De manhã era só "o passageiro". À tarde, pediu a exoneração

Eduardo Cabrita não resistiu à acusação do MP sobre o acidente rodoviário em que esteve envolvido em junho, na A6, acidente que fez uma vítima mortal. Ao final da tarde anunciou que tinha pedido a exoneração ao primeiro-ministro. Contudo, horas antes, pela manhã, salientava que o Ministério Público não o tinha acusado de nada, sendo apenas o "passageiro" do carro que atropelou mortalmente uma pessoa. Afastado do Governo, Costa controla os danos.
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Algo se passou ontem durante o dia que forçou o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, a demitir-se.

De manhã, comentando a acusação proferida pelo Ministério Público (ler texto ao lado), Cabrita sublinhava apenas aos jornalistas que não estava acusado de nada, sendo apenas "o passageiro". "Eu sou passageiro. É o Estado de direito a funcionar. Temos de confiar no Estado de direito, ninguém está acima da lei", dizia o (então ainda) ministro.

Cabrita sustentava que "o esclarecimento dos factos tem de ser feito" sem se recorrer a um "repugnante aproveitamento político de uma tragédia pessoal" e "é nesta fase que se irá permitir esclarecer as condições em que ocorreu o acidente", reafirmando "a confiança nas instituições que funcionam num Estado de direito". Mais uma vez surgia a insinuação de que a culpa foi do morto: "Estamos a falar de um atravessamento de uma via não sinalizada. Portanto, as condições do atravessamento da via têm de ser esclarecidas no quadro do acidente."

Isto foi de manhã, falando o ministro com jornalistas à margem de uma visita à GNR em Lagos. O que estava em causa era o despacho de acusação do Ministério Público face ao acidente, ocorrido na A6 em 18 de junho passado, no qual o carro oficial onde o ministro seguia atropelou mortalmente um trabalhador de obras naquela via. O MP acusou o motorista de homicídio por negligência e de duas contraordenações rodoviárias (inobservância do dever de cuidado e excesso de velocidade).

Ao final da tarde, a situação mudou - assegurando fontes governamentais ao DN que a intervenção do primeiro-ministro foi decisiva para o volte face. Eduardo Cabrita chamou os jornalistas e anunciou que tinha pedido a exoneração do cargo ao primeiro-ministro - confirmando este minutos depois que tinha aceite essa demissão.

Cabrita anunciou a decisão explicando-a explicitamente com a necessidade de proteger o primeiro-ministro e o PS dos custos políticos de se manter no Governo. "Não posso permitir que este aproveitamento político absolutamente intolerável seja utilizado no atual quadro para penalizar a ação do Governo, contra o primeiro-ministro, ou mesmo contra o PS. Por isso entendi solicitar a exoneração hoje das minhas funções de ministro da Administração Interna ao senhor primeiro-ministro", afirmou.

Segundo acrescentou, "só a lealdade, o tempo e as circunstâncias" que Portugal enfrentou há seis meses e "só a solidariedade do primeiro-ministro" determinaram que prosseguisse "o exercício durante este verão tão difícil". "Agradeço absolutamente ao primeiro-ministro, António Costa, a oportunidade de partilhar estes seis anos de dedicação intensa à causa pública. Por todos estes quatro anos que me tornaram, desde há alguns dias, o ministro da Administração Interna com o mais longo mandato em democracia."

Pouco depois, o primeiro-ministro fazia uma declaração aceitando a demissão do ministro (e amigo pessoal de longa data, note-se). Nessa declaração, Costa assegurou que foi Cabrita quem lhe pediu para sair (e não o contrário): "Foi o Dr. Eduardo Cabrita que hoje me solicitou o pedido de exoneração. Tenho estado aqui [em Matosinhos] desde ontem [quinta-feira] à tarde (...) Ele a meio da sessão, mandou-me uma mensagem a dizer que precisava de falar com urgência comigo, deu-me notícia de que tinha sido deduzida a acusação e que face a esta circunstância entendia que devia sair do Governo. Ele estava fora de Lisboa, disse que o faria à tarde quando chegasse ao ministério."

Costa disse que o que determinou a decisão de Cabrita foi "o tempo da justiça": "O que determinou o comportamento do ministro foi o entendimento que havendo um inquérito em curso não devia ter qualquer tipo de ação que condicionasse de qualquer forma que fosse o normal exercício das autoridades judiciárias e o funcionamento normal do estado de direito". Quanto ao resto, prova-se que existe "um sistema de justiça independente que funciona". "Depois de muitos meses em que muita gente especulou politicamente. O Governo fez o que lhe competia, que foi respeitar as instituições e deixar que as instituições funcionassem. Vi e ouvi acusações sobre a falta de idoneidade da GNR, falta de idoneidade do MP."

Nessas mesmas declarações, o chefe do Governo não deixou de salientar que Eduardo Cabrita não foi acusado de nada pelo MP. "A acusação nada diz sobre o ministro" e "refere-se ao motorista, que tem naturalmente direito à presunção de inocência, exercício do contraditório, e apuramento da verdade". Elogiou também o legado deixado pelo seu amigo no MAI: "Quero enfatizar resultados e ganhos em termos de segurança que o país teve ao longo dos últimos quatro anos. Na redução dos índices de criminalidade e esforço de todos os cidadãos e Proteção Civil nos resultados em termos de diminuição do número de incêndios."

Ontem à noite, a Presidência da República anunciou quem substituirá Cabrita. Será a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que acumulará as duas pastas. Antero Luís e Patrícia Cabral serão reconduzidos como secretários de Estado do MAI. A posse será esta tarde, em Belém.

Nas reações, o PSD, através do deputado André Coelho Lima, acusou o primeiro-ministro de atuar como "passageiro" e não como "condutor" do Governo. O deputado lamentou que Cabrita não tenha assumido antes responsabilidades políticas: "Assumir responsabilidades políticas não tem a ver com o grau de culpabilidade, sobre a qual o PSD nuca especulou nem vai especular, mas com uma forma de estar na vida pública."

O PAN, pelo seu lado, considerou que a demissão só pecou por "tardia", enquanto o CDS-PP disse, através de um seu vice-presidente, que "a forma como este ministro sai, o percurso deste ministro, é também ele um acidente". Já a IL associou a demissão à proximidade de eleições: "Porque é que agora é que a demissão é aceite? Só para proteger o primeiro-ministro, a dois meses de eleições?", perguntou o líder do partido, João Cotrim Figueiredo.

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