Deputados tentam novo acordo de revisão constitucional, 18 anos depois

Comissão parlamentar toma hoje posse, com oito projetos de revisão em cima da mesa - que, no conjunto, alteram mais de metade da Constituição. A grande maioria das propostas ficará pelo caminho, mas pontos de convergência entre PS e PSD abrem portas a um entendimento.

A Comissão Eventual que vai discutir a oitava revisão constitucional toma hoje posse, com uma tarefa de peso pela frente. No conjunto, os oito projetos de revisão, apresentados por todos os partidos com assento parlamentar, alteram mais de metade da Constituição. Previsivelmente, a esmagadora maioria ficará pelo caminho. Mas há 14 artigos com propostas de alteração comum entre PS e PSD - e se nem todas são de sinal convergente, há espaço para um entendimento entre socialistas e sociais-democratas.

A concretizar-se, será o primeiro acordo desde o já longínquo ano de 2005. O processo que agora se inicia foi lançado em outubro pelo Chega, numa iniciativa que recebeu críticas da esquerda à direita. Mas com o PSD a avançar também, todos os partidos acabaram por apresentar propostas, com o primeiro-ministro a defender que "não interessa como começa" o processo, "interessa como acaba". Para já, a comissão eventual terá um período de trabalho de 90 dias, que podem ser prorrogados. Eis um retrato das propostas em cima da mesa.

PSD com revisão maximalista, PS no extremo contrário

O PSD é o partido que avança com uma proposta de revisão mais alargada: os sociais-democratas propõem-se alterar 71 artigos da Lei Fundamental, acrescentando cinco novos. O PCP mexe em 68. Segue-se o Chega, cuja proposta altera 63 pontos da Constituição. O projeto do BE avança com 40 alterações e dois artigos novos, a IL com 35 e dois aditamentos, enquanto o PAN muda 23 artigos e o Livre 20, acrescentando dois novos artigos à Constituição. O projeto do PS é o mais minimalista, com duas dezenas de propostas de alteração e um aditamento.

Os artigos que (quase) todos querem mudar...

Considerados os projetos dos oito partidos, há um artigo da Constituição em que praticamente todos se propõem mexer (só o Livre não tem proposta de alteração). Trata-se do artigo 64, dedicado à Saúde. Há uma mudança que é praticamente certa, tal é o espetro alargado das propostas - onde a Constituição institui que "incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação", todas as propostas acrescentam a medicina paliativa, e algumas a medicina reprodutiva e a saúde mental. Já as restantes alterações propostas são tudo menos convergentes, com a direita a querer sublinhar o papel dos privados no sistema de saúde e a esquerda a propor exatamente o contrário.

Outro artigo que quase recolhe o pleno (neste caso falta a IL) é o 66, dedicado ao ambiente e qualidade de vida. Muito embora as formulações sejam diferentes, os objetivos enunciados são comuns, pelo que também aqui é admissível um acordo. E o mesmo é válido para o artigo 35, onde a generalidade dos partidos quer incluir o direito ao esquecimento digital.

O artigo que todos querem alterar, menos o PS

Há outro ponto que faz o pleno... na oposição. É o 149, que define os círculos eleitorais, um assunto "quente" em termos políticos. Do conjunto de alterações, o PSD propõe a mais minimalista, sustentando que o número de deputados eleitos por cada círculo plurinominal deve levar em conta a "representação equilibrada de todo o território". Chega e Livre querem prever um círculo nacional de compensação. IL, PCP, BE e PAN retiram a consagração constitucional do método de Hondt, sendo que comunistas e bloquistas retiram também os círculos uninominais, introduzidos na Constituição em 1997. Mas o facto de a proposta do PS ser alheia ao tema dá um sinal do destino mais provável destas propostas: o chumbo.

PS e PSD querem alterar 14 artigos em comum

Há 14 artigos com propostas de alteração quer do PS, quer do PSD. Embora isso não signifique necessariamente convergência, é sobretudo nestes pontos que estará a chave da oitava revisão constitucional. Nesta quase dezena e meia estão dois temas fulcrais dos trabalhos: a obrigatoriedade de confinamento em caso de doença infecciosa grave; e o acesso aos metadados das telecomunicações por parte dos serviços de informação.

No primeiro caso, os dois partidos alteram o artigo da Constituição que elenca as situações em que é permitida a privação de liberdade dos cidadãos, somando-lhe agora a possibilidade de internamento ou confinamento por razões de saúde pública. Um ponto polémico, dado que a medida de confinamento pode ser decretada pela autoridade de saúde, com "garantia de recurso urgente à autoridade judicial" (na proposta do PS) ou "decretado ou confirmado por autoridade judicial" (na proposta do PSD). No que se refere aos metadados, o PS quer permitir o "acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações, a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação". O que será permitido para "salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada". O PSD propõe que "a lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais."

Os artigos em que ninguém mexe

. Dos 296 artigos do texto atual da Constituição, há 129 sem qualquer proposta de alteração no conjunto dos oito partidos. O mesmo é dizer que mais de metade da Constituição será alvo de debate nesta revisão. O que também é bastante certo é que a esmagadora maioria das propostas ficará pelo caminho. A começar pela generalidade das alterações ao sistema político, nomeadamente uma das propostas mais polémicas, apresentada pelo PSD: a definição de um mandato único de sete anos para o Presidente da República. António Costa já disse que não quer mexer no sistema político e institucional.

