Miller Guerra demite-se da Assembleia Nacional mais ou menos um ano antes do 25 de Abril de 1974. Foi uma reação a quente por causa da censura nos jornais a um discurso seu parlamentar ou uma rutura inevitável mas pensada com o marcelismo?.Nas intervenções que realizou como deputado na Assembleia Nacional Miller Guerra foi sempre muito crítico do regime. Chegou mesmo a condenar a falta de liberdade de expressão que se vivia na Assembleia Nacional, defendendo que a informação era um dos elementos essenciais ao desenvolvimento de qualquer país. Mostrou-se indignado com os cortes realizados pela censura aos textos das suas intervenções, tendo, nessa ocasião, sido apoiado pelos colegas da "ala liberal". A 25 de janeiro de 1973 Francisco Sá Carneiro tinha apresentado a sua renúncia ao lugar de deputado como forma de protesto contra a recusa da comissão parlamentar discutir os projetos de lei sobre amnistia, crimes políticos, liberdade de associação e de reunião e de alteração do código civil. Os restantes deputados "liberais" foram apresentando os seus pedidos de demissão, quase de seguida. Começava a ficar claro que o regime não estava aberto a nenhuma mudança. Nas eleições para a Assembleia Nacional de 28 de outubro de 1973 os únicos que integraram as listas do partido do governo foram Mota Amaral e José da Silva, mas a experiência da "ala liberal" tinha chegado ao fim..Como foi este médico e professor universitário parar às listas da União Nacional criada por Salazar para sustentar o Estado Novo?.Para além de católico, Miller Guerra era amigo muito próximo, desde os tempos em que fora estudante em Coimbra, do presidente da Comissão Executiva da União Nacional, José Guilherme de Melo e Castro. Tinham, de resto, a rotina de passear em Cascais e ficar a conversar em frente ao Hotel Baía. Em dezembro de 1968, Marcelo Caetano tinha solicitado a Melo e Castro que se incluíssem nas listas eleitorais alguns progressistas moderados, acenando que, caso aceitassem integrá-las, teriam alguma "liberdade de movimento". Melo e Castro iniciou, então, um conjunto de contactos, junto dos meios católicos, em Lisboa e no Porto, com várias personalidades que se haviam destacado ao longo dos últimos anos, na defesa de princípios reformistas e que se mostraram favoráveis a uma abertura democrática do regime (Alberto Alarcão e Silva, Francisco Pinto Balsemão, Sá Carneiro). Foi assim que surgiu o convite ao amigo João Pedro Miller Guerra. Miller Guerra, que já era procurador à Câmara Corporativa em representação da Ordem dos Médicos, aceitou o desafio considerando que essa poderia ser uma oportunidade de mudança do regime, rapidamente se desiludiu..Como era a relação com outros deputados da chamada ala liberal, como Sá Carneiro?.Sá Carneiro era, após a morte de João Pedro Pinto Leite, o líder da "ala liberal", de certo modo todos os restantes deputados, todos muito próximos em termos geracionais, tinham os olhos postos nele. Em janeiro de 1973 Pinto Balsemão lançava um novo projeto, o Expresso, e Miller Guerra tinha por hábito juntar-se aos membros da redação do jornal, após o jantar, às sextas-feiras, no restaurante Pabe e aguardar os cortes que a censura tinha feito à publicação. Miller Guerra e Magalhães Mota passaram mesmo, no início de 1974, na sequência do acidente de viação sofrido por Sá Carneiro, a assinar a rubrica "Visto" do Expresso..Onde estava Miller Guerra no 25 de Abril?.Nessa altura estava no Hospital de Santa Maria, tendo-se recusado a suceder a Almeida Lima, que se jubilara em janeiro de 1973 como catedrático e diretor de serviço, mas propôs a nomeação de João Lobo Antunes. O nome de Miller Guerra foi, no entanto, um dos três indicados pelo MFA ao Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola, para chefiar o governo que tinha saído da revolução, mas Miller avançou como condição para aceitar o cargo a independência imediata das colónias portuguesas. Hipótese que, como sabemos, para Spínola estava fora de questão. Numa entrevista que concedeu à RTP ainda afirmou estar disposto a prosseguir uma carreira política, mas sublinhou que as condições para que isso acontecesse, e que se encontravam no Programa da Junta de Salvação Nacional eram, ainda, insuficientes..O PS foi a escolha óbvia para ser militante?.Acabou por ser uma segunda escolha. Com a possibilidade aberta, pela Revolução, para a formação de novas estruturas partidárias, Spínola notou a necessidade de se formarem partidos à direita do PS e reuniu com Sá Carneiro, uma vez que a direita se encontrava dividida e desorganizada. Sá Carneiro tinha vindo a Lisboa, logo a 26 de abril, e no dia seguinte, já em sua casa, deu uma entrevista à RTP em que avançou com a possível constituição de um partido político. Marcelo Rebelo de Sousa e Miller Guerra ainda foram a uma reunião a casa de Veiga Simão com o objetivo de promover a fusão entre o PPD e o grupo de amigos que, entretanto, se tinha reunido em torno de Diogo Freitas do Amaral, mas o