Hugo Gonçalves: "Sinto uma dívida de gratidão para com as pessoas que fizeram o 25 de Abril"

No seu novo romance, 'Revolução', o escritor e argumentista Hugo Gonçalves conta a história de uma família portuguesa no turbilhão de acontecimentos que mudaram o país.
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Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, portugueses de várias gerações apropriaram-se do espaço público e fizeram das paredes de vilas e cidades a página em que expressavam, por vezes com assinalável criatividade, reivindicações tão inesperadas como estas: "Abaixo os telhados, a chuva é do povo" ou "Socialismo em construção, visite o andar modelo". É neste clima, quase de ópera quotidiana, que se passa o novo romance do escritor e argumentista Hugo Gonçalves, Revolução (edição Companhia das Letras), nascido em 1976, mas considerando-se ele próprio um filho desse "dia levantado e principal" (como lhe chamou José Saramago) que fundou a democracia portuguesa. Revolução surge, de algum modo na sequência de outro romance do autor, Deus, Pátria e Família (em que se revisita o Portugal de Salazar na época da Segunda Guerra Mundial) mas os dois podem ser lidos de forma autónoma e é possível, mas não indispensável, frisa Hugo, que venham a ser complementados por um terceiro romance ambientado nesse grande tabu da nossa História que é a Guerra Colonial. Hugo Gonçalves é autor de vários romances, entre eles Filho da Mãe, finalista dos prémios PEN Clube e Fernando Namora, Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo; O Coração dos Homens ou O Caçador do Verão. Foi jornalista (colaborou com vários títulos nacionais, entre os quais o DN) e é coautor e guionista das séries televisivas País Irmão; Até que a vida nos separe, e Rabo de Peixe, em parceria com João Tordo, Fernando Mamede e Francisco Lopes.

Este romance, ambientado nos tempos que precedem o 25 de Abril e depois no PREC - Processo Revolucionário em Curso foi pensado como uma continuação de outro romance seu, Deus, Pátria, Família?
Pensei dar continuidade a este ato de revisitar a História do nosso século XX, mas não era um projeto muito definido. Habitualmente tenho muitas ideias, algumas das quais persistem no tempo, geralmente são as que aproveito. Mas procuro sempre que cada livro tenha uma voz particular.

Vai ser um tríptico?
Honestamente, ainda não sei. Gostava de escrever sobre a Guerra Colonial, que durou 13 anos e fez vítimas, algumas das quais ainda aí estão, entre nós. Tem a aliciante de ser um tema muito pouco tratado quer na literatura, quer no cinema. Mas, na verdade, ainda estou à espera que esta ideia me agarre pelos colarinhos. Só consigo desenvolver o livro se assim for.

O que é preciso para que isso aconteça?
É difícil definir mas tem que ser uma ideia que me leve a querer sentar-me ao computador logo de manhã, para trabalhar. Falei com a minha editora, Clara Capitão, sobre os livros que queria escrever a seguir e concluímos que seria demasiado cedo pegar no livro da Guerra Colonial depois de passar tanto tempo a trabalhar em Revolução. O livro que se seguirá será muito mais pessoal.

Este Revolução abre logo com um episódio muito forte, a fuga e prisão de uma clandestina do Partido Comunista nos últimos anos da ditadura. Também é um tema pouco tratado na nossa literatura, a não ser por escritores do partido, desde logo por Álvaro Cunhal...
É verdade. Tenho imensa admiração pelas pessoas que foram clandestinas para se opor ao regime, sobretudo nos anos 40 e 50, quando a ditadura aniquilara qualquer outra forma de oposição. Quis também retratar essas vidas duríssimas, que são muito interessantes do ponto vista dramatúrgico. A Maria Luísa, a minha personagem, é uma das últimas clandestinas, mas, em determinado momento, sentiu que a ação direta era mais eficaz no combate ao regime do que a via política, defendida pelo partido.

