas condições de vida, e, como tal, viram-se para outras fontes.Deixe-me puxar a fita um bocadinho atrás. Falou na questão das alianças e no compromisso europeu dos Estados e de Portugal. Já mencionou também no debate com Gouveia e Melo que Portugal deve respeitar os compromissos com a NATO e, se for necessário, enviar tropas para a Ucrânia, também em caso de necessidade. Enquanto Presidente da República, admite regressar com o Serviço Militar Obrigatório? Não. As carências de efetivos são, de facto, um problema, mas o tipo de necessidades e competências necessárias às Forças Armadas do presente, incluindo as portuguesas, são completamente diferentes do que eram, já nem digo há 10 anos, se calhar há cinco. Não são supríveis com recrutamentos obrigatórios de militares durante dois anos.Qual seria a sua alternativa? Obviamente, redefinir o que são as funções das Forças Armadas portuguesas no contexto da NATO. Recrutar, pagando convenientemente, se calhar a um número inferior de militares do que está previsto na Lei da Programação Militar e nos quadros previstos, mas mais bem pagos de outro tipo de competências. Como, por exemplo?Diria que as competências técnicas, hoje em dia, são três quartos das ações militares de cariz ofensivo ou defensivo. Exigem um conhecimento técnico, tecnológico, informático, cibernético, completamente distinto de há cinco anos. Esta guerra na Ucrânia revelou que é possível conduzir operações militares, recorrendo a novos instrumentos que não existiam há 10 anos com uma fração do custo e eficiências comparáveis aos mais caros equipamentos, nomeadamente os de defesa aérea. Nesse sentido, muda muito a equação até dos equilíbrios de forças militares. Aquilo que no passado se dizia que era a supremacia absoluta dos EUA, por terem um orçamento de Defesa que, por si só, era maior que todos os outros parceiros da NATO juntos, já não é tão importante. Porque o que um F-35, que custa quase mil milhões de dólares, pode fazer, é, em boa medida, executável por um Exército de mil drones médios a uma fração do custo. Essa superioridade vinda do gasto de defesa já não é exatamente a mesma e, na maior parte dos teatros de guerra, o conflito tornou-se puramente tecnológico.E como é que Portugal se pode preparar?Deixe-me voltar atrás para clarificar e deixar bem claro o que considero respeito por duas obrigações e os compromissos assumidos no contexto da NATO. É que nós, de facto, para um dia podemos exigir ser defendidos, temos estado preparados para defender também. Mas a primeira obrigação de um chefe de Estado é, obrigatoriamente, bater-se para que haja paz, para que não haja conflitos e para que as Forças Armadas portuguesas só entrem em teatro de guerra em caso de absoluta necessidade. Nenhum Presidente da República enviará, de ânimo leve, pessoas para a guerra. Sendo certo que já há cerca de 1500 militares portugueses em operações, algumas delas com um embate de risco bastante significativo..No quadro da NATO, Portugal tem um conjunto de compromissos de forças que estão alocadas. Isso faz sentido ou a aliança devia dar a Portugal uma responsabilidade mais ligada ao mar, ligada às vias marítimas que passam aqui na nossa costa?Já o faz. As instituições que têm sede em Portugal, aquelas que substituíram o antigo Cominberlant, já têm, sobretudo, tarefas de vigilância. As pessoas não têm muita noção, porque isso não representa tanques na rua, nem mísseis a passar por cima, mas nós já estamos envolvidos na guerra. O número de ataques cibernéticos, de forças soberanas, incluindo russas, a instituições, ou os navios que passam ao largo da costa portuguesa, dentro e fora das nossas águas territoriais, em óbvias missões que não podem ter outra missão que não seja de reconhecimento, incluindo sobre os cabos submarinos que ligam Portugal à costa leste dos EUA. Não estamos fora da guerra. Estamos a 5 mil quilómetros da frente de batalha, dos boots on the ground, mas não estamos fora da guerra. Nesse sentido, acho que é importante que Portugal sinta paz. Como acha que a Europa se deve relacionar com a Rússia nesse cenário, após o fim da guerra? Infelizmente, tenho a dizer que aquelas analistas e historiadores que acham que há uma pulsão imperial na Rússia desde há muitos séculos, têm