República - 'Adesivos', 'thalassas' e heróis esquecidos

Faz hoje 113 anos que a República foi proclamada na Praça do Município, em Lisboa, e foi comunicada ao resto do país e do império português por telégrafo. Era todo um quotidiano novo que surgia, depois de sete séculos de fidelidade ao Rei.
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A 5 de Outubro de 1910, o jovem rei D. Manuel II, acompanhado pela mãe, avó e uma pequena corte subitamente desempregada, rumou ao exílio, em Inglaterra. Com o triunfo da revolução republicana, o país conhecia a maior transformação política e social da História. Em pouco tempo, a linguagem enriquecia-se com novo léxico e a vida institucional com novos símbolos.

Também conhecidos por vira-casacas. Logo em outubro de 1910, os portugueses, com a sua reconhecida aptidão para o poder de síntese ao serviço da má-língua deram o epíteto de "adesivos" aos antigos políticos monárquicos que trataram de declarar a sua adesão ao novo regime republicano. No jornal A Luta, Brito Camacho, a 14 de outubro, afirmava que a República não pode ser a monarquia com outro nome. Continua uma série de artigos neste tom, especialmente em 20, 22, 23 e 25 de outubro. No dia 23 chega a perguntar se não será necessária outra revolução. Defende que deve manter-se intacto o diretório do partido republicano, para garantir o regime. Mas a farpa mais afiada viria de Ramalho Ortigão, que escreveu: "Na manhã gloriosa de 5 de outubro os combatentes da Rotunda fizeram o balanço dos riscos, dos sacrifícios, das perdas sofridas durante as jornadas bélicas que acabavam de viver. E verificaram doloridos que, dos quinhentos que haviam iniciado a revolta, já só restavam ... cinco mil."

Para os lisboetas, é uma avenida longa e crucial na malha urbana da cidade, a tal ponto que quase acreditamos que Almirante era o nome próprio deste Reis. Mas Cândido dos Reis foi um oficial da Marinha, que nunca ocultou as suas convicções republicanas. No entanto, não viveu o suficiente para ver o triunfo no novo regime, apesar de ter sido um dos estrategas da revolução de 5 de Outubro. A 3 de outubro, ao saber da morte do professor Miguel Bombarda, membro do comité civil republicano, Cândido dos Reis temeu pelo desfecho do movimento mas avançou contra todas as hesitações. Os oficiais da Armada juntaram-se então no local e na hora combinados. Contudo surgiram algumas contrariedades, pois a revolução em terra parecia ter falhado, os sinais combinados encontravam-se todos trocados e travava-se uma batalha sangrenta. Para evitar maior derramamento de sangue, Cândido dos Reis libertou os seus companheiros de qualquer atividade e desmobilizou-os.

Acreditando ter falhado, Cândido dos Reis foi para casa da sua irmã, na Rua de D. Estefânia. Pouco depois das cinco horas da manhã de 4 de outubro, quando já não se ouvia o troar da artilharia, saiu de casa. Às 6 horas da manhã era encontrado morto na Travessa das Freiras, em Arroios. Embora, na época, se tenha falado em suicídio, a real causa da sua morte continua a suscitar muitas dúvidas.

Se olharmos atentamente para as fotografias dos combates na Rotunda, verificaremos a presença de uma mulher. Não ia a passar, não estava a dar de beber aos rebeldes, mas está, resoluta, a apontar um caminho ao homem, de carabina, que está a seu lado. O caso fez furor: Reproduziram-se postais com a fotografia e Amélia, caixeira de profissão, deu várias entrevistas. entre as quais ao jornal A Capital. À pergunta se já era republicana há muito tempo, responde: "Ora essa! Eu fui sempre republicana. Nunca o disse a ninguém porque, compreende... há quem ache ridículo que as mulheres tenham ideias avançadas." Manteve-se na Rotunda até ao fim, trocando a espingarda pela pistola quando a primeira já pesava muito, mas não deixando que o cansaço a vencesse. E concluía: "No sábado de manhã fui com um grupo prender um jesuíta a um terceiro andar da Rua das Trinas. Foi esse o meu último serviço." Contradições da República: A esforçada Amélia morreu sem nunca ter conseguido votar.

Uma das primeiras medidas do Governo Provisório republicano foi a nomeação, a 15 de outubro de 1910, de uma comissão com a função de criar uma nova bandeira nacional, que substituísse o estandarte azul e branco dos Braganças. Da Comissão da Bandeira faziam parte personalidades de relevo da sociedade portuguesa: o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o escritor Abel Botelho, o jornalista e político João Chagas e dois oficiais do 5 de Outubro, o tenente Ladislau Pereira e o capitão Afonso Palla. A 29 de novembro de 1910, feitas algumas alterações a uma primeira proposta da Comissão, o Governo Provisório aprovou o projeto final da bandeira: a bandeira verde e rubra. Mas, como seria de esperar, a coisa não foi assim tão simples e gerou-se, na sociedade portuguesa, uma discussão quase tão acesa como a escolha do lugar do novo aeroporto de Lisboa.

A escolha pela bandeira que ainda é a nossa foi decidida pela Assembleia Nacional Constituinte, através do decreto de 19 de junho de 1911, publicado no Diário do Governo n.º 141 de 20 de junho. Foi depois publicado no Diário do Governo n.º 150 de 30 de junho de 1911, um parecer da comissão da nova bandeira com uma descrição mais detalhada das dimensões, pormenores e outras especificações.

