Catarina Martins não se recandidata à liderança do Bloco de Esquerda
A coordenadora do Bloco de Esquerda anunciou que não se recandidata à liderança do BE. Catarina Martins caracterizou os 10 anos em que esteve à frente do BE como "um tempo extraordinário", destacando o período da geringonça.
Catarina Martins anunciou esta terça-feira que vai abandonar a liderança do Bloco de Esquerda (BE). Em conferência de imprensa sobre a Convenção Nacional do partido, marcada para 27 e 28 de maio, em Lisboa, Catarina Martins afirmou que não se recandidata à liderança do BE.
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"Ao longo dos 10 anos em que tive a função de coordenar o Bloco, no início com João Semedo, que quero lembrar e homenagear e que foi fundamental neste percurso, tivemos vitórias e derrotas", começou por dizer.
Recordou "uma pesada derrota eleitoral há um ano" e "vitórias eleitorais como em 2015 e em 2019", em que o BE alcançou "os melhores resultados" e manteve "os melhores resultados de sempre". "Vitórias e derrotas também nos movimentos, nas leis, nas lutas sociais", disse.
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"Estas vitórias e derrotas são parte importante do nosso combate, mas o que tem de nos guiar é a determinação e a coerência e o nosso compromisso com o povo", defendeu.
Catarina Martins considerou os 10 anos em que esteve à frente do BE como "um tempo extraordinário", em que o o partido colocou "a direita fora do Governo".
Recordou o "acordo escrito" com o Governo, que deu origem à geringonça em 2015. "O PS foi obrigado a assinar um acordo sobre políticas de governação, o país respirou de alívio. Iniciámos a recuperação da vida de quem trabalha. A geringonça foi o princípio do respeito", destacou.
"Foi um tempo extraordinário, em que o país melhorou. Ficou muito por fazer, bem sei, mas com a força que nos confiaram foi possível nesse período avançar nas primeiras trincheiras no combate à precariedade, no respeito pelas pensões, na universalidade dos serviços públicos", sublinhou. "Tributamos o imobiliário milionário, recuperámos o salário mínimo nacional, parámos várias privatizações, que agora se descobre como tinham outros tantos escândalos de ganância", enumerou.
A maioria absoluta veio mostrar, no entanto, "que o PS nunca se conformou com este caminho e agora está mesmo a reverter algumas medidas da geringonça, para não falar da grande reversão dos rendimentos de quem trabalha ou trabalhou toda uma vida", lamentou.
"É agora que o Bloco deve começar a preparação da mudança política que já aí está"
"No país, não há quem não veja, agora, como a maioria absoluta tem servido um sistema de apadrinhamento de favores e de autoritarismo contra o SNS, contra a escola pública e contra uma política social de habitação", acusou.
Para Catarina Martins, "estão à vista os motivos para a viragem à direita que António Costa impôs ao país".
Considerou que o Bloco de Esquerda "é a luta por tudo o que está por conseguir": o que ainda não se conseguiu fazer para "assegurar uma carreira na escola", um sistema de exclusividade em hospitais e centros de saúde, o "fim das descriminações que magoam", uma "habitação que não se especulação cruel, que destrói as nossas cidades", uma "vida digna para os nossos pensionistas", um "planeta que não esteja doente e onde seja possível viver".
Disse que as vitórias que a animam são o caminho que o BE fez, lembrando que, em breve, vai ser concluída a lei da morte assistida, que "permitirá a decência".
"Garanto-vos que não desistimos dos outros combates: saúde, educação, habitação, pão", citando Sérgio Godinho.
"O que mudou, entretanto, foi a instabilidade da maioria absoluta", disse, referindo-se à "crise multiplicada" dentro do Governo e "em choque com a luta popular" é o "sinal do fim de um ciclo político", defendeu.
"É agora que o Bloco deve começar a preparação da mudança política que já aí está", considerou. "Neste tempo novo, estarão os velhos fantasmas, os ódios racistas que são o retrato de um política mesquinha e vão estar os poderes de sempre, como a oligarquia que se alimenta da especulação financeira e urbanística e está também a certeza de que é preciso virar à esquerda".
De olhos postos no futuro do partido, Catarina Martins disse que o BE "deve juntar a sua máxima capacidade de transformação". "Acredito que esta renovação que desejo promover vai multiplicar a energia do Bloco".
Sobre o que irá fazer depois da Convenção Nacional do partido, marcada para o final de maio, Catarina Martins afirmou: "Garanto que não vou andar por aí. Eu estou aqui, sou daqui, o Bloco é o partido onde eu estou e vou estar em todas as lutas, a luta toda, como sempre", disse.
"É com muita confiança que olho para o futuro do meu partido", destacou Catarina Martins, que disse assumir o mandato como deputada na Assembleia da República.
"Se posso tomar esta decisão é porque tenho absoluta tranquilidade de saber que no BE há muitas pessoas com a capacidade, a força e a preparação para assumir estas funções", declarou.
Questionada sobre se tem um sucessor preferido, Catarina Martins disse que "este é o momento para que a coordenação do Bloco seja assumida por outra pessoa". "Não estou a anunciar nem mais nem menos do que isto, com a tranquilidade de ter feito o melhor que sabia durante este período, com a tranquilidade de saber que o Bloco tem, hoje, um amplo reconhecimento popular pela sua coerência".
