Este livro resulta de uma análise comparada de revoluções, como a da Irlanda e da Rússia, no início do século XX, para chegar ao 25 de Abril de 1974. É raro que uma revolução origine um regime democrático?Sim, a Irlanda é um caso de uma espécie de revolução, no sentido em que há um movimento anticolonial que depõe um regime colonial, o regime britânico. Nesse sentido, até é parecida com as revoluções anticoloniais dos impérios ultramarinos europeus pós-Segunda Guerra Mundial. E também é semelhante às revoluções da Europa de Leste, durante o colapso do regime comunista, na União Soviética, que são também lutas nacionalistas de libertação nacional. E o caso português tem isso. O MFA [Movimento das Forças Armadas] apresentava-se também como um movimento de libertação nacional do povo português, tal como os movimentos anticoloniais nas colónias portuguesas, na África Portuguesa. Mas a razão pela qual escrevi este ensaio, que não teve nada a ver com as comemorações e com a data [25 de Abril de 1974], é o facto de que é historicamente muito raro uma revolução levar diretamente a um regime democrático, sobretudo aquilo que se chama uma revolução social, ou seja, uma revolução que pressupõe não só uma mudança de regime pela força, mas também através da ação conjunta ou da ação simultânea e parcialmente autónoma, em articulação de movimentos sociais, através de revoltas várias, e ocupação do espaço público e económico e social, e simultaneamente através da ação de movimentos políticos marginais no regime anterior e que se tornam predominantes no novo contexto de mudança política. Essa ação, que pressupõe o colapso da ordem política, previamente existente, portanto, o colapso da estrutura administrativa e repressiva do Estado, geralmente não leva a regimes democráticos. E o caso português é singular desse ponto de vista. E daí, também, a lógica comparativa do meu livro. Tentar compreender a singularidade portuguesa no contexto de outros ciclos revolucionários que fracassaram, ou que foram bem-sucedidos, mas em que os tipos de regimes são diferentes..Ao longo do livro não usa a expressão ‘golpe de Estado’. O 25 de Abril é uma revolução?De facto, o regime começa como um golpe de Estado, mas o processo político depois toma uma dinâmica que não é apenas a de um mero golpe de Estado..Por todos os fatores se conjugarem?Sim, porque acontecem outras coisas que muitas pessoas não esperavam. Primeiro, há uma explosão de movimentos sociais agindo autonomamente do sistema político e em desconexão com as elites políticas. As do antigo regime, obviamente. Mas com as elites também recém-formadas dos novos partidos democráticos, basicamente. PS, PSD e mesmo o PCP. O PCP, aliás, tenta, no início da transição de regime, controlar o movimento grevista, por exemplo, decretando a ilegalidade das greves. Mas uma das características das revoluções é a explosão e a movimentação social, popular, autónoma que ocupa o espaço político e económico. Por exemplo, de forma muito concreta, o movimento de moradores, a ocupação de casas e a autogestão dos bairros para serviços sociais. Para se organizarem autonomamente para creches, etc. A ocupação dos bairros e de casas devido à falta de habitação. Tudo isso foi feito de forma autónoma e em rotura com a legalidade, de alguma maneira. E, desse ponto de vista, era revolucionário. Se bem que também não há uma legalidade ainda. A legalidade acabou, pois o antigo regime acabou. E a nova legalidade ainda não foi feita. Os movimentos de ocupação das fábricas, de cogestão por parte dos trabalhadores, nas fábricas, nos locais de trabalho, na Administração Pública. Pela rutura, pela ocupação do espaço político e social, do espaço público. Em segundo lugar, há uma tentativa de parar esta dinâmica social. Nomeadamente por setores da direita, o general Spínola, etc., que geram depois a mobilização revolucionária à esquerda. Aqui já há mais, por parte de movimentos políticos, em particular o Partido Comunista, a esquerda radical, o MRPP, a UDP e outros, e também o MFA, que gradualmente se vão radicalizando e adquirindo uma espécie de agenda de transformação revolucionária da sociedade. Transformação para uma sociedade sem classes, de alguma maneira. Portanto, tudo isso é uma dinâmica revolucionária..Se não tivesse acontecido o 11 de Março - a contrarrevolução de direita protagonizada por Spínola - o PCP teria reagido como reagiu? Não, acho que não. Os ciclos revolucionários têm também os saudosistas do anterior regime, ou aqueles que querem parar