encontro não foi bem-sucedido. A 3 de maio de 1974, Sá Carneiro, Miller Guerra, Magalhães Mota e Pinto Balsemão foram ao Palácio de Belém, com o objetivo de reunir com Spínola e apresentar as linhas orientadoras do PPD. Um dos pontos principais da reunião foi a forma moderada com que Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Magalhães Mota apresentaram como prioritária a elaboração de uma nova Constituição da República Portuguesa e colocaram em cima da mesa a questão da autodeterminação das colónias, Miller Guerra e Spínola desentenderam-se. O PPD seria apresentado em conferência de imprensa no dia 6 de maio, mas Miller Guerra já não estaria presente e o novo partido ficou reduzido a três fundadores. Miller temia, também, que o PPD pudesse ser considerado, como Mota Amaral chegou a recordar, o "guarda-chuva da ANP", uma vez que o seu núcleo fundador era constituído, maioritariamente, por membros da "Ala Liberal"..Que desempenho teve na Assembleia Constituinte eleita em 1975?.Miller Guerra tinha-se filiado no PS meses antes e integrou as listas do partido à Assembleia Constituinte tendo sido eleito deputado. A sua primeira intervenção teve lugar a 16 de junho, repetiu o mesmo discurso que tinha proferido naquela que foi a sua intervenção de despedida na Assembleia Nacional, a 6 de fevereiro de 1973 e insinuou que a situação que tinha vivido durante o Estado Novo era igual à vivida no PREC. Integrou a 3.ª Comissão Parlamentar de Direitos e Deveres Fundamentais, as suas intervenções centraram-se, por isso, em torno do papel que deviam ocupar numa sociedade democrática, o ensino, a cultura e a investigação científica..Houve algum papel de Miller Guerra na criação do serviço nacional de saúde?.Em conferências, artigos, livros, alertou sempre para a deficiente assistência hospitalar e denunciou a insegurança profissional e económica dos médicos recém-formados. Recorde-se a forma como defendeu, quando exerceu o cargo de bastonário, os cerca de 300 médicos interinos que tinham sido exonerados das suas funções. Com Albino Aroso e António Arnaut lutou pela necessidade de ser o Estado a assegurar a existência de médicos responsáveis e qualificados, capazes de fazer face aos constantes desafios que se impunham ao exercício da profissão..Como biógrafa o que mais a impressionou na personalidade deste homem?.A sua verticalidade. A sua paixão pela ciência e pelo conhecimento, a que dedicou toda a sua vida. Era um escritor meticuloso, publicou dezenas de artigos em revistas como a Análise Social, Brotéria ou O Tempo e o Modo. Defendeu desde cedo que o dever moral de qualquer Estado era garantir a democracia e salvaguardar as liberdades de expressão, reunião ou associação. Até ao final da vida bateu-se, sempre, pela internacionalização do conhecimento, a socialização da medicina e a "educação permanente", conceito que explicitou por diversas vezes e que, nada mais era, do que um verdadeiro projeto de educação médica, distinto, por isso, da "educação para adultos", com que, por vezes continuava a ser confundida. Foi um cidadão empenhado em inúmeras causas nobres: a democratização do acesso ao ensino superior e a construção de um serviço nacional de saúde, foram, talvez, duas das batalhas em que dividiu a sua vida. Miller Guerra foi, acima de tudo, um servidor da causa pública, um cientista que compreendia a liberdade intelectual como condição e fim. É neste sentido que devemos ler e entender as reflexões que partilhou em órgãos de comunicação social ou nas intervenções que proferiu na Assembleia Nacional ou na Ordem dos Médicos e que continuam a constituir, hoje, mais de cem anos passados, sobre o seu nascimento, o principal legado intelectual e humanista, de uma figura central para o estudo da neurologia em Portugal no século XX..A sociedade portuguesa presta a devida homenagem a estas figuras políticas capazes de atravessar dois regimes com a consciência tranquila?.Creio que na sua esmagadora maioria a sociedade portuguesa não tem noção do risco e da coragem destes homens, mas sobretudo da sua integridade. Miller e alguns dos seus companheiros da "ala liberal" enfrentaram Marcelo Caetano e um regime cujas listas tinham acedido integrar, e aqui não há quaisquer dúvidas ou "zonas cinzentas", basta ler as declarações por eles proferidas na Assembleia Nacional logo após a eleição. Miller Guerra renunciou ao cargo de deputado em plena sessão, proferindo um dos discursos mais violentos a que a Assembleia Nacional assistiu durante 40 anos de Estado Novo, ousou desafiar o regime quando denunciou os acontecimentos da Capela do Rato, a situação de confronto vivida na Faculdade de Medicina, na sequência da crise académica do final dos anos 60, ou quando entendeu apoiar o projeto de revisão constitucional da autoria de Francisco Pinto Balsemão e Francisco Sá Carneiro. Estes homens contribuíram, também, para o derrube do regime, e essa realidade continua a não ser devidamente recordada..leonidio.ferreira@dn.pt