Ricardo Raimundo
Ricardo RaimundoFoto: Leonardo Negrão

"A República só triunfou devido à desorganização, desmoralização e falta de comprometimento dos monárquicos"

Historiador Ricardo Raimundo analisa, 115 anos depois, o 5 de Outubro de 1910, época muito abordada no seu livro 'Fact-checking à História de Portugal - verdades e mitos dos séculos XIX, XX e XXI'.
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O 5 de Outubro foi uma Revolução que esteve perto de fracassar por falta de adesão, como muitas vezes se diz?

O plano final teve início na noite de 3 para 4 de outubro e consistia na insubordinação dos quartéis e da marinha de guerra da capital. Todavia, na noite de 3 para 4 de outubro, nada correu como tinha sido planeado e por pouco não fracassou. A maior parte dos membros da Carbonária, sem armamento disponível, não cumpriu o plano que havia sido cuidadosamente preparado pelo que só compareceram ao chamamento cerca de 200. Os oficiais e os sargentos conjurados só conseguiram ter sucesso em dois dos três regimentos da cidade. A situação parecia de tal forma perdida para as forças republicanas, na madrugada do dia 4 de outubro, que o chefe da conspiração, o vice-almirante Cândido dos Reis, já reformado, preferiu suicidar-se a ser preso pelos monárquicos vencedores. Os líderes republicanos preferiram esconder-se. Durante a manhã de dia 4, em todos os cafés do Chiado a ideia que prevalecia era de que a revolução iria fracassar. Não obstante todas estas desconfianças as movimentações prosseguiram e beneficiaram do facto do comando da divisão militar de Lisboa nunca ter atacado verdadeiramente os republicanos. Não se tratava da falta de efetivos militares experientes, e muito menos de uma questão de incompetência, mas sim de um problema político. Os oficiais encarregados de defender a monarquia, não estavam, de todo, interessados em defender um governo que não representava os seus ideais nem os defendia, e o governo, por sua vez, preferia resolver o problema com os revoltosos enviando emissários civis, em vez de entregar a resolução a militares em quem não confiava de todo. Assim a República só triunfou devido à desorganização, desmoralização e falta de comprometimento dos monárquicos. A revolução veio preencher um vazio político que se instalara. Por isso mesmo, não houve uma única pessoa que lhe tivesse resistido de forma convicta.

A questão do Mapa Cor-de-Rosa foi uma machadada no prestígio da Monarquia Constitucional e deu fôlego ao movimento republicano?

Todos os grupos políticos aproveitaram a crise gerada. Os regeneradores esquecendo-se da política por eles iniciada em 1885, argumentava que a responsabilidade pertencia ao ministro dos Negócios Estrangeiros e à sua política de aproximação à Alemanha, sendo esse o motivo que havia desencadeado a reação inglesa. Quanto aos progressistas no poder, tratava-se de uma questão de unir a nação em torno do governo em exercício para combater o inimigo exterior comum, velha distração política para enfrentar as inúmeras dificuldades que o país atravessava. Para os Republicanos foi uma excelente oportunidade para tirar partido do descontentamento que o Ultimato gerou na sociedade, aproveitando para aumentar a sua adesão. Logo nesse ano, conseguiu eleger três deputados por Lisboa. Desde modo o Ultimato de 1890 constituiu uma machada no prestígio de uma Monarquia cada vez mais decadente e deu argumentos a um partido Republicano para se começar a estabelecer particularmente nos meios urbanos.

Foi para se legitimar que a República fez Portugal entrar na Primeira Guerra Mundial, ou era importante estar ao lado dos vencedores para defender as colónias africanas?

O envolvimento português na I Guerra Mundial foi motivado por uma complexa teia de fatores, incluindo a dinâmica das alianças europeias, a necessidade de proteger as possessões ultramarinas e a pressão interna por avanços sociais e políticos. A entrada na Primeira Guerra Mundial, surgiu aos olhos de uma pequena minoria radical republicana como um expediente que permitia reforçar o poder executivo em Portugal. O pensamento era muito simples. A República estava fraca e debilitada? A solução passava por gerar uma onda de nacionalismo que congregasse o país em torno do governo que o levasse para a guerra. O Partido Democrático encontrava-se cada vez mais isolado no poder, mesmo entre os republicanos? A forma de o ultrapassar era levar Portugal a entrar na guerra e criar um governo de unidade nacional que tivesse o Partido Democrático no seu centro, à semelhança do que acontecera em França e, nesse caso, até os monárquicos teriam de apoiar um aliado da Inglaterra, país onde residia D. Manuel II. Em vista dessa “união sagrada”, o Partido Democrático permitiu a assistência religiosa ao exército em campanha. E por este mesmo motivo, Afonso Costa premonitoriamente afirmava, em 1914, que a guerra poderia ser para o regime “a base mais firme do seu desenvolvimento rápido e progressivo”. O regime divorciava-se das Forças Armadas, que conspiravam contra ele? A panaceia era, mais uma vez, a guerra, que forçaria os militares a reunirem-se em torno do governo. As relações diplomáticas com a Inglaterra estavam fragilizadas a ponto de colocarem em causa a continuidade do império? A alternativa era entrar em guerra, de modo que o eterno aliado respeitasse o império português. Portugal era, neste momento, malvisto no plano internacional e perdia prestígio? A entrada na guerra configurava a solução ideal para recuperar visibilidade e a reputação. Portugal vivia com receio de uma invasão espanhola? A participação na contenda dissuadiria a vizinha ibérica de pegar em armas e invadir Portugal. Se este era o pensamento inicial, a verdade é que acabou por funcionar exatamente ao contrário, em quase todos os pontos.