razão. Se existe, só não será real e não se traduzirá em agressões e tentativas de conquista de território, se sentirem que há mais a perder do que a ganhar. Daí a necessidade de dissuasão, que tem dois níveis, cada um tão importantes como o outro: a existência de força suficiente, ou seja, se os Exércitos europeus, todos somados, são muito mais poderosos que os russos, é preciso esta área ser suficientemente coordenada. Daí a importância que dou à reformulação do Pilar Europeu da NATO, para que essa coesão exista também na hora de operacionalizar essas forças. A segunda é a vontade política de as utilizar. Porque ter um excelente dispositivo militar e depois os russos terem a noção de que os europeus nunca o vão usar, não serve de nada.Temos uma greve geral em menos de duas semanas. Se fosse Presidente da República, neste momento, como é que lidava com esta situação? Tentava chamar as partes a Belém e tentava acalmar as coisas entre o Governo, a CGTP, UGT e outras forças sindicais? Apesar de tudo, é a 11ª greve geral que temos em democracia. Não é propriamente uma circunstância extraordinária, nem é o fim do regime. Isto para desdramatizar um pouco a questão. A greve geral é sempre, obviamente, o último recurso por parte das forças sindicais. E não negociar ao ponto de evitar uma greve geral também é um último recurso por parte quer das confederações patronais, quer, neste caso, do Governo, que também já está envolvido. Acho que o papel do Presidente da República será sempre o de remover os obstáculos que pudessem haver relativamente à capacidade de negociação de cada uma das partes. Se alguma das partes estivesse suficientemente, vamos dizer, extremada para não querer sequer sentar-se à mesa, aí sim devia fazer um apelo ao diálogo e à razoabilidade. Agora, é conhecida a minha posição de que, no final, eu gostaria que resultasse uma legislação laboral mais flexível do que aquela que temos hoje..Mas essa posição é, em parte, contrária à do partido que o apoia, que já disse ser contra esta lei laboral.Respondo apenas pela minha cabeça. Não pergunto sequer ao partido o que acha ou não acha do diálogo. Talvez demonstre a tal capacidade que eu tenho de ter opinião.E da tal independência que foi acusado de não ter.Não vou voltar a esse tema porque acho que não vale a pena. Está esclarecido. Já o tinha feito publicamente, por ter uma posição diferente, por exemplo, em relação à votação no Orçamento do Estado. E continuarei sempre que tiver opiniões diferentes. Provavelmente nem vou reparar porque não vou consultar o que é que a IL disse sobre isso antes de exprimir a minha opinião. Neste caso concreto, acho que a legislação laboral deve, de facto, ser mais flexibilizada. Já há preocupações crescentes de que, em geral, a legislação laboral, e não só, tenha dificuldade em acompanhar as evoluções tecnológicas e de tipos de trabalho que as pessoas vão ser chamadas a prestar. Já há essa dificuldade. Se nos atrasarmos mais ainda, pior será. E não venham com o argumento de que leis laborais mais flexíveis causam precariedade. Temos, segundo os dados mais recentes, a segunda lei laboral mais rígida na UE e somos o terceiro ou quarto país mais precário.Mas faz sentido, por exemplo, mexer na questão do luto gestacional?Não. Quando digo que promulgaria e quero que a legislação laboral saia mais flexível, não quer dizer que esteja de acordo com cerca de 100 alterações que estão propostas ao Código do Trabalho. Sejamos claros. Deixe-me distinguir o plano de um candidato que sou e devo responder a todas as perguntas para que toda a gente fique a saber o que eu penso, do Presidente que serei, que só manifestará a sua opinião em privado, salvo casos excecionais. Não serei contrapoder, não estarei a exibir politicamente contradições ou divergências com o Governo.Não será um Presidente comentador?Não serei um Presidente comentador, não banalizarei o uso da palavra presidencial, nada disso. Agora, tenho conhecimento suficiente, quer de matérias económicas, quer de muitas coisas que tive de me informar tecnicamente, para poder ser um coadjuvante de qualquer Governo, de qualquer cor, na discussão e na avaliação sobre se os efeitos preten- didos com a legislação vão ser atingidos ou não, porque de