As propostas de resolução apresentadas pela Iniciativa Liberal e pelo Chega para as estatísticas oficiais passarem a incluir dados sobre a nacionalidade e estatuto de residência dos autores e vítimas de crimes cometidos em Portugal têm a aprovação dependente dos grupos parlamentares da Aliança Democrática. Embora mesmo um voto favorável do PSD e do CDS-PP não garantam que a Assembleia da República vá recomendar ao Governo que faça alterações com impacto no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) e no Portal Online de Estatísticas da Justiça, pois as diferenças significativas entre os dois textos dificultam que todas as bancadas à direita do PS possam convergir na mesma orientação de voto. Ao que o DN apurou, o grupo parlamentar do PSD ainda não discutiu internamente o assunto, que se tornou mais complexo com a apresentação do projeto de resolução do Chega, nesta terça-feira, seis dias após a Iniciativa Liberal ter sido a primeira força política a querer submeter a votos a recomendação de que o RASI e o Portal Online da Justiça passem a conter dados relativos ao género, idade, nacionalidade e tipo de autorização de residência da criminalidade participada, tanto dos autores como das vítimas. Mas o partido liderado por André Ventura foi mais longe, requerendo a identificação dos dados relativos à nacionalidade, naturalidade, etnia e à permanência em território nacional de suspeitos e/ou condenados pela prática de crimes registados pelas autoridades policiais, bem como das vítimas, recomendando ainda que os mesmos elementos constem de inquéritos de vitimação e de delinquência autorrevelada.Apesar das dúvidas entre os sociais-democratas, o primeiro-ministro admitiu a possibilidade de haver alterações no RASI aquando do último debate quinzenal na Assembleia da República, a 15 de janeiro. Em resposta ao líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, Luís Montenegro admitiu que se poderá “aprofundar o conhecimento da factualidade subjacente aos fenómenos criminais”.O primeiro-ministro disse que, partindo do princípio que se o projeto de resolução dos liberais - então o único relativo ao tema - fosse aprovado na Assembleia da República, o levaria a discussão no Conselho Superior de Segurança Interna. Quanto à informação pedida, acrescentou que não lhe parecia que “haja algum problema na sua recolha”. . Diferenças em quem propõe.Entre os partidos que querem a nacionalidade dos autores e vítimas de crimes nas estatísticas oficiais há diferença de motivações. Do lado da Iniciativa Liberal, a principal justificação para a alteração é que “a política deve basear-se em factos e dados”, pelo que “a sua não disponibilização ou a sua parca qualidade é contraproducente e serve apenas de catalisador de preconceitos e estigmas, ao invés de proteger e retratar de forma fidedigna as dinâmicas criminais”. Por seu lado, o Chega diz querer “soluções para reduzir o conjunto substancial de crimes que ficam fora do radar das estatísticas do sistema de justiça criminal, assim fomentando uma imagem destorcida da criminalidade em Portugal, que tudo tem de artificial e forçada”. E alega ser “imperativo” avaliar a dimensão do que descreve ser uma realidade “associada ao aumento da imigração” e que “não passa para o RASI, ou que nele é retratada de forma a criar uma perceção diferente da realidade, mais amenizada, para contento dos cidadãos nacionais e para funcionar como isco para turistas”.Procurando apurar se as diferenças entre os textos serão irreconciliáveis, o DN perguntou aos grupos parlamentares do Chega e da Iniciativa Liberal se estarão dispostos a votar favoravelmente a proposta do outro partido. Pelo lado dos liberais, a resposta foi evasiva, alegando-se que o projeto de resolução do Chega ainda não fora analisado, enquanto fonte oficial desse partido disse que ainda não foi decidido o que os seus deputados irão fazer quando for agendada a proposta dos liberais. .Recusas à esquerda.No que toca ao PS, a líder parlamentar Alexandra Leitão disse, no seu espaço de comentário televisivo “O Princípio da Incerteza”, na CNN Portugal, numa altura em que só tinha sido apresentado o projeto de resolução da Iniciativa