o processo de mudança. Mesmo a mudança num sentido democrático liberal, que era o que estava previsto no Programa do MFA, eram eleições livres, dentro de um ano, etc. Os partidos estavam a legalizar-se e havia planos de simulação para manter uma parte do império colonial através de uma federação de estados. E também discordava do tipo de sistema político que se viesse a instituir. Ele [Spínola] queria, primeiro, eleições presidenciais, para se eleger como presidente. Ele queria, eventualmente, um regime presidencialista, onde, depois, eleições para um parlamento não estivessem previstas. Portanto, também havia uma indefinição quanto à natureza do regime. Podia ser um tipo de semidemocracia ou democracia muito tutelada e com uma forte personalização do poder. Ainda, talvez, algo como teria sido o regime grego a seguir à Segunda Guerra Mundial. Por exemplo, o Spínola foi, várias vezes, pouco claro acerca da legalização do PCP e, eventualmente, até do PS, por exemplo. Eu não estou a dizer que ele quisesse retornar ao Estado Novo, longe disso. Ele era um crítico do Estado Novo, do ponto de vista da hierarquia militar. Agora, o que transforma a revolução numa revolução social e, potencialmente, também antidemocrática, ou seja, em que a extrema-esquerda pode conquistar o poder, é o facto de haver tentativas de mudar a transformação do regime por golpes de direita. Nomeadamente, houve a crise de Palma Carlos, mas, sobretudo, houve o dia 28 de setembro de 1974 e o 11 de março [de 1975]. É isso que radicaliza a esquerda, no sentido de tentar conquistar o poder, eventualmente, pela força ou criar um regime em que a concentração de poder, seja de tal maneira forte, que seja impossível voltar à ordem política anterior. E isso acontece em todas as revoluções que, por exemplo, originaram regimes comunistas..Por que motivo não aconteceu uma deriva não democrática à esquerda?Eu penso que nunca seria uma coisa totalmente de regime de partido único como na União Soviética ou na Jugoslávia. Seria sempre uma ditadura esquerdizante, com uma componente civil e militar. Parecida, por exemplo, com algumas ditaduras modernizadoras do Terceiro Mundo, como o Peru ou o Egito, que tinham uma componente mais nacionalista. Isto não aconteceu porque, primeiro, o ambiente cultural a nível europeu e global permitia uma conciliação entre liberalismo e democracia liberal e socialismo. Algo que não está presente na primeira metade do século XX: quando aparece a Revolução Russa é uma grande novidade. Na segunda metade do século XX e, sobretudo, na década de 70, era possível, entre os radicais - estou a falar do PCP e da extrema-esquerda - e os moderados, sobretudo o Partido Socialista, mas também parte do centro-direita, o PSD, terem, por exemplo, um acordo naquilo que se pode chamar um forte setor público e nacionalizações. Este é o primeiro consenso. Há um consenso sobre a necessidade de que, para mudar a política, é preciso mudar também as estruturas sociais e económicas. Algo que os russos vêm fazer em 1917, mas que é rejeitado pelo establishment liberal dos partidos burgueses da altura. Passados mais de quase 50, 60 anos, tudo isso mudou. Aliás, há uma vaga de nacionalizações feita por partidos conservadores a seguir à 2.ª Guerra Mundial na Europa. Portanto, isso já faz parte do consenso. Isso permite uma aproximação entre as forças moderadas e radicais. Têm algo em comum. Um segundo aspeto, que também é importante, é que aquilo que se pode chamar o leninismo revolucionário na década de 70 está em crise, enquanto no início do século XX era uma novidade. Está em crise por várias razões, devido à experiência da própria União Soviética ou a revolução húngara, que foram reprimidas. Portanto, há uma grande desilusão e há também uma grande divisão na esquerda radical, com novos projetos. Alguns desses projetos não são democráticos, são maoistas, são castristas, inspirados na revolução. Mas isso, de certa maneira, divide o campo revolucionário entre si, o campo revolucionário radical, e permite que haja sempre uma parte desse campo revolucionário que se alie com os moderados. É o caso do Otelo, que se alia com o PS e com o Grupo dos Nove contra o PCP, por exemplo. Porque estes radicais também competem entre si. E uma parte desse campo radical é aquilo que se pode chamar os socialistas revolucionários. Ou seja, aquela geração de militares, tanto que alguns profissionais, representados sobretudo pelo Melo Antunes, mas alguns também os milicianos que andaram na universidade e são