efeitos perversos, que falávamos ao princípio, está a nossa legislação cheia e há muitos deles perfeitamente previsíveis à partida. Isso serei, mas não serei contrapoder. No caso da legislação laboral, há especialmente naqueles aspetos que me parecem contrários a uma outra política pública que Portugal tem tardado em desenhar com sucesso - e reconheço que não é fácil, porque outros países também não têm conseguido - que é a política da natalidade. Portanto, luto gestacional, as licenças e as flexibilidades de horários para a amamentação, a possibilidade de recusa do trabalho noturno ou de fim de semana para as famílias com crianças com menos de 12 anos ou com necessidades especiais.Acha que aí não se devia mexer? Acho que não, porque estamos a tentar incentivar as pessoas a terem mais filhos, a poderem reconstituir famílias sem sentirem que estão a perder a sua participação ativa no mercado de trabalho.Na semana passada, o DN deu conta de que houve algumas escutas com conversas de António Costa, enquanto primeiro-ministro que não foram comunicadas, a seu tempo, ao Supremo Tribunal de Justiça, no Caso Influencer. É mais um processo que fragiliza a imagem da Justiça aos olhos dos portugueses?Como o Presidente tem alguma influência junto da Procuradoria-Geral da República (PGR), na qual participa na nomeação, faria ver ao senhor ou à senhora procuradora que estivesse em funções que é absolutamente essencial ser mais eficaz, transparente, rápido e claro na comunicação. Para explicar por que determinados fenómenos, sejam eles de escutas não-participadas, ou de buscas coincidentemente com outras ocasiões que parecem demasiado coincidentes, digamos assim, quer demoras em determinados processos. Era bom que tudo isso não deixasse qualquer dúvida para que não se criasse a tal suspeição, que muitos gostam de usar, de que o Ministério Público (MP) tem, de alguma forma, uma agenda.E olhando para o Caso Spinumviva? É um bom exemplo da espada de Dâmocles que está em cima do primeiro-ministro? É, e para o qual se tentou resolver usando este mecanismo da averiguação preventiva. Mas depois, lá está, numa comunicação pouco clara e pouco feliz foi descrita como, indo ter uma conclusão até ao Natal, como presente de Natal. Presente para quem? Não é essa a forma de comunicação. Acho que aí o Presidente pode ter um papel muito importante de influência. Desde logo, nas substituições dos procuradores-gerais, que ocorrem com a regularidade que se conhece, escolher pessoas que tenham esse perfil também. Não basta ser um bom técnico para dirigir o MP, é importante ser também um bom comunicador e ter noção da importância que a população dá ao trabalho do MP. A magistratura judicial também tem muito o que se lhe diga. Especialmente porque, lá está, na minha permanente tentativa de olhar para o futuro, desafio-vos a olharem para o número de inscritos nos cursos do Centro de Estudos Judiciários que podem dar origem a qualquer das carreiras. Vamos ter falta de juízes daqui a pouco tempo. Da mesma maneira que tivemos falta de médicos e de professores, vai acontecer com mais médicos e com mais professores. O que é que está a impedir? Do ponto de vista dos que estão a cursar direito, pelo menos os jovens com quem contacto, não é uma atividade desinteressante ou pouco desafiante. Alguma coisa mais prática, digamos assim, está a impedir que eles depois se dediquem a essa carreira. Sou muito mais adepto de duas coisas: de todo o tipo de organização na justiça que mine a possibilidade do corporativismo se apoderar da forma de relacionamento da justiça com o resto da sociedade. Uma coisa é a separação de poderes, que obviamente defendo por princípio convicto. E outra coisa é a ausência de escrutínio ou a falta de vontade de responder àqueles que tenham legítimas questões a colocar ao funcionamento da justiça.Se fosse presidente, como é que lidava com aquele comunicado da PGR que tinha um parágrafo que eventualmente causou a queda do Governo de António Costa?Faria, de facto, muita questão de saber exatamente como é que aquele parágrafo foi lá parar e o que estava em causa. Houve várias versões a vir a público, algumas com a introdução tardia do parágrafo, outras com a introdução do parágrafo depois de uma outra