O Chega anunciou o voto contra a proposta do Orçamento do Estado para 2025 na generalidade, por considerar que o documento, resultante de um entendimento do Governo com o PS, ressuscita o Bloco Central que o vosso partido diz ter colocado Portugal na cauda da Europa, tanto nos rendimentos das famílias como na geração de riqueza. Pode dizer que fizeram tudo o que estava ao vosso alcance para que o processo não decorresse de uma forma diferente?Sim, aquilo que fizemos foi encetar negociações com o Governo e com o PSD, no sentido de que o documento fosse construído à direita. Lamentavelmente, nunca houve essa abertura por parte do Governo. Chegámos a ter duas reuniões com o ministro das Finanças: uma primeira ronda negocial em que nos deu alguma abertura para apresentarmos as nossas propostas, e uma segunda ronda negocial em que já notámos alguma resistência. Seria uma reunião para nos tentar apaziguar e, a partir do momento em que o Governo não deu qualquer abertura para apresentarmos propostas, ficou claro que já teriam um parceiro de coligação. A verdade é que deixaram cair muitas das suas bandeiras para conseguirem que este Orçamento fosse viabilizado..Uma das vossas principais críticas é a manutenção de uma elevada carga fiscal, apesar de o Governo repetir que este é o primeiro Orçamento em muitos anos a aliviar os contribuintes. Miranda Sarmento está a mentir aos portugueses?O aumento da carga fiscal vai fazer-se sentir por medidas aprovadas fora do Orçamento. Vou dar o exemplo do descongelamento da taxa de carbono, que está inserida no Imposto sobre Produtos Petrolíferos. Dentro do Orçamento não temos medidas que aumentem a carga fiscal, mas fora dele existem mecanismos que irão permitir ao Governo aumentar a carga fiscal. O ministro das Finanças disse-me claramente que para o ano irá descongelar a taxa de carbono e, ao fazê-lo, está a agravar o ISP. E como o ISP é um imposto, vai haver um agravamento de impostos. Aquilo que o Governo está a pensar fazer é conseguir aumentar a receita fiscal através do agravamento dos impostos indiretos, através da emissão de portarias, que foi o que o Governo do PS fez em 2023 por quatro vezes, e este Governo já fez também por três vezes em 2024..O Governo anterior também dizia muitas vezes que o aumento da coleta fiscal derivava da melhoria da economia, e não de mais impostos.Precisamente. O que o ministro das Finanças sempre alegou é que não haveria medidas compensatórias, ou seja, que o aumento da despesa seria financiado sempre pelo crescimento económico e pela inflação. Mas a verdade é que chegámos à conclusão de que, por exemplo, dos 753 milhões de euros de aumento de receita em sede do ISP, apenas 250 milhões se devem ao aumento do consumo. Ou seja, 500 milhões são realmente motivados pelo descongelamento da taxa de carbono..É nisso que consiste aquilo a que o Chega chama de traição ao eleitorado de direita?Não só. O IRC e o IRS foram esteios do programa eleitoral da AD. No caso do IRC, havia prometido reduzir a taxa de 21% para 15% entre 2024 e 2026. Estamos a falar de dois pontos percentuais por ano. Aconteceu que o Governo deixou cair essa medida para agarrar uma contraproposta do PS, limitando a redução a apenas um ponto percentual, para conseguir a viabilização do Orçamento. Mas no IRS Jovem, por exemplo, o Governo deixou cair uma medida que era muito mais leonina do ponto de vista orçamental, pois o IRS Jovem da AD custava cerca de mil milhões de euros, para aceder a um capricho do PS. O IRS Jovem do PS é uma medida que vai custar apenas 500 milhões de euros e, portanto, será menos eficaz do que a medida apresentada no programa eleitoral da AD. E a mesma questão no IRS. O Governo tinha reservado cerca de 500 milhões de euros para a redução do IRS em 2025 e aquilo que fez foi atualizar os escalões acima da taxa da inflação. Estamos a falar em 4,6%, mas não espero que chegue aos 500 milhões de euros que poderiam realmente ter utilizado para reduzir ainda mais as taxas..Miranda Sarmento insiste muito na tese de que o programa de Governo não se cumpre num só ano, sendo para cumprir em quatro anos. O que pensa dessa argumentação?