Tal como aconteceu com a República francesa, também Portugal deu a forma de uma mulher ao símbolo do novo regime. Em vez da Marianne com barrete frígio (hoje, em França, tem a cara da atriz e modelo Laetitia Casta, depois de ter sido Brigitte Bardot ou Catherine Deneuve), a musa inspiradora é uma alentejana de Arraiolos, Ilda Pulga, que, com apenas 13 anos, foi para Lisboa para trabalhar como costureira num atelier do Chiado. Foi aí que conheceu o escultor Simões de Almeida. Ilda morreu em 1993, com 101 anos.

Com o novo regime, houve que substituir a Carta Constitucional por um novo diploma regulador da vida política nacional. A Constituição de 1911 destaca-se por ter consagrado um novo regime político, mas também novos direitos caracteristicamente republicanos como a igualdade social (n.º 3) entre todos os cidadãos - preceito resultante da negação de qualquer privilégio de nascimento, dos foros da nobreza, e ainda da supressão dos títulos nobiliárquicos, das dignidades do pariato e dos conselheiros, e até das ordens honoríficas tradicionais ou ainda as liberdades de expressão e de pensamento (n.º 13), de reunião e de associação (n.º 14), e o direito à assistência pública (n.º 29).

Por fim, também o laicismo foi considerado um princípio constitucional, postulado através da liberdade de crença e de consciência (n.º 4), da igualdade de todos os cultos religiosos (n.º 5), da secularização dos cemitérios (n.º 9), da laicização do ensino (n.º 10), da inadmissibilidade em Portugal das congregações religiosas e da Companhia de Jesus (n.º 12) e da obrigatoriedade do registo civil (n.º 33). É o texto mais breve da História Constitucional portuguesa.

O hino nacional A Portuguesa substituiu o Hino da Carta (Constitucional) após a implantação da República portuguesa a 5 de Outubro de 1910. Tratava-se de uma marcha composta em 1890 (na sequência do Ultimato britânico), com música de Alfredo Keil e letra de Henrique Lopes de Mendonça. Nesse contexto, o objetivo d"A Portuguesa era exaltar o patriotismo e o orgulho nacional depois do rei D. Carlos ter cedido ao ultimato britânico no sentido de Portugal abandonar as suas pretensões à ocupação do território entre Angola e Moçambique, definido pelo chamado mapa cor-de-rosa.

Neste contexto de orgulho ferido, A Portuguesa obteve larga difusão desde a sua criação, pelo que em fevereiro de 1890 a Neuparth & C.ª edita a partitura para distribuição gratuita. A tiragem foi de mais de 22.000 exemplares, números excecionais para a época. A divulgação contou com a distribuição de folhetos, prospetos e a fixação de cartazes. Essa popularidade tornou-se perigosa aos olhos do regime monárquico, quando a 31 de janeiro de 1891, a tentativa de implantação da República, no Porto, foi feita ao som de A Portuguesa. A marcha acabou por ser consagrada hino nacional na Assembleia Nacional Constituinte de 19 de junho de 1911.

Tal como Cândido dos Reis, foi por um triz que Miguel Bombarda não chegou a ver o triunfo do regime por que se bateu durante anos. Foi médico na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e dirigiu durante vários anos o Hospital de Rilhafoles (depois Miguel Bombarda), empenhando-se na sua reorganização. Ainda como médico, foi um dos fundadores da Liga Nacional contra a Tuberculose e foi autor de uma vasta obra científica, nomeadamente no domínio da Psiquiatria. Fez-se ainda notar como militante republicano e anticlericalista convicto, chegando a integrar o comité revolucionário que desencadeou o golpe de 1910. A 3 de outubro de 1910, poucas horas antes de se iniciar o movimento revolucionário, foi assassinado no seu gabinete hospitalar por um doente internado no hospital, Aparício Rebelo dos Santos de seu nome. Há, no entanto, quem ponha em causa esta versão oficial dos factos.

Termo atribuído pejorativamente aos monárquicos, ou a todos aqueles que eram adversos à forma republicana de governo. Com grande coragem, num contexto fortemente anti-monárquico, surgiu o semanário humorístico e de caricaturas intitulado Thalasse, que se publicou em Lisboa, de 6 de março de 1913 a 14 de maio de 1915, num total de 100 números. Foi fundado por Jorge Colaço (1868-1942), E. Severim de Azevedo (Chrispim) (1884-1920) e Alfredo Lamas, que também eram proprietários do título

Nas suas (prodigiosas) memórias, o escritor Raul Brandão reconstitui este diálogo tido durante os preparativos da Revolução: "(...) Se os Republicanos fizessem um comício no alto da avenida e viessem por ali abaixo, a República estava feita! Afirmava o Silva Graça. E o Porto e a província? Perguntou ao Chagas. - Que me importa a Província! Que me importa mesmo o Porto! - A República fazemo-la depois pelo telégrafo." Foi o que efetivamente aconteceu. Num país predominantemente rural, os utentes do telefone eram poucas centenas concentrados nos dois grandes centros urbanos. O telégrafo era a única maneira de fazer chegar a notícia a todos os pontos de Portugal continental , insular e ultramarino. Ainda assim, Lamego demorou sete dias a saber que D. Manuel II já não reinava e Timor viveu a ilusão da monarquia até final de outubro.

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