As revoltas monárquicas em algum momento entre 1910 e 1926 estiveram à beira de criar uma guerra civil?

Parece impensável, mas a verdade é que, há pouco mais de um século, o nosso país ficou dividido em duas partes, com dois regimes políticos: a norte de Aveiro, com exceção de algumas comarcas, imperava a Monarquia, enquanto, a sul, os republicanos governavam. Aconteceu apenas durante 25 dias, mas foi uma ameaça à paz do país, que correu o risco de entrar novamente em guerra civil, depois do conflito que tinha oposto absolutistas e liberais entre 1832 e 1834. Este episódio ficou conhecido como a “Monarquia do Norte”. A República, não teve uma vivência fácil, antes pelo contrário. A perturbar o seu funcionamento, monárquicos e católicos, nem sempre associados, foram alguns dos principais responsáveis por essa agitação. Aproveitando toda a desorganização que se vivia, a 19 de janeiro de 1919, na cidade do Porto, foi proclamada a restauração da Monarquia Portuguesa. O novo reino ficou para a história como a Monarquia do Norte.

A recusa de conceder o voto às mulheres, mesmo depois da coragem cívica de Carolina Beatriz Ângelo, foi por medo à influência da Igreja Católica no eleitorado feminino?

A República prometera muito à luta que um conjunto de mulheres portuguesas vinha empreendendo e que assentava, entre outras coisas, na aprovação do sufrágio universal, o que, consequentemente, incluía o voto feminino. A verdade é que nada disto foi cumprido pelos Republicanos e mesmo depois da Beatriz Ângelo ter exercido o direito de voto, a lei eleitoral de 1913 veio reduzir-lhes o acesso ao voto definindo que apenas “cidadãos portugueses do sexo masculino” poderiam votar, fechando assim qualquer possibilidade de participação política das mulheres no curto prazo. Esta situação foi sem dúvida estimulada pelo facto de se olhar para a mulher como alguém facilmente influenciável, não só no contexto familiar, mas também pelo peso que a Igreja poderia exercer sobre as opções de voto das mulheres, preferindo assim vedar-lhes o acesso ao voto.

A Noite Sangrenta desacreditou a República?

Existem várias teorias que procuram analisar o porquê dos acontecimentos que ficaram conhecidos como a Noite Sangrenta e perceber quem esteve por detrás dela. Uma dessas abordagens assenta na ideia de que Espanha pretendia, havia muito, tomar Portugal, recuperando o “sonho filipino”. Para a concretizar, era mais fácil alegar a necessidade de intervenção num país caótico. Para outros autores, alguns associados à direita política, os homicídios foram o resultado do extremismo ou radicalismo político das franjas do Partido Democrático. Estaríamos perante grupos mais ou menos autónomos e, por isso, de muito difícil controlo. Entre todas as vítimas mortais e todos aqueles que, naquela noite, foram perseguidos, parece existia um ponto de união. Todos eles participaram, em maior ou menor grau, no sidonismo. Estariam as fações mais radicais a vingar-se das perseguições que haviam sentido na pele durante o sidonismo? Esta hipótese não é de desconsiderar. Neste particular, é igualmente sintomático o ato de libertação do assassino de Sidónio Pais, José Júlio da Costa. Torna-se ainda importante explicar que o trauma e o choque da Noite Sangrenta contribuíram para refazer e redinamizar a conspiração dentro das Forças Armadas. Foi a partir de 1921 que o Exército começou a conspirar ativamente. Foi a partir de então que o Exército assumiu ser a única entidade capaz de salvar Portugal. Era necessário um governo de ordem e de força, ou seja, um governo militar. Os militares chegaram assim a um entendimento e começaram a semear a ideia de que as Forças Armadas eram apolíticas e apartidárias, as únicas capazes de tomar as rédeas da nação. A Noite Sangrenta foi decisiva para a união de um bloco conservador e ordeiro e foi, muitas vezes, utilizada para relembrar o “caos” e a “anarquia” da República, servindo como forte argumento para os opositores deste regime.

Os militares golpistas de 1926 eram contra a República?

Saturada da profunda agitação política que se vivia e da consequente incapacidade de resolver a maioria dos problemas, grande parte da população começou a manifestar a sua desilusão para com a República. Contra este estado de coisas, no final de maio de 1926, registaram-se pronunciamentos em várias divisões militares espalhadas pelo país. O objetivo era levar a um governo de carácter extrapartidário, constituído por republicanos que merecessem a confiança do país. O objetivo não era, de todo, a mudança de regime, nem seria substituir, no poder, um partido por outro. O grande objetivo era, sem dúvida, estabelecer, um “governo militar independente”. Não houve qualquer resistência. Os próprios políticos pareciam rejubilar com o golpe militar, vendo nele uma forma de poderem redefinir o panorama político dentro do regime republicano. Desde modo, podemos concluir que o objetivo direto da ditadura militar não foi colocar um ponto final na República, antes criar condições para que ela pudesse voltar a ter credibilidade e estabilidade. Infelizmente, as circunstâncias económicas do país e a crescente instabilidade política levariam a um outro modelo político, que seria, esse sim, bem-sucedido e bem mais duradouro.

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