É verdade que o programa de Governo e o programa eleitoral definem um compromisso plurianual, Mas se já começaram a falhar no primeiro ano, como será nos anos seguintes? O IRC não é conforme o que tinham dito, tiveram que limitar a redução do IRC para metade. E tiveram que adotar um IRS Jovem que é do PS, portanto não é o que estava idealizado no programa da AD. .No verão, o Chega condicionou a viabilização do Orçamento do Estado, ou pelo menos a sua discussão, à realização de um referendo para introduzir quotas de imigração, ao reforço de verbas para o controlo de fronteiras e à revisão de apoios e subsídios a imigrantes e refugiados. Olhando para trás, foi um erro estratégico?Nessa altura, não tínhamos conhecimento das negociações à porta fechada com o PS, e tínhamos a noção de que o Governo estava sozinho. Portanto, a apresentação dessas alternativas seria a última forma que tínhamos de poder viabilizar o Orçamento, sentindo que também iam ao encontro das nossas bandeiras. Lamentavelmente, a verdade é que se verificou que o Governo, afinal, já estava em negociações com o PS para a viabilização do Orçamento. Daí também que o Governo tenha facilmente descartado o pedido das nossas contrapartidas. Portanto, acho que não. Era importantíssimo fazer esse referendo para ouvir o povo português. Vivemos no bipartidarismo há 50 anos, numa bolha política, e muitas vezes não percebemos o que se passa lá fora e o que as pessoas sentem. O nosso resultado e a nossa ascenção em cinco anos deveriam pôr os governantes de sempre, os do PS e do PSD, a pensar se não deveriam ouvir mais as pessoas que vivem no mundo real. No fundo, era uma tentativa de termos alguma contrapartida face ao poder, que era nosso, de viabilizar o Orçamento..Acredita que caso o Chega se tivesse, em vez disso, comprometido com as receitas da AD para o IRC e para o IRS jovem, o Governo preferiria fazer um acordo com o PS?Sim. Repare que nunca tivemos abertura, por parte do Governo, no sentido de sentirmos que estava a negociar connosco. Houve sempre uma resistência enorme. Na primeira ronda sentimos que o Governo nos quis ouvir, mas sempre numa perspectiva muito pouco proactiva. Sentimos que não estávamos a receber o feedback necessário para perceber que estavam realmente interessados em aceitar as nossas medidas. Sentimos que o Governo nunca esteve disponível para negociar connosco. Ou seja, o foco do Governo na negociação do Orçamento do Estado foi sempre o PS. Nunca foi connosco..Depois das trocas de acusações entre André Ventura e Luís Montenegro, existe a menor hipótese de haver um entendimento à direita nesta legislatura?Penso que não haverá, pelo menos com Luís Montenegro. Esta falta de transparência do primeiro-ministro perante o povo português, esta falta de honestidade para connosco e o presidente do partido, André Ventura, gerou uma quebra de confiança que acho sinceramente irreconciliável. Não vai haver hipótese de conseguirmos voltar atrás e criarmos uma coligação ou um acordo parlamentar para dar apoio ao Governo. Acho que o presidente André Ventura tomou a decisão de tornar públicas aquelas reuniões no sentido de mostrar aos portugueses a transparência que deve ter todo o processo negocial e passar uma mensagem clara ao Luís Montenegro de que não servimos para amantes, não servimos para andar escondidos, servimos para estar numa mesa de negociações, mas que seja pública. Ou seja, sentimos que fomos completamente ostracizados pelo primeiro-ministro..Portanto, em princípio não haverá forma de realizar as reformas prometidas pelos vários partidos de direita na campanha para as legislativas.Conforme disse, acredito que neste momento, com Luís Montenegro, isso não seja possível. Mas só o futuro dirá. Não sei se o PSD eventualmente poderá mudar de postura para com o Chega, se respeitará o eleitorado e perceberá a aritmética parlamentar que nos dá a maioria. Se o povo português escolheu uma maioria de direita, irá respeitar a nossa maioria de direita? Tenho dúvidas, sinceramente, que o faça. Teve mais do que oportunidades para o fazer. Teve toda a abertura por parte de André Ventura. Se não o quis fazer até hoje, tenho sérias dúvidas de que o queira fazer..Nessa falta de entendimento, não vê nenhuma responsabilidade do Chega?Na parte inicial, aquilo que queríamos era ser ouvidos. Repare que temos 50 deputados. Fazemos a diferença na balança parlamentar. O Governo só consegue aprovar a proposta de lei através da nossa aprovação ou através da viabilização do PS. Não conseguirá de outra forma. Não vale a pena negociar com o Iniciativa Liberal, com o Bloco de Esquerda ou com o PCP. A aritmética parlamentar é claríssima. A partir do momento em que Luís Montenegro claramente demonstrou falta de vontade em negociar com o Chega, ficou claro que prefere uma negociação de Bloco Central entre o PS e o PSD do que estar a