todos influenciados pelo ambiente cultural do Maio de 68 e da efervescência cultural dos Anos 60 em Itália, em que a visão dominante é aquilo que se chama um socialismo democrático, em que a sociedade deve manter uma característica de democracia liberal, de partidos, competitiva, mas ao mesmo tempo promover uma forte transformação das estruturas de dominação económica. Mas, na altura, toda a gente era socialista. Até o Partido Social Democrata queria ser da Internacional Socialista, e ali socialismo deve ser entendido num sentido lato. Ou seja, a criação, a ideia de que a democracia não é só política, mas também tem de ser social e económica. Um forte Estado de Previdência e também a ideia de que desigualdades não são toleráveis, de alguma maneira. Deve haver um controlo do Estado sobre a economia e o poder económico. Depois há também a ideia de que é legítimo ter partidos comunistas em Governos. Na primeira metade do século XX até à Segunda Guerra Mundial, não havia, não era legítimo. Era uma novidade revolucionária, era o exemplo da Revolução Russa. A seguir à Segunda Guerra Mundial já tinha havido essas experiências, nomeadamente nos Governos do pós-Segunda Guerra Mundial, provisórios, em Itália e em França. E tinha havido já várias coligações, e mesmo em Itália, e depois já mais tarde, nos Anos 80, eles participam num Governo, havia a ideia de que havia, de certa forma, uma unidade antifascista, de alguma forma. Essa unidade antifascista que nasce com as frentes populares nos Anos 30, de certa maneira, é um legado também cultural e que se vê nos Governos provisórios, com o PS a querer mobilizar os comunistas para os Governos provisórios. E, portanto, isso não era possível com o Lenine e com a Revolução Jugoslava e na Albânia, com a Revolução Chinesa, etc. Também começa na primeira metade do século XX, etc. Mas no pós, a experiência do fascismo aproxima moderados de radicais naquilo que se chama de grandes frentes antifascistas, cuja mais famosa é a frente popular em França, em 1936. Depois, também os movimentos de resistência. Em França e, sobretudo, em Itália, contra a ocupação nazi, contra a França de Vichy, o regime de Vichy, etc. Esse modelo está também disponível para o caso português. E é por isso, também, que a história da oposição ao Estado Novo, embora com convergências e divergências, é uma história de, sobretudo quando começa a Guerra Colonial, de crescente aproximação entre PCP e PS. E, na véspera do golpe, PC e PS estão em negociações, mais uma vez, para o movimento comum, etc. Muito inspirado pelo caso francês, pela unidade liderada pelo Mitterrand, que influencia muito Mário Soares. E, portanto, não há aquelas barreiras que opõem o socialismo tradicional, ou os liberais, contra a extrema-esquerda. E isso aí, no caso português, é cimentado, sobretudo, com as CDE [Comissões Democráticas Eleitorais]..Qual é o maior perigo para a democracia? Claramente, a extrema-direita, por duas ordens de razões. Porque uma boa parte dos seus princípios não é democrática. Aliás, eles próprios dizem que são democráticos, mas são iliberais. Ora, uma componente importante da democracia são as liberdades. Não há democracia sem liberdades. Ou então eles valorizam sobretudo a componente maioritária, demótica, eleição de um líder, etc. E essa componente é democrática. Mas, depois, tudo o que são liberdades cívicas e direitos cívicos são menosprezados a nível global. Especificamente, no caso português, eu acho que é um movimento que não é totalmente leal à democracia. Tem uma estratégia, como sempre teve, de extrema-direita, que é dupla. Por um lado, estão nas instituições e jogam o jogo democrático. Ao mesmo tempo, têm ações que subvertem a democracia, como, por exemplo, o permanente corroer das instituições ou o ataque à Presidência da República. Ou o mecanismo dos bodes expiatórios: os ciganos e os imigrantes. Portanto, a permanente ostracização e marginalização, exclusão, preconceito e racismo sobre grupos específicos. Eu penso que isso é um comportamento antidemocrático. A postura no Parlamento é antidemocrática, é de violação das regras. A maneira como utilizam a lei e os regulamentos é para violar, muitas vezes - com uma interpretação excessiva da lei e dos regulamentos, o próprio espírito da lei e das instituições democráticas. Há ambiguidade em relação à tentativa que já houve, por exemplo, com a polícia..Refere-se ao Suplemento de Missão das forças de segurança?Sim, foi uma tentativa de fazer com que houvesse ali um ataque ao Parlamento.