versão. Voltamos ao princípio: não pode haver, nem na magistratura de MP, nem na magistratura judicial, motivos, especialmente aqueles que têm a ver com a falta de informação, para dar azo a suspeições. Não pode. A população, os portugueses têm que ter confiança na sua Justiça. Em bom rigor, e isto também não é dito vezes suficientes, olhando para a justiça penal, a captar todos os crimes, as infrações mais graves,não estamos particularmente mal, nem em tempo de tramitação, nem em correção das decisões. Há poucos recursos que são, do ponto de vista da forma da substância, alterados. Também convém dizer isto. Não está mal. É na parte administrativa e nos crimes de colarinho branco e económicos que as coisas se complicam bastante. Isso alimenta a tal percepção de corrupção, por exemplo, que o candidato André Ventura até falou no debate contra Marques Mendes. Sim, é a história da justiça para ricos e justiça para pobres. Uma justiça tardia não é justiça.Acha que se cria uma ideia também, se calhar exagerada, de que estamos num mundo de corrupção, num país demasiado corrupto, ou é uma percepção? No que diz respeito à justiça provavelmente dita, a minha percepção é que sim. Mas gostava de dizer isto com mais convicção, porque eu sou um grande defensor do papel da justiça numa sociedade democrática. A minha convicção é que não temos um problema endémico de corrupção na justiça. Já não diga a mesma coisa, já fui claro em relação a isso, noutros sistemas, como o sistema de saúde, o sistema de segurança social.E o país? Como sabe, esta é uma das bandeiras de André Ventura.Bom, qual é a linha que separa o favorzinho, do compadrio, da corrupção? Depois começamos a traçar linhas. A questão principal, para mim, é que não podemos ter uma cultura que aceite com naturalidade o que não decorre nem da lei, obviamente, nem do desempenho cabal das competências de cada órgão, neste caso, órgãos do Estado versus competências e direitos dos cidadãos.Lutaria, enquanto Presidente da República, por um pacto pela reforma da Justiça?Pactos é a palavra que eu mais odeio. Um pacto só é útil se estivermos de acordo com o destino final. Pacto por pacto, para fazer alguma coisa, para fingir que aqui há um consenso, para mim é pior. Estamos a tentar esconder o problema atrás de um consenso. Está toda a gente de acordo. Vou dar um exemplo, para isto não parecer tudo etéreo, que é uma leitura já várias vezes usada por mim relativamente ao Sistema Nacional de Saúde, incluindo o Serviço Nacional de Saúde no seu centro.Que, aliás, acusou no passado domingo, na apresentação do seu manifesto, de estar “corrupto”. Usei a palavra corrupção de propósito porque há corrupção legal, que as pessoas normalmente associam às contrapartidas que recebem para praticar um ato ilícito, o que aconteceu, por exemplo, com as duas funcionárias do Centro de Saúde de Cortegaça. Isso é corrupção. Mas há corrupção moral, que é, por exemplo, profissionais de saúde utilizarem as lacunas e os incentivos perversos do SIGIC para se comportarem de tal forma imoral ou amoral que retiram recursos do sistema. Entra-se aí numa discussão ética.E a ética para si é a lei ou vai além da lei? Muito além da lei. É esse o ponto. Temos de ter dentro de cada um de nós o filtro daquilo que se deve e não deve fazer, daquilo que é ou não é aceitável fazer. Fala-se muito pouco disto. A grande fonte destes crimes bem afinados, é a cultura da transparência. Quando as pessoas não acharem normal terem de deixar uma nota de 50 euros para ter um processo expeditado em qualquer repartição, quando não acharem normal que possam pagar a alguém para ter uma senha para marcar uma consulta num centro de saúde, quando as pessoas não acharem normal e se rebelarem, estão a fazer a cultura democrática, a cultura da transparência. Esse crime é dez vezes mais eficaz e dez vezes mais importante do que o crime legal, do que a definição legal, do que é ou não corrupção. Não quero invocar o Rudy Giuliani a despropósito, mas ele dizia que quando se evitavam os grafitis estavam-se a contribuir para evitar os assassinatos nas cidades. É um bocado assim, se a pequena delinquência, se a pequena infração, se a pequena corrupçãozinha, o favorzinho, a tal cunha, não for tolerada ou for menos