Uma revisão a contragosto que pode mexer nos direitos e liberdades 

Apesar das muitas críticas ao timing da oitava revisão constitucional, aberta pelo Chega, todos os partidos vão a jogo. Propostas do PS e PSD para confinamento e metadados, bastante próximas, deixam caminho aberto a acordo.

A maior parte dos partidos avança a contragosto, mas, ainda assim, ninguém ficou à margem: com oito projetos em discussão, está aberta a porta à oitava revisão constitucional em 46 anos. Lançado pelo Chega no início de outubro - o que foi alvo de duras críticas, da Iniciativa Liberal ao PCP -, o processo fica nas mãos de PS e PSD, uma vez que as alterações à Lei Fundamental exigem uma maioria de dois terços dos deputados. Com as propostas de socialistas e sociais-democratas a deixarem espaço para entendimentos, esta não será uma revisão de fundo do texto, mas pode trazer mudanças expressivas no capítulo dos direitos, liberdades e garantias.

É a área de mais provável acordo entre PS e PSD e que se traduzirá, com grande probabilidade, na alteração mais significativa ao texto constitucional. Os dois partidos querem alterar a Lei Fundamental para viabilizar duas leis que têm merecido uma sucessiva rejeição do Tribunal Constitucional (TC) por falta de respaldo - ou mesmo antagonismo - na Constituição.

A primeira prende-se com a declaração de confinamentos gerais e de quarentena em situação de pandemia, que o TC já qualificou como inconstitucional fora do estado de emergência. Uma posição que se aplica não só a várias decisões do Executivo no passado, durante o período agudo da pandemia, como também ao anteprojeto de lei de emergência sanitária que o governo já deu a conhecer. Para ultrapassar este cenário, os projetos de PS e PSD tentam dar novo enquadramento constitucional à restrição de liberdades em caso de pandemia, mexendo ambos no artigo que elenca as situações em que é permitida a privação de liberdade dos cidadãos. O PS acrescenta uma nova alínea ao texto, prevendo a "separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção grave, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública". E "com garantia de recurso urgente à autoridade judicial". Já o PSD estabelece que passa a ser possível o "confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infetocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado por autoridade judicial".

O outro ponto comum aos dois textos visa resolver outro imbróglio constitucional, neste caso relativo à lei dos metadados, chumbada pelo TC. Estando em causa o artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), relativo à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações - que determina que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação" -, o PS abre uma nova exceção, permitindo o "acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações, a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação". O que será permitido para "salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada". O PSD enuncia o mesmo objetivo, mais sucinto: "A lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais."

Outra matéria de liberdades e garantias transversal a vários projetos é o direito ao esquecimento digital - a possibilidade de alguém solicitar que os dados e referências relativos a si próprio sejam apagados -, previsto nas propostas do PS, PSD, Chega, IL e Livre.

Proteção do ambiente

A proteção do ambiente também poderá sair reforçada desta alteração constitucional, dado que a questão ambiental surge em força em quase todos os projetos. A exceção é a IL, que não apresenta propostas neste domínio. O PCP também não se alonga, inscrevendo nas tarefas do Ministério Público a defesa de interesses coletivos, "nomeadamente os relativos ao meio ambiente".

Já o PS inscreve nas tarefas fundamentais do Estado o "desenvolvimento sustentável do país". Chega e Livre seguem a mesma via, enquanto PSD e BE se propõem alterar o artigo 7.º (Relações internacionais), para lhe acrescentar que Portugal deve agir no quadro internacional para promover a proteção do ambiente do planeta.

Neste capítulo, o PAN defende o reforço das garantias dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa do ambiente, numa disposição que "abre a porta à consagração no Código Penal do crime de ecocídio". Já o Livre quer inscrever na Lei Fundamental sete princípios de defesa do ambiente - precaução, prevenção, "poluidor-pagador", justiça ambiental, solidariedade intergeracional, responsabilidade e princípio da ação climática.

Habitação

Tema que ganhou grande relevância nos últimos anos, a habitação é uma preocupação presente em todos os projetos, embora de forma muito diferenciada. O PS quer levar para a Lei Fundamental os princípios da Lei de Bases aprovada em 2019, por forma a evitar "futuros retrocessos", inscrevendo na Constituição a necessidade de "medidas de proteção especial dirigidas a jovens, cidadãos com deficiência, pessoas idosas e famílias com menores, monoparentais ou numerosas, bem como às pessoas e famílias em situação de especial vulnerabilidade".