negociar à direita, o que para nós é lamentável..Se tudo acontecer como previsto, a proposta do Governo será aprovada amanhã na generalidade, com a abstenção do grupo parlamentar do PS. Depois, segue-se a discussão da especialidade. Acredita que há margem para alguma reviravolta?Há dois cenários. O primeiro é o PS ficar totalmente inerte na especialidade, e basicamente aceitar o Orçamento conforme está. Ou então, tornar o processo orçamental em sede de especialidade num calvário para o PSD. E consegue fazê-lo porque, ao contrário do PS, nós não votamos propostas benéficas para os portugueses em função do partido que as apresenta. Votamos em função do conteúdo. O que pode acontecer? Mesmo sabendo que eles não vão aprovar nenhuma proposta nossa, se o PS propuser um aumento extra para os pensionistas será muito difícil não viabilizar essa proposta de alteração. E se propuser o aumento do suplemento de missão para todas as polícias….Que é uma bandeira do Chega....vamos dizer que não? Disse a um deputado do PSD, com responsabilidades no grupo parlamentar, que vamos avançar com uma proposta de alteração para reduzir o IRC em dois pontos percentuais, como no programa deles. “Vão acompanhar-nos?”, perguntei. “Não vamos acompanhar absolutamente nada, respondeu. “Mas é uma medida que estava no vosso programa eleitoral, e nós estamos aqui para vos acompanhar”, insisti. “Obviamente iremos votar contra.”.Consegue compreender que o PSD e o CDS votem contra o seu próprio programa de governo?Mais do que uma traição à direita portuguesa, é uma traição ao eleitorado. As pessoas votaram no PSD, votaram na AD, com base num programa eleitoral. Estão a trair o seu próprio programa eleitoral em troca da viabilização do Orçamento do Estado. Isso demonstra que há partidos mais interessados em manterem-se no poder, com os poleiros e com os tachos, do que propriamente em defender as suas bandeiras..Se o PSD e o CDS aprovassem a vossa proposta de alteração no IRC era possível que o PS retrocedesse na viabilização na globalidade. Nesse cenário, em que condições o Chega estaria disposto a substituir os socialistas na aprovação do Orçamento? Costumo dizer que isto são oportunidades. Podemos transformar este Orçamento do Estado num Orçamento de direita em sede de especialidade. Mas é preciso que haja negociações, que o primeiro-ministro pegue no telefone, fale com o presidente do partido, André Ventura. O que queremos, em sede de especialidade, é defender as propostas que sejam melhores para os portugueses, independentemente de virem do Governo, do PSD ou do PS. Estamos aqui para defender os portugueses. Quanto ao resto, não consigo dizer... Percebo a pergunta, mas no processo orçamental podemos fazer muitas coisas. Só depois de haver pontos em concreto e negociação, é que, eventualmente, se poderia pensar nisso..No limite, é legítimo que o PSD pense que, se aprovar medidas vossas que possam fazer perder a abstenção do PS, fique sem pé, por não ter garantido o que teria de ser voto favorável do Chega. Compreendo, mas há opções que têm de ser feitas. E o Governo optou por trair as suas bandeiras e o seu eleitorado pela viabilização do Orçamento. A política não deve ser feita dessa forma. Não posso desvirtuar completamente todo o programa eleitoral, não posso abdicar de todas as minhas bandeiras simplesmente porque quero viabilizar um documento. Não faz sentido nenhum. Numa situação em que existem fraturas e visões completamente diferenciadas entre PS e PSD, o Governo devia pensar de forma diferente..Ficava especialmente feliz se o subsídio de suplemento de missão de todas as forças de segurança fosse equiparado ao que existe para a Polícia Judiciária?Ficava. É, se calhar, uma das maiores injustiças que neste momento existe na Administração Pública. O risco que corre um PSP ou um GNR não será inferior ao risco de um elemento da Polícia Judiciária. Não há cidadãos de primeira e de segunda, como não pode haver polícias de primeira e de segunda. Devemos nivelar sempre a vida humana por cima e nunca por baixo..Se nenhuma proposta de alteração do Chega for aprovada, quais serão as consequências que o partido deve retirar disso?A cerca sanitária foi sempre feita pelos principais partidos do sistema. Quer o PSD, quer o PS. E quando falo do PS, falo dos partidos-satélite, pois Livre, PCP e Bloco de Esquerda estão-lhe agregados. Se nenhuma das nossas propostas for aprovada, temos que continuar a lutar para sermos uma alternativa e provar que conseguimos fazer a diferença.