TC já disse: eutanásia é legal, desde que "clara, antecipável e controlável"
Acórdão de março do ano passado deixou expresso o entendimento maioritário dos juízes, que consideraram então que a morte medicamente assistida não é contrária à Constituição, mas deve ser regulada em termos claros.
Aprovada a terceira versão do diploma que despenaliza a morte medicamente assistida, que deverá chegar ao Palácio de Belém nas próximas semanas, tem ganho força o cenário de um novo envio do texto para o Tribunal Constitucional (TC), por parte do Presidente da República. Uma hipótese que tem sido defendida pela generalidade dos constitucionalistas, mas também por nomes como Luís Marques Mendes ou António Lobo Xavier, ambos conselheiros de Estado.
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A concretizar-se este cenário, não será a primeira vez que os juízes do Palácio Ratton se pronunciam sobre a eutanásia - em fevereiro de 2021 Marcelo Rebelo de Sousa enviou a primeira versão do diploma para o TC, que acabaria a decretar a inconstitucionalidade de várias normas, entretanto alteradas pelos deputados. Mas, contrariando o que pediu então o Presidente da República - que escreveu expressamente que não pedia a apreciação da constitucionalidade do conceito de eutanásia -, os juízes não se debruçaram estritamente sobre as normas em questão, mas sobre o teor geral do articulado. E o que escreveram então permite balizar o entendimento do TC sobre a morte medicamente assistida, para lá das normas que foram decretadas como contrárias à Constituição.
A começar por aquela que é, provavelmente, a frase de maior alcance de todo o acórdão - "O legislador democrático não está impedido, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida". Ou seja, para os juízes do TC o conceito de antecipação da morte, seja através de eutanásia ou suicídio medicamente assistido, não é contrário à Constituição da República Portuguesa.
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A conclusão dos juízes conselheiros resulta da confrontação da despenalização da morte medicamente assistida com o artigo 24.º da Constituição, que consagra o "direito à vida", estipulando que "a vida humana é inviolável". No acórdão, os juízes até consideram que a formulação inscrita na Lei Fundamental portuguesa é particularmente fechada, não abrindo margem a exceções. Mas acrescentam que esta determinação constitucional não pode ser confundida com uma obrigação de viver em quaisquer circunstâncias. Admitindo que há uma "tensão" entre o artigo 24.º e a eutanásia, o acórdão refere que a "proteção absoluta e sem exceções da vida humana (...) tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso".
Resta ainda a questão da assistência de terceiros (obrigatoriamente médicos e enfermeiros) à morte de um doente. Também neste ponto o TC deixa a porta aberta à não inconstitucionalidade desta fórmula: "Uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável".
Um entendimento que, salvo inversão da posição do TC, afasta o cenário de uma declaração de inconstitucionalidade do objeto do diploma, um cenário que colocaria em causa a própria existência da lei, dado que um veto desta natureza dificilmente poderia ser ultrapassado pelos deputados.
Assim sendo, a conclusão então enunciada pelo TC remete qualquer declaração de inconstitucionalidade futura para o domínio das condições e regulação da morte medicamente assistida. O que não é pouco relevante no que já vai sendo um braço de ferro entre a Assembleia da República e a Presidência, dado que deixa ao Parlamento a prerrogativa de, como já fez anteriormente, expurgar os pontos inconstitucionais e reenviar o texto "corrigido" para Belém - as vezes que forem necessárias.
No acórdão de março do ano passado o TC não se limita a afirmar que a despenalização da morte medicamente assistida é constitucional, e chega mesmo a balizar os termos que deve respeitar. "O legislador tem de observar limites, designadamente os que decorrem dos deveres de proteção dos direitos fundamentais que estão em causa na antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa", refere o acórdão, apontando a salvaguarda "da voluntariedade da colaboração dos terceiros, maxime a possibilidade de os mesmos invocarem objeção de consciência" e a "proteção da autonomia e da vida da própria pessoa que pretende antecipar a sua morte". Um princípio tanto mais relevante por se tratar de pessoa "numa posição vulnerável, razão acrescida por que deve ser defendida contra atuações precipitadas ou determinadas por pressões sociais, familiares ou outras". "Está em causa a adoção de uma decisão cuja concretização se traduz num resultado irreversível, pelo que a mesma só deve ser atendida desde que existam garantias suficientes de se tratar de uma genuína expressão da autodeterminação esclarecida de quem a toma", lê-se no documento.
Situações "claras, antecipáveis e controláveis"
Para os juízes do TC, o dever de proteção de "quem pretende antecipar a sua morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe uma disciplina rigorosa quanto às situações" em que se pode recorrer a esta figura. São exigíveis "garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguardar a liberdade e o esclarecimento do paciente" e também o "controlo da verificação concreta dos casos previstos". Só assim "se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um Estado de direito, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém dentro dos limites que a justificam constitucionalmente" - a "salvaguarda do núcleo de autonomia inerente à dignidade de cada um, enquanto sujeito, ou seja, um ser autodeterminado e autorresponsável".
O acórdão é ainda mais claro sobre o que se exige ao legislador, neste caso a Assembleia da República. As situações em que será possível pedir a antecipação da morte medicamente assistida têm de "ser claras, antecipáveis e controláveis" e o procedimento estabelecido deve acautelar "inevitáveis indeterminações" que venham a surgir nos casos concretos. "Incumbe ao legislador, por esta via, prevenir a possibilidade de indesejáveis e imprevistas "rampas deslizantes"", advertia então o TC. Para concluir, no que deixa também uma pista para futuras apreciações: "O mérito do sistema legal de proteção deverá, assim, ser objeto de uma avaliação global, que considere as possibilidades de interação entre as condições materiais relativas ao paciente e sua condição e o procedimento, na sua vertente clínica e administrativa". Na altura, o TC chumbou várias normas do texto , invocando precisamente "insuficiente densidade normativa".
Uma nova questão: a audição das regiões autónomas
A concretizar-se novo envio do diploma para o TC, os juízes poderão agora ser chamados a apreciar uma questão que não foi levantada em março do ano passado - o facto de as regiões autónomas não terem sido ouvidas durante o processo legislativo. Uma circunstância que já mereceu uma missiva quer da Assembleia Legislativa da Madeira, quer da dos Açores, pedindo ao Presidente que declare a inconstitucionalidade do texto. A questão não é pacífica entre constitucionalistas. A Lei Fundamental determina que " os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional".
Ano e meio depois, há quatro novos juízes no Constitucional
O acórdão em causa foi aprovado, à data, por uma maioria de sete juízes contra cinco (havia então uma vaga por preencher no TC). Desde então a composição do Tribunal Constitucional alterou-se, com a saída de três dos juízes conselheiros que votaram o acórdão - deste trio, dois votaram a favor, um votou contra. Em outubro de 2021 o Parlamento votou quatro nomes que poderão agora ser chamados a pronunciar-se pela primeira vez sobre a questão da morte medicamente assistida - Afonso Patrão (proposto pelo PSD), José Figueiredo Dias (também proposto pelo PSD), António José da Ascensão Ramos (proposto pelo PS) e Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (nome proposto pelo PSD). Mas dificilmente se pode antecipar sentidos de voto, dado que há casos em que o voto é justificado pela argumentação expressa no acórdão e não por uma posição de princípio favorável ou desfavorável à eutanásia.
Já com a redação final concluída, o diploma de eutanásia deveria chegar a Belém em meados da próxima semana, mas o Chega anunciou ontem que vai apresentar uma reclamação do texto, o que poderá atrasar o envio para o Presidente da República.
susete.francisco@dn.pt
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