tolerada, estamos a dar um grande passo para evitar a corrupção. A corrupção existe em todo lado. O que difere é a forma como os países aceitam ou não. E não há antídoto mais poderoso para a corrupção do que a censura social imediata.Mesmo para terminar, abordemos os poderes presidenciais. O Presidente da República tem o poder de usar a chamada ‘bomba atómica’, a dissolução do Parlamento. Em que circunstâncias a utilizaria?Não vou dizer nenhum caso específico para não ficar limitado na decisão. Mas, para não fugir à questão, digo-vos que a principal preocupação vai ser a da estabilidade. Não pela estabilidade em si, que só é boa se estivermos no caminho certo ou numa situação que seja adequada. Ou seja: se o Presidente tiver a noção que para resolver um impasse político, novas eleições vão produzir nova relação de forças que possa ser mais estável do que aquela que evidentemente se esgotou, então sim, vale a pena fazê-lo.Mesmo que isso possa levar a um Governo liderado pelo Chega? Não traça linhas vermelhas?Não, não traço. Acho que um Presidente que jura respeitar a Constituição tem de levar em conta os resultados eleitorais, incluindo a eventualidade de este ou aquele partido ser o mais votado. Daí não decorre que a solução de um Governo de um determinado partido seja a mais estável. Depende da reação que se preveja dos outros, que podem até nem ter a mesma orientação, mas que já se está a ver que se vão unir contra esse Executivo. Há muitas coisas que têm de ser tidas em consideração. Em caso de manifesto impasse, a dissolução só é, de facto, uma solução se conduzir a princípios a estabilidade. Estou a dizer isto assim porque acho que, por exemplo, a dissolução na decorrência da demissão de António Costa e do parágrafo que há pouco falávamos, eu não a teria feito.Teria convidado Mário Centeno, por exemplo, a formar Governo?Teria feito bastante força junto do partido que tinha a maioria absoluta para que não fosse esse o nome indigitado porque acho que já tinha dado provas que não tinha sentido de Estado suficiente. Se me perguntassem o que faria, dependeria mais uma vez da tal análise multifatorial. Olhando para outras dissoluções nos últimos 25 anos, começando ainda no tempo do Presidente Jorge Sampaio. Teria agido da mesma forma?Quando mais tarde se pronunciou sobre isso, Jorge Sampaio indicou uma série de circunstâncias e variáveis que só quem lá estava é que poderia verdadeiramente avaliar. Eu não estava, não quero ser injusto com o presidente Jorge Sampaio, mas do que eu conhecia de fora e conhecia das personalidades que estavam envolvidas, eu não teria dissolvido o Parlamento. Do que sabia, portanto, como se diz em bom português e não querendo substituir Jerónimo de Sousa na utilização de provérbios: “Só quem está no convento é que sabe o que vai lá dentro.”Mesmo para terminar, deixe-me abordar o tema da revisão constitucional. Tendo em conta o atual contexto parlamentar, há uma maioria de dois terços à direita e esse processo pode ser aberto. Enquanto o Presidente da República, consideraria falar com os dois maiores partidos de direita para que se entendessem neste assunto, porque o PSD já se excluiu desta conversa? E, já agora, se defende que a Constituição deve ser revista, já que vai jurar cumpri-la.Não tem a ver com o juramento. Porque se o juramento implicasse que não pudéssemos decidir na Constituição, não havia revisões nenhumas. Não tem a ver com isso. Tem a ver com o facto de o Presidente da República, tendo jurado defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição, deve ser talvez a única pessoa do país que não se deve pronunciar sobre isso, ter iniciativas sobre isso e ter opiniões públicas sobre isso a partir do momento em que é Presidente da República. Acontece que fui deputado da Assembleia da República até há pouco tempo e participei numa comissão de revisão constitucional. Portanto, é conhecida a minha preferência por alterações à Constituição. Mas a partir do momento em que for eleito jurar fazer cumprir a Constituição, serei a última pessoa a fazer qualquer démarche a favor ou contra aquilo que o Parlamento e os partidos decidirem fazer, como me parece óbvio. Sendo conhecida a minha opinião, ela deixará de contar para todos os efeitos práticos.