“As eleições de 1975 foram realizadas num clima de grande mobilização  antiautoritária”
Foto: REINALDO RODRIGUES

“As eleições de 1975 foram realizadas num clima de grande mobilização antiautoritária”

O politólogo António Costa Pinto considera que os quase 92% de participação eleitoral mostram a grande festa cívica que foram as constituintes de 25 de abril de 1975.
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Qual a sua memória pessoal desse 25 de abril de 1975?

Sobretudo a de ter votado na escola da rua da Bela Vista à Lapa, em Lisboa, mesmo ao pé de casa dos meus pais, onde em 1969 tinha visto Salazar a votar dentro do carro, já doente e afastado da governação, com uma pequena multidão a aplaudi-lo. Quanto às de 1975, experimentei as primeiras eleições livres como ativista estudantil, com a noção que entre o que via na rua dos movimentos sociais e os resultados eleitorais a diferença iria ser grande. Mas como introdução corretora à memória que cada um terá das eleições para a Constituinte, deixe-me já dizer que quem nos lê tem hoje o melhor estudo coletivo sobre estas eleições na obra coordenada pelos meus colegas Filipa Raimundo, do ISCTE, e João Cancela da Universidade Nova: As Eleições de 1975, Coleção Parlamento, publicado pela Assembleia da República, em 2021.

Quem podia votar antes no Estado Novo?

O “Estado Novo” foi evoluindo no direito de voto e descrevê-lo seria fastidioso, até porque manteve alguns princípios herdados da 1.ª República, sufrágio direto masculino, acrescentando-lhe a alargamento às mulheres chefes de família, e com Marcelo Caetano à igualdade com o voto masculino, mas as restrições legais eram tais que em 1934, apenas 8% da sociedade portuguesa tinha direito de voto; em 1945, o número subiu para 12%; nas eleições de 1958 tinha direito de voto 15% da população; em 1969, cerca de 20%; e em 1973, 23% da população portuguesa. Mais importante, portanto, foi o facto de, até 1945, as eleições terem sido sempre “sem escolha” e a apenas o partido único chamado União Nacional, se apresentava. A partir de 1945, algum “pluralismo limitado” se iniciou, com a apresentação ocasional e limitada de candidaturas da oposição que aproveitavam o período eleitoral para denunciar a ditadura. O ponto alto desta dinâmica de mobilização antisalazarista foi a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, em 1958.

Como se explica que a promessa de eleições constituintes para um ano exato depois da Revolução de 25 de abril de 1974 tenha sido mantida apesar de todo o processo revolucionário em curso?

A promessa da realização de eleições conheceu vicissitudes interessantes associadas à fase inicial da transição. Por exemplo, existiram projetos associados a Spínola de adiamento das eleições legislativas para 1976, depois de uma rapidíssima eleição presidencial, quase plebiscitária, para o legitimar. Claro que o papel dos partidos representados nos governos provisórios, sobretudo o PS de Mário Soares e PPD de Sá Carneiro, foram decisivos, mas foi no quadro do chamado 11 de Março de 1975, que marcou uma viragem à esquerda do MFA, que se deu o passo decisivo. Foi aí quando o MFA se dividiu sobre a realização versus adiamento das eleições que elas acabaram por ser confirmadas, curiosamente com a posição de as manter defendida também por elementos mais à esquerda, como o Almirante Rosa Coutinho.

Foi uma grande festa democrática, com adesão convicta da população?

A festa foi sobretudo realizada pela grande participação eleitoral. As eleições de 1975 foram realizadas num clima de grande mobilização antiautoritária, após 40 anos de ditadura. Por exemplo, existiram limitações legais para eleger e ser eleito, a políticos e membros de algumas instituições do antigo regime, que foram impedidos de o fazer. Alguns partidos de direita radical foram também ilegalizados. Ao mesmo tempo, partidos como o PS, PPD e CDS, desconfiavam das chamadas “Campanha de Dinamização Cultural” do MFA, campanhas de esclarecimento sobre a democracia que associavam ao PCP. A maioria dos programas e mensagens políticas estavam bem mais à esquerda do que os valores dos eleitores. A mobilização eleitoral foi mais direta entre partidos e sociedade civil e menos com a mediação dos meios de comunicação social, entretanto nacionalizados, mas que cumpriram a lei eleitoral e deram espaço a todos.

A vitória do PS de Mário Soares foi uma surpresa?

Entre a elite política não, ainda que houvesse alguma incerteza. Houve mesmo uma sondagem que não foi divulgada publicamente e apontava para aí. O Partido Socialista dispunha de uma legitimidade antisalazarista, simultaneamente não comunista e anti esquerdista. Abrigou então os votos de grande parte do eleitorado democrático com receio da radicalização do MFA, dos esquerdistas e do PCP, inclusive de eleitorado de direita.