Já o PSD quer "estimular a oferta privada e cooperativa de habitação própria e arrendada" e a "redução de burocracia e encargos com origem em ações ou omissões de entidades públicas e pelo incentivo ao aproveitamento de imóveis devolutos". O Chega tem uma única disposição: "O Estado e as autarquias locais exercerão efetivo controlo do parque imobiliário." Para a IL "incumbe ao Estado estimular a construção privada e, quando necessário, promover a construção de habitações económicas e sociais". Já o PCP quer consagrar "garantias especiais relativas à proteção da casa de morada de família" e o BE o "acesso à habitação própria ou arrendada a preços não especulativos". O Livre propõe uma nova formulação do direito à habitação, enquanto o PAN é omisso.

Educação

A Constituição diz, atualmente, que o ensino básico é universal, obrigatório e gratuito. Proposta comum aos vários partidos é que esta formulação passe a abarcar o ensino pré-escolar e secundário. O PS acrescenta que cabe ao Estado "assegurar um sistema de ação social escolar". Na educação é clara a clivagem direita/esquerda, com o PSD a propor inscrever na CRP a "complementaridade" do ensino público "com o ensino privado e cooperativo", conceito também defendido por IL e Chega.

Saúde

Outro campo de batalha esquerda/direita. O PSD quer que a Constituição consagre a "complementaridade entre os serviços público, privado e social", princípio que também consta dos projetos de revisão constitucional do Chega e IL. À esquerda, o propósito é precisamente o contrário: na proposta do BE lê-se que o Estado deve garantir uma "racional, equitativa e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde públicas e de gestão pública". Neste capítulo, a generalidade dos partidos inclui a medicina reprodutiva e paliativa nos cuidados de acesso universal.

Novos direitos, o 25 de Novembro e o fim dos tempos de antena

Direitos dos animais

O Tribunal Constitucional já alertou para a falta de respaldo das leis de proteção animal na Constituição e os partidos preparam-se para inscrever na Lei Fundamental a expressa garantia da proteção do bem-estar animal. O princípio consta dos projetos de revisão constitucional do PS, Chega, BE e PAN.

Direito de voto aos 16 anos

A antecipação do direito de voto dos 18 para os 16 anos é uma proposta transversal ao PSD, BE e PAN. O Chega quer tornar o voto obrigatório, uma proposta com chumbo garantido. Já o Livre quer retirar da Constituição a obrigatoriedade de os candidatos a Presidente da República serem maiores de 35 anos.

Representante da República na mira

O representante da República nas regiões autónomas é visado em vários projetos de revisão constitucional. O PSD e a Iniciativa Liberal querem simplesmente acabar com esta figura, atribuindo as suas competências ao Presidente da República. O BE quer transformá-lo num "provedor da autonomia", eleito por maioria de dois terços dos deputados da respetiva Assembleia Legislativa.

Recurso de amparo

A figura do recurso de amparo junto do Tribunal Constitucional, contra atos ou omissões dos poderes públicos que lesem direitos fundamentais é defendida em vários projetos de revisão. É o caso do PSD, Chega, Iniciativa Liberal e PCP.

Direito à alimentação

O PS quer dar tutela constitucional ao direito à alimentação: "Todos têm direito a uma alimentação acessível, de qualidade, saudável e sustentável, incumbindo ao Estado, em articulação com as autarquias locais, promover as políticas públicas necessárias à sua efetivação."

Refugiados climáticos

O Bloco de Esquerda quer consagrar na Constituição o "direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas que, por força das alterações climáticas, vejam gravemente ameaçada a sua segurança e a sua sobrevivência", remetendo para a lei a definição do estatuto do refugiado climático.

Mudar o preâmbulo...

Há dois partidos que propõem mexer no preâmbulo da Constituição: Chega e Iniciativa Liberal. A IL quer colocar no texto inicial uma referência ao 25 de Novembro de 75, data em que Portugal se "consolidou como regime democrático pleno,

impedindo a instauração de um regime comunista". O partido liderado por João Cotrim Figueiredo também quer alterar o parágrafo em que a "Assembleia Constituinte afirma" os princípios fundamentais do Estado português, passando a inscrever a expressão "democracia liberal".

... e o artigo 1.º

O primeiro artigo da Constituição diz que "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária". Também aqui dois partidos propõem alterações: o Chega, que acrescenta o "trabalho" entre a dignidade da pessoa humana e a vontade popular, e o PAN, que lhe acrescenta a solidariedade intergeracional e o "respeito pela natureza e os animais".

Prisão disciplinar só em tempo de guerra

O PCP quer eliminar da Constituição a possibilidade de aplicação de prisão disciplinar aos militares em tempo de paz e fora de missões militares.

Fim do tempo de antena

A Constituição prevê expressamente que os partidos políticos e as organizações sindicais, profissionais e representativas das atividades económicas têm direito a tempos de antena no serviço público de rádio e de televisão. A IL quer revogar esta norma, com exceção dos períodos eleitorais.

susete.francisco@dn.pt

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