Na família dela, antes e depois do 25 de Abril, coexistem posições ideológicas muito diferentes, mesmo extremas. Conheceu muitos casos destes?
Todos nós conhecemos familias que passaram por situações semelhantes. Havia muitas paixões, a sociedade estava muito polarizada e, por vezes, como acontece no livro, à política somam-se muitos ressentimentos pessoais. Hoje, é muito fácil pensarmos que tudo aquilo era um exagero, mas a incerteza era enorme. No entanto, o pano de fundo pode ser muito cativante mas o que me interessava, de facto, era focar-me nas dinâmicas de uma família.

Nunca sentiu que o contexto histórico, precisamente por ser tão forte, se impunha à ficção que queria escrever?
Esse era um dos desafios que já se me colocara em Deus, Pátria, Família, cujo pano de fundo histórico era a chegada dos refugiados a Lisboa durante a 2ª Guerra Mundial. Quis evitar fazer um livro didáctico-pedagógico e, por isso, não introduzi aqui algumas personagens da época como o Freitas do Amaral (o Sá-Carneiro aparece uma vez) e os acontecimentos também não são todos referidos. A minha preocupação era centrar-me nas relações entre as personagens sem que vissem as costuras que é o contexto histórico em que elas vivem. O que eu gostaria é que os leitores se recordassem da Maria Luísa, da Pureza, do Frederico e das outras personagens. Embora eu tenha nascido dois anos depois do 25 de Abril, lembro-me das tensões internas às famílias. Tinha amigos oriundos das ex-colónias, em cujas casas havia muita crispação e ressentimento, como era o caso do avô de um amigo meu. Depois, lembro-me dos meus tios barbudos e revolucionários, talvez com pouca convicção política mas por querer fazer tudo o que estava interdito até aí: Ouvir rock e fumar charros. Mas dizer que a democracia começou a 25 de Abril de 1974 e o Processo Revolucionário em Curso terminou a 25 de Novembro de 1975 é uma convenção: as coisas não mudam por decreto. Os professores que eu tive na escola primária e até no secundário eram a personificação da ditadura. Por outro lado, havia várias visões da revolução: o Abril de Melo Antunes, um dos ideólogos do movimento dos capitães, coexistia com o Abril de Otelo Saraiva de Carvalho (ele próprio, uma personalidade com diversos cambiantes). Eu queria escrever sobre os traumas intergeracionais, o que não é fácil porque ainda está viva muita gente. Há uma personagem no livro, um jornalista, que diz: As ideologias são como cortes de cabelo, passam de moda. O que importa é o carácter. E eu acredito nisso.

No entanto, como diz, o pano de fundo é absorvente. O 25 de Abril foi uma revolução fotogénica, com muitos cravos e jovens oficiais a quem as fardas ficavam muito bem.
E a revolução em si não foi violenta, mas não podemos esquecer (e fazemo-lo frequentemente) que o PREC foi muito violento, houve muita pancadaria, incêndios, bombas, muitas mortes, ameaças, pessoas que tiveram de fugir do país, delações, saneamentos. O verão de 1975, dito verão quente, foi realmente muito violento. Também procurei mostrar como essas tragédias coexistiram com a comédia e com coisas que hoje nos parecem autênticos disparates. Recordo alguns slogans como "Abaixo os telhados, a chuva é do povo". Essas frases estão omnipresentes no quotidiano das pessoas, sobretudo nas cidades.

Neste livro fala também dos efeitos da revolução na intimidade das personagens, sobretudo das femininas. Uma delas descobre o prazer sexual depois de um longo e frustrante casamento. Teve a preocupação de mostrar o que mudou nas vidas das mulheres, que foram especialmente reprimidas pela ditadura?
Estava um bocado farto de escrever sobre homens. Eu próprio venho de um universo muito masculino: só tenho irmãos e estudei num colégio católico só com rapazes. Quando escrevi Deus, Pátria, Família, lembro-me de ver uma fotografia do Rossio, em meados do século XX, em que só se vêem homens. A ocupação do espaço público era predominantemente masculino. Foi, pois, um desafio criar personagens femininas como a Maria Luísa e a Pureza que se emancipam na esfera pública e na privada. Mesmo a mãe delas, a Maria Antónia, é uma mulher forte que toma conta do negócio para evitar que os filhos sofressem as mesmas dificuldades que ela tinha passado. Muita coisa mudou entretanto, mas não tanto como se desejava. Ainda hoje, as mulheres, mesmo que sejam emancipadas e profissionais de sucesso, carregam uma dose de culpa acrescida por causa dos seus deveres maternais.