Liberal, que a alteração no RASI acarretaria “vantagens e desvantagens”. No entanto, mesmo dizendo que ainda não tinha uma posição definida, a deputada, que irá candidatar-se à presidência da Câmara de Lisboa nas eleições autárquicas deste ano, e participou na marcha “Não nos encostem à parede”, organizada em protesto contra a operação policial que levou dezenas de imigrantes a serem revistados na Rua do Benformoso, junto ao Martim Moniz, deixou ímplicitas as suas reticências, dizendo temer que a alteração viesse “abrir uma caixa de Pandora”. “Diria que a nacionalidade e o género me parecem elementos que podem ser importantes para definir políticas públicas, para saber mais, para se desfazer algumas coisas que têm sido ditas. Continua-se a tentar fazer uma relação entre insegurança e estrangeiros, que não me parece ser confirmada. Por esse lado, diria que isso faz sentido”, disse Alexandra Leitão, contrapondo o “receio de que se possa vir a entrar numa rampa deslizante em que a seguir se diz que é interessante também se perceber a etnia, credo religioso ou outro tipo de coisas - quanto a mim inúteis - e que poderão resvalar para uma coisa terrível, que é a culpa coletiva, e que está sempre errada”.A previsão da líder parlamentar socialista revelou-se certeira, pois o Chega acrescentou a etnia aos dados requeridos pela Iniciativa Liberal. Até que ponto isso fará qualquer diferença na orientação de voto do PS relativa aos dois projetos de resolução é questionável, e não foi esclarecido, apesar das tentativas do DN. Mas é por demais evidente que na Assembleia da República haverá resistência da esquerda.Do lado do Bloco de Esquerda, é muito evidente a recusa. Segundo o grupo parlamentar, aquilo que o projeto de resolução da Iniciativa Liberal pretende é “acompanhar a tendência de radicalização e polarização que se assiste em todo o campo da direita, particularmente em matéria de imigração, procurando criar desconfiança, sem qualquer fundamento empírico”. E aponta baterias à intervenção do presidente desse partido, Rui Rocha, no último debate quinzenal com o primeiro-ministro, acusando-o de, “num impulso populista”, ter dito que os liberais apresentam “propostas consequentes”, ao contrário da extrema-direita, “como se a necessidade de enquadrar e regularizar imigrantes passasse pelas estatísticas da segurança”.Também o Livre questiona a relevância daquilo que designa como propostas que “não combatem o crime e apenas reforçam preconceitos e estigmatizam comunidades”, defendendo que os dados existentes “não demonstram qualquer relação entre nacionalidade e criminalidade”. Contra o que dizem ser “o jogo da extrema-direita, agora com a Iniciativa Liberal como cúmplice”, o partido repudia a forma como o Chega aproveitou para alargar a questão à etnia e aos “novos portugueses”, como se lhes tem referido a deputada Rita Matias , na medida em que o projeto de resolução do Chega não alude apenas à inclusão da nacionalidade, pedindo que haja referência à naturalidade dos autores e das vítimas de crimes, naquilo que o Livre considera que constitui “uma dicotomia totalmente discriminatória e ilegal”. Na segunda-feira, o PCP criticara a proposta da Iniciativa Liberal, acusando-a de pretender “estabelecer uma relação causa-efeito entre imigração e segurança”, por entre “o espalhafato de origens várias” que está a ser provocado por partidos de direita. Rui Fernandes, que é membro da Comissão Política do Comité Central, garantiu que o PCP “não desvaloriza nem subestima a importância da segurança e tranquilidade públicas”, mas recusa a “instrumentalização das forças e serviços de segurança”.Quanto à vontade de incluir o país de origem dos autores e das vítimas de crimes que são registados em Portugal, o dirigente comunista defendeu que “a nacionalidade adianta pouco”. E, sobre o que disse ser uma proposta que “se insere na competição da direita em torno dos temas da segurança e da imigração”, defendeu que “um crime, quando é cometido, interessa pouco saber se foi por um angolano, por um cabo-verdiano, se foi por um português ou se foi por um brasileiro”, visto que qualquer crime “deve ser investigado e deve levar à respetiva condenação”.