Como se explica os 12% do PCP, o partido que parecia mandar nas ruas?

Essa é uma dinâmica clássica da relação entre movimentos sociais e dinâmica eleitoral. Mais ainda, da relação entre transições de regime e atitudes eleitorais. Os atores mais importantes na resistência a uma ditadura raramente são “compensados” nas eleições fundadoras das democracias. Às vezes até foram os reformistas da própria ditadura, como foi o caso de Espanha. No caso português há até que acrescentar a esquerda radical, que teve um papel importante nos movimentos sociais e se ficou pelo deputado único da UDP.

Havia forças políticas representativas de todas as áreas ideológicas a concorrer?

Criaram-se partidos para todos os gostos ideológicos e políticos, mas a resposta é não, a área que poderia representar o antigo regime, não esteve presente. Como em muitas “eleições fundadoras” após décadas de autoritarismos de direita ou de esquerda, a criação de partidos associados aos antigos regimes, os chamados partidos “sucessores” foram limitados e o caso português não escapou à regra. O CDS e o PPD recuperaram segmentos da elite do antigo regime, mas não tivemos “partidos sucessores” a concorrer em 1975. Alguns partidos foram mesmo ilegalizados meses antes das eleições. Mais, os próprios partidos que irão representar o centro-direita e a direita, o PPD e o CDS, evitaram ter nas listas muitos elementos associados à Ditadura.

Como decorreu a campanha eleitoral?

A campanha eleitoral conheceu grande mobilização e atividade não só de partidos políticos, mas também de instituições que, como a Igreja Católica, apelaram ao voto em partidos que recusassem a “ideologia marxista”, aqui como sinónimo de comunismo. Conheceu também apelos de segmentos do MFA ao voto em branco, e de partidos de extrema esquerda ao boicote e à abstenção. Mas no fundamental a campanha eleitoral conheceu um clima de liberdade assinalável, ainda que em certas regiões partidos como o CDS evitassem organizar comícios, por receio de boicotes, o mesmo acontecendo com outros. Basicamente a polarização entre partidos moderados e radicais foi dominante, e os meios de comunicação social, particularmente a Televisão obedeceram à legislação eleitoral e à sua dimensão equitativa, muito embora as suas direções fossem mais próximas do PCP. Na própria “noite eleitoral” quer a imprensa quer as transmissões da RTP denotavam alguma frustração com os resultados.

O resultado eleitoral de 1975, com a força do PS e do PPD de Sá Carneiro, ajudou à vitória dos moderados no 25 de Novembro?

Sem dúvida. A vitória do PS e dos partidos moderados de centro direita e direita, vai constituir nos meses seguintes a principal legitimidade destes para realizarem os pactos formais e a as alianças informais com os correspondentes sectores do MFA e serem o seu suporte civil. Adinâmica de mobilização política anticomunista no “verão quente” vai cindir o MFA e conduzir ao 25 de Novembro.

Os eleitos da Constituinte representavam uma grande renovação da classe política e eram diversos do ponto de vista sociológico?

A elite política do Estado Novo era bastante elitista, mas sob ponde vista político o mais importante a salientar é a sua composição política. A nova elite política da Constituinte é nova, com uma grande dominante de democratas, com um passado de luta anti-ditadura. Ao contrário de outros processos de democratização, como o espanhol ou o brasileiro, por exemplo, foram raríssimos os deputados herdados do antigo regime. Os deputados da Constituinte representaram de facto uma nova elite política e bem mais jovem que a autoritária. Socialmente, o mais importante elemento a destacar, sobretudo perante os 90% de licenciados da Assembleia Nacional da Ditadura, foi a introdução de uma bem maior diversidade social, com profissões mais próximas das classes trabalhadoras, sobretudo da responsabilidade do PCP. Jerónimo de Sousa, foi disso um exemplo.

Constituição depois aprovada foi quase consensual?

Sim, ainda que as negociações tenham intensas e o impacto dos movimentos sociais fora da Constituinte cumpriram o seu papel, com grandes clivagens no período “antes da ordem do dia”, e pactos com o MFA. Mas é verdade, o texto da Constituição ficou bem mais à esquerda dos partidos que a aprovaram e passaria a ser durante o período de consolidação da democracia a grande bandeira da CDU e do PCP. A tese mais convincente que explica o porquê desta aparente contradição remete não apenas para o facto do PPD e do PS terem programas bem mais à esquerda do que os seus eleitores, mas sobretudo para o pragmatismo destes e das suas prioridades primeiras: a consolidação da democracia liberal em Portugal. O resto tratava-se a seguir.

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