Pequena, enérgica, de cabelo sempre cortado de forma prática, sorriso aberto e mãos imparáveis. Catarina de Albuquerque chegou, em 2018, à liderança da Water and Sanitation for All, exatamente da mesma forma como percorreu o caminho da diplomacia desde que descobriu que queria mudar o mundo: em passo rápido, certo, assertivo e sem medos. A alegria desconcertava porque era sempre acompanhada por factos concretos, que levavam a propostas exequíveis, mesmo que parecessem uma loucura para quem as ouvia pela primeira vez. Foi assim quando assumiu o cargo de primeira Relatora para o Direito Humano à Água e ao Saneamento, em 2007, e assim continuou até à iniciativa que colocou nas bocas do mundo. Em 2010, quando conseguiu que o acesso à água se tornasse um Direito Humano, houve quem percebesse que não podia ignorar o trabalho da jurista das “causas orfãs” - assim a descrevia à Forbes, em 2016, João Queirós, então chefe de gabinete da Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. “Orfãs no sentido de que eram na altura causas sem fortes patrocínios de Estados no contexto onusiano – como a “justiciabilidade” dos direitos económicos, sociais e culturais ou a água como um direito humano”. E fazia-o sempre, continuava Queirós, “com um profissionalismo que lhe garante o respeito dos colegas e um entusiasmo que a leva a não desistir perante obstáculos que outros considerariam inultrapassáveis”..Em agosto de 2018, aos 47 anos, foi escolhida, entre 200 candidatos, para CEO da Saneamento e Água para Todos, uma parceria das Nações Unidas, conhecida pela sigla inglesa SWA (Sanitation and Water for All). A nomeação valeu-lhe um assento na direção da UNICEF, em Nova Iorque, o cargo mais elevado ocupado por um português naquele órgão, nas últimas décadas. Para Catarina de Albuquerque não havia impossíveis. Nunca houve. Quando estava em Portugal era a mãe que chegava cedo a casa e passava o máximo de tempo possível com os seus dois filhos e o marido, e quando se ausentava da família punha as mãos na massa e entrava nos lugares mais deploráveis e inóspitos. Não admitia não conhecer a realidade, porque acreditava que só assim se podia trabalhar melhor. Quem falava com ela não conseguia não se sentir entusiasmado, porque para a jurista não havia algo que não fosse concretizável: era só preciso saber com quem falar, da forma certa e com os dados – e a sua experiência nos locais – para garantir qual o caminho certo. Estava tão à vontade na remota Tuvalu como na cosmopolita Nova Iorque e era por isso que a ouviam: porque sabiam que Catarina falaria com quem fosse preciso, de qualquer país, setor, posição para garantir os seus intentos. E que sabia do que falava, porque fazia questão de o experienciar.Para ela, o direito ao acesso à água era algo tão óbvio que ia repetindo sempre a mesma frase, em jeito de resumo, para que não restassem dúvidas a quem a ouvia: “Há estudos que mostram que por cada euro investido no acesso à água e ao saneamento, os ganhos são, em média, de 7 euros”. As evidências eram, não raras vezes, acompanhadas com mais um sorriso e um sugestivo encolher de ombros.Bateu-se pela igualdade no acesso á água e ao saneamento, criticou o poder masculino nas altas esferas - “Ainda na semana passada alguém me disse que eu não e ria ouvido uma frase que ouvi se não fosse mulher”, contava na mesma entrevista à Forbes em 2016 – e nunca se deixou intimidar pela forma como foi, não raras vezes olhadas, não apenas por ser mulher, mas também por ser portuguesa. Elogiou sempre a capacidade diplomática do nosso país, e não raras vezes apontou António Guterres e João Vale de Almeida como exemplos de personalidades que incorporam bem esse jeito português de conseguir chegar a cargos elevados, através do diálogo e da cooperação. Lembrava a posição privilegiada de Portugal que, não sendo grande, é um país conhecido por querer criar pontes e gerar consensos, o que, admitia, lhe facilitou a vida várias vezes. ."Sempre que vou falar às escolas, digo: a água que hoje temos disponível no planeta é exatamente a mesma que tínhamos no tempo dos dinossauros. Ou seja: andamos a beber chichi reciclado de dinossauroCatarina de Albuquerque (1970-2025).Na vida pessoal, Catarina de Albuquerque é recordada com carinho e admiração, e como alguém que fazia sempre tempo para aqueles que lhe eram mais importantes, mesmo que entre uma viagem às favelas do Rio de Janeiro e outra às escolas dos países considerados desenvolvidos, onde falava de “chichi de dinossauro”, como partilhou, divertida, numa entrevista à VISÃO. "