Há algum ponto em comum entre os extremismos de 1975 e os de hoje?
O livro tem alguns ecos do nosso tempo: um é precisamente essa polarização, que na altura se justificava após 48 anos de ditadura e o trauma tremendo que foi uma guerra que durou 13 anos. Nós esquecemo-nos disso. O regime tinha perdido o comboio dos movimentos de libertação e dos direitos civis nos Estados Unidos, a mudança de costumes, a swinging London, o Maio de 68, em França. Quando se saiu desse sufoco, tudo foi exacerbado. Hoje, as razões são outras. Ainda há pouco tempo estive no Brasil, falei nessa polarização e muita gente falava das divisões das famílias brasileiras com o Bolsonaro e com o Lula. Contaram-me histórias de mães que tinham deixado de falar a filhos e de irmãos desavindos. Outro eco do livro para a atualidade são os diferentes ritmos, a mudança é aceite por pessoas de diferentes faixas etárias. Isso aconteceu muito na época do 25 de Abril, quando muita gente dizia: isto não é liberdade, é libertinagem, mas acabavam por compreender.

Também é argumentista de ficção para televisão. Esse registo influencia a sua escrita literária?
Não creio. Sou um escritor de romances (já escrevera vários antes de começar a escrever para televisão) mas pertenço a uma geração que começou a escrever contaminada pela imagem, fossem séries de televisão como A Balada de Hill Street, o cinema ou o MTV. Provavelmente este universo está para nós como os romances de cavalaria estavam para o Cervantes. Eu próprio sou muito visual, há quem diga, não sei se é verdade ou não, que os homens são muito mais visuais do que a mulheres, mas quando estou a escrever o que eu quero é sentir-me na época e no espaço em que se passa a história e passar essa sensação ao leitor.

A música pop/rock também está muito presente neste livro. Há até uma personagem, Frederico, para quem criou um canal no Spotify.
A música está muito presente no livro porque também o esteve no próprio 25 de Abril. E depois esteve muito presente na nossa formação: Eu lembro-me de passar férias em casa da minha avó e estar à espera de um certo programa na rádio. Às vezes gravavamos em cassetes e ficavamos muito irritados quando o locutor falava por cima da música. Para o Frederico, a música faz parte da procura de uma identidade entre mulheres tão fortes. Antes do 25 de Abril, era também uma forma de insurreição, porque ele tinha discos proibidos.

Nasceu depois do 25 de Abril. Que histórias ouviu em casa?
A minha família não era muito politizada. O meu pai estava emigrado em França e conta que quando entrou no escritório, os colegas lhe disseram que estava a haver uma revolução em Portugal e ele não acreditou, não achava que fosse possível. Voltou a Portugal pouco depois. No meu caso pessoal, posso dizer que tenho uma relação muito emocional e de enorme gratidão com o 25 de Abril. Este ano, nessa data, eu estava em Barcelona a falar com leitores, e a minha mulher mandou-me uma fotografia do nosso filho, que tem dois anos, a pintar a palavra liberdade. Aquilo emocionou-me imenso. Sinto mesmo uma dívida de gratidão para com as pessoas que fizeram o 25 de Abril, não apenas os militares, que são os principais responsáveis e que arriscaram a vida, mas também as pessoas que saíram em massa para a rua e ocuparam as ruas de Lisboa.

Apesar dos comunicados a apelar precisamente para que ficassem em casa...
Desobedeceram, não sabendo qual seria o desfecho da revolução. Houve uma adesão popular tremenda, que se repetiu um ano depois com as primeiras eleições livres. Hoje estou convencido de que o 25 de Abril não era de esquerda ou de direita, tinha como objetivo pôr fim a uma tirania e a uma guerra colonial.

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