Oposição interna pedia renovação total
A oposição interna do partido já tinha pedido renovação total. "A profissionalização política no Bloco não é boa, não é desejável. Não podem ser os mesmos rostos tanto tempo", disse ao DN, na edição de 6 de fevereiro, Rui Cortes, membro da Mesa Nacional, e um dos elementos da Convergência [oposição interna].
"O Bloco perdeu a sua matriz. Há um esvaziamento dos seus princípios. Há uma perpetuação de poder. Alguma falta democracia interna", resumiu Rui Cortes, que defende a "renovação global dos deputados", a "renovação dos quadros" do partido e do "secretariado que se tem perpetuado no tempo".
No "estado atual do Bloco de Esquerda", até essa que "era uma das bandeiras do Bloco, a renovação dos deputados, se perdeu". "É essencial a renovação".
A Mesa Nacional do partido reuniu-se a 4 de fevereiro e Catarina Martins recusou falar em quaisquer cenários de afastamento, justificando que "não teria nenhum sentido que [ela] falasse de candidaturas no dia de hoje. [Terão] outras oportunidades para o fazer."
Há, para além de "outros problemas", afirma Rui Cortes, uma "falta de demarcação em relação ao PS". E dá como exemplo os casos das mais recentes Eleições Autárquicas e Legislativas: "Era ver a Catarina [Martins] numa semana a dizer uma coisa e na semana seguinte a dizer outra. Ora namoro ao PS, ora crítica ao PS. É uma total indefinição."
O também professor catedrático na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, doutorado em Ciências Florestais, acusa ainda a direção de Catarina Martins de "tentar diminuir a diversidade dentro do BE" porque "se acomodaram".
"Sentem o perigo de perder o que adquiriram. A crispação vem daí. Tentam travar a diversidade ao restringir a participação na Convenção Nacional das várias sensibilidades que existem e que são críticas do que se passa. Em vez de reflexão perpetuam-se no poder", afirma.
O exemplo para justificar este "travão", garante, é "a decisão" do secretariado de "aumentar de 20 para 200 o número mínimo de subscritores" das moções - a moção alternativa, da Convergência [oposição interna], é divulgada dia 27 de fevereiro.
A líder do Bloco de Esquerda, por seu lado, garantiu logo após a reunião da Mesa Nacional que "os processos de Convenção são muito participados, vamos ter debates vários dentro do partido para criar moções de orientação e muito em breve, esse movimento estando a avançar, cá estaremos para todas as perguntas sobre isso, para apresentar os projetos para o Bloco, para o futuro".
E é assim porque, explicou na altura, "é assim que deve ser. Hoje eu sou coordenadora da comissão política que está em funções, com todas as suas sensibilidades, com maiorias e minorias e é isso que represento".
Logo após a perda de mais de metade dos votos [de 500 mil para 244 mil] nas Eleições Legislativas, a redução de 19 para cinco deputados [Mariana Mortágua, Pedro Filipe Soares, Catarina Martins, José Soeiro e Joana Mortágua] e a perda do lugar de terceira força política [que ficou com o Chega], a oposição interna no BE tentou antecipar a Convenção Nacional, mas foi recusado - 130 militantes queriam analisar a situação do Bloco e até admitiam eleições internas.
Na altura foi dito, pela direção, que antecipar a Convenção, em cima dos resultados eleitorais, iria prejudicar os prazos regulamentares do debate interno, que seria um grande favor ao PS, que tinha acabado de ganhar a maioria absoluta.
Com a data marcada ("a meses das Regionais da Madeira e a cerca de um ano das Europeias e das Regionais nos Açores. Curioso, não é?") e até porque "o Secretariado Nacional, que dirige o partido, recusa-se, até agora, a fazer o balanço do ciclo de derrotas eleitorais e a tirar consequências políticas", outro dirigente da oposição dizia ser chegado o tempo de fazer "essa reflexão".
"Temos de fazer um grande esforço para compensar o descrédito que a falta de democracia interna e um discurso político parlamentarista e sem horizonte estão a provocar. Na reunião de sábado da Mesa Nacional faltaram 40% dos membros eleitos na lista da Catarina Martins. Será sintomático?", questionava.
Antigos dirigentes, ouvidos pelo DN, admitiam existir "dificuldades de enraizamento" do BE no eleitorado, um "desgaste na liderança de Catarina Martins e o "problema" de apresentar "propostas políticas que sejam lidas como uma luta que pode responder aos problemas do país", mas não defendiam a saída desta direção.
"A rotação de caras não substitui projetos políticos. É verdade que está há muito tempo, é verdade que são os mesmos, mas as sondagens apontam para crescimento. E, além do mais, já em 2003 se dizia que o BE estava esgotado. É um estereótipo", afirmavam.
Mariana Mortágua é deputada desde 2011; Pedro Filipe Soares e Catarina Martins estão no Parlamento desde 2009; José Soeiro é o mais antigo, é deputado desde 2005; e Joana Mortágua, a mais recente: entrou na Assembleia da República em 2015.