Eutanásia. Presidente do parlamento da Madeira admite levar lei ao TC
Belém não deu seguimento ao pedido dos presidentes das assembleias regionais dos Açores e Madeira. José Manuel Rodrigues admite pedir fiscalização ao Constitucional se a lei entrar em vigor.
Marcelo Rebelo de Sousa não deu cobertura ao apelo dos presidentes dos parlamentos dos Açores e Madeira, que se queixam de ter sido ignorados pela Assembleia da República no diploma da eutanásia, mas José Manuel Rodrigues, que lidera a Assembleia Legislativa madeirense, admite avançar a título próprio e pedir a fiscalização sucessiva do diploma, caso a lei venha a entrar em vigor.
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Os presidentes das assembleias legislativas regionais são uma das entidades que têm a prerrogativa de pedir ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização sucessiva da constitucionalidade de uma lei. De acordo com a Constituição, isto pode ser feito quando o pedido alegar "violação dos direitos das regiões autónomas" ou o "pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação" do estatuto político-administrativo das duas regiões. Ao DN, e face à decisão presidencial de não suscitar a questão junto do TC, José Manuel Rodrigues diz "manter a opinião de que a Assembleia da República deveria ter ouvido as Assembleias Legislativas, a exemplo do que faz com toda a legislação que produz", nos termos da Constituição - que estabelece que "os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos do Governo regional". O presidente do parlamento madeirense sustenta que "existem acórdãos do Tribunal Constitucional pró e contra esta posição", mas acrescenta que "numa matéria desta importância todos os representantes do povo deveriam ser ouvidos". Já o presidente da assembleia legislativa regional dos Açores, Luís Garcia, não quis pronunciar-se, invocando que esta matéria está ainda a ser analisada.
Além dos presidentes das assembleias legislativas, também os deputados regionais e os presidentes do governo dos dois arquipélagos podem suscitar a constitucionalidade da lei. A mesma prerrogativa tem um décimo dos deputados (ou seja, 23) à Assembleia da República: o PSD já admitiu, aliás, enviar o diploma para fiscalização sucessiva do TC. Juntando as várias peças, é praticamente inevitável que a morte medicamente assistida volte ao Constitucional pelo menos uma terceira vez (neste cenário sem tempo determinado, dado que a fiscalização sucessiva, que só pode ser pedida após a entrada em vigor da lei, não está sujeita a prazos).
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Na passada semana, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a enviar para o TC o diploma que despenaliza a morte medicamente assistida, pedindo aos juízes do Palácio Ratton que avaliem se o texto atual cumpre os requisitos de certeza e segurança jurídica que os próprios juizes-conselheiros exigiram em março do ano passado, quando o diploma foi pela primeira vez ao Constitucional e acabou chumbado. Pelo caminho ficou o pedido endereçado a Belém por José Manuel Rodrigues e Luís Garcia, que tinham apelado ao Presidente que suscitasse a questão da não audição das regiões autónomas. Na mensagem publicada no site da Presidência, aquando do envio do diploma para o TC, Marcelo sustenta que, de "acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, parece não avultar, no regime substantivo do diploma, um interesse específico ou diferença particular das Regiões Autónomas" neste caso. Para o Presidente da República o "diploma complementar que venha a referir-se aos Serviços Regionais de Saúde, que são autónomos, deverá, obviamente, envolver na sua elaboração os competentes órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira".
"É uma coisa inédita"
Uma visão da qual o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia - que tem defendido que a não audição das regiões autónomas é contrária à Constituição - diz discordar frontalmente. "Acho lamentável que o Presidente da República não dê acolhimento a um pedido dos presidentes dos dois parlamentos regionais. É uma coisa inédita, nunca tinha visto", critica, defendendo que esta questão devia ficar esclarecida desde já, seja qual for a pronúncia do TC, sob pena de o vir a ser mais tarde, com a lei já em vigor.
No restante, Bacelar Gouveia sustenta que a fundamentação do pedido ao TC, por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, é a "expectável", mas acrescentando que o chefe de Estado "poderia ter ido mais longe na identificação de dúvidas" - "limita-se a perguntar se o novo texto está conforme" ao que ficou expresso no anterior acórdão do TC.
"Há uma insuficiente densificação dos conceitos"
Já o constitucionalista Paulo Otero acompanha a decisão de Belém: "O Presidente fez bem, o que está em causa não é um problema de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade. Não está em causa uma violação, direta ou indireta, da Constituição, mas dos direitos consagrados nos estatutos" das regiões autónomas. Quanto à argumentação usada pelo Presidente da República, Paulo Otero considera que Marcelo optou pela via correta e não tem muitas dúvidas de que as questões suscitadas encontrarão respaldo no Palácio Ratton.
Para Otero os conceitos usados no diploma da morte medicamente assistida continuam a ser vagos e indeterminados, agora com a agravante de este ser um texto "mais permissivo, mais ampliativo da morte medicamente assistida". Dá como exemplo o conceito de "sofrimento de grande intensidade" - de importância "nuclear" no texto - que "utiliza na definição os próprios termos a definir". O diploma define "sofrimento de grande intensidade" como o "sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa". "Passamos a saber que o sofrimento de grande intensidade é um sofrimento com grande intensidade", ironiza o constitucionalista. "Há uma insuficiente densificação, uma insuficiente determinação dos conceitos. Estamos no domínio do primeiro dos Direitos Fundamentais e isso é incompatível com esta insuficiente densificação", remata Paulo Otero.
susete.francisco@dn.pt