IL, os campeões das propostas de eliminação

São vários os partidos que avançam com a eliminação total de artigos da Constituição, mas há um que se destaca: a Iniciativa Liberal quer retirar da Lei Fundamental um total de 13 artigos (e umas quantas alíneas de mais uma dezena de pontos). Chega e PCP propõem a eliminação de cinco, dois deles comuns - a "incriminação e julgamento dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS e a "reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974". O PCP também elimina o artigo que abre as portas ao referendo sobre tratados europeus. Também o PSD propõe a eliminação de cinco artigos.

Um texto constitucional que saiu das eleições mais participadas de sempre


A Constituição saiu da pena dos deputados da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril de 1975 na mais participada eleição da democracia portuguesa - 91,7% dos eleitores portugueses foram às urnas escolher 250 deputados. Entre os parlamentares eleitos estavam Mário Soares, Manuel Alegre, António Arnaut, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Jorge Miranda, Álvaro Cunhal, Jerónimo de Sousa, Diogo Freitas do Amaral ou Adelino Amaro da Costa (embora Cunhal, por exemplo, não tenha chegado a exercer o mandato, enquanto Soares saiu e voltou). Os trabalhos da Constituinte prolongaram-se por dez meses, após o que a Assembleia se dissolveu. O texto da Constituição (que entrou em vigor a 25 de abril de 1976, no mesmo dia em que se realizaram eleições legislativas) teve o voto favorável do PS, PPD/PSD, PCP, MDP/CDE, UDP e ADIM (Associação de Defesa dos Interesses de Macau). Só o CDS votou contra. Com 296 artigos, a Constituição divide-se em quatro partes - Direitos e Deveres Fundamentais, Organização Económica, Organização do Poder Político e Garantia e Revisão da Constituição.

1982. A desmilitarização do regime

Em 1982 é concluído primeiro processo de alteração do texto de 1976, naquela que se mantém como a revisão constitucional de maior alcance, que desmilitariza o regime e limita os poderes do Presidente da República. O Conselho de Revolução é extinto, surgindo no seu lugar o Tribunal Constitucional e o Conselho de Estado, como órgão consultivo do Presidente. Este perde poderes para a Assembleia da República, ao mesmo tempo que a demissão do Governo pelo chefe de Estado passa a ser admitida apenas quando for necessário assegurar o "regular funcionamento das instituições democráticas". A primeira revisão dá também maior espaço à iniciativa privada.

1989. Menos Estado na Economia

O caminho para a liberalização económica, que já se iniciara sete anos antes, consolida-se em 1989. Com Aníbal Cavaco Silva como líder da primeira maioria absoluta do PSD, a segunda revisão constitucional põe fim à irreversibilidade das nacionalizações feitas após o 25 de Abril, abrindo caminho às reprivatizações. O domínio estatal da economia é esbatido, tal como a Reforma Agrária. É esta revisão constitucional que introduz na Lei Fundamental a possibilidade de referendo.

1992. Adaptar o Tratado de Maastricht

Três anos depois da última revisão, a Constituição da República Portuguesa volta a ser alterada em 1992, desta vez para adaptar o texto constitucional às novas regras do Tratado de Maastricht. Na mesma linha, a revisão estabelece também que "o Banco de Portugal, como banco central nacional, colabora na definição e execução das políticas monetária e financeira e emite moeda, nos termos da lei", retirando ao banco central o monopólio da emissão de moeda.

1997. Adaptar o Tratado de Amesterdão

A Constituição volta a ser revista em 1997, novamente para adaptar o texto a um tratado europeu, agora o Tratado de Amesterdão. Mas a quarta revisão constitucional acaba por consagrar também outras alterações, nomeadamente no sistema eleitoral: passa a ser admitida a criação de círculos uninominais (o que nunca aconteceu até hoje), admite-se que o número de deputados possa ser reduzido até aos 180, é criada a figura da iniciativa legislativa dos cidadãos e a possibilidade de candidaturas independentes às autarquias. Os emigrantes passam a poder votar nas eleições para a Presidência da República. É introduzida a obrigatoriedade de a regionalização ser sujeita a referendo.

2001. O Tribunal Penal Internacional

A quinta revisão constitucional, em 2001, é feita com o objetivo de permitir a ratificação, por Portugal, da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, alterando as regras de extradição. A revisão extraordinária foi aprovada por PS, PSD e CDS, com os votos contra do PCP, Bloco de Esquerda e Verdes, a que se somaram, na bancada socialista, três votos contra (Manuel Alegre, José Medeiros Ferreira e António Marques Júnior) e uma abstenção (Helena Roseta) na bancada socialista.

2004. Aprofundamento das autonomias

Esta é a revisão que consagra o princípio da não discriminação em função da orientação sexual, e que vem alargar o princípio da limitação dos mandatos dos titulares de cargos políticos executivos. A sexta revisão traduz-se também numa maior autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira, que vêm aumentados os poderes das Assembleias Legislativas. É eliminado o cargo de "Ministro da República", substituído pelo de "Representante da República". Mas nenhuma destas alterações esteve na origem desta revisão, que voltou a dever-se, novamente, à necessidade de adequação ao quadro da União Europeia.

2005. Outra vez um tratado europeu

Em 2005​ foi concluída a sétima revisão constitucional (extraordinária), que se traduziu no aditamento de um novo artigo à lei Fundamental, permitindo a realização de referendo sobre a aprovação de futuros tratados que visem a construção e o aprofundamento da União Europeia. A alteração visava em específico a chamada Constituição europeia, assinada em Roma a 24 de outubro de 2004, mas que nunca chegou a ser referendada. Em 2010 foi aberto novo processo de revisão constitucional, mas não foi concluído, dada a demissão do Governo em março de 2011 e posterior dissolução da Assembleia da República.

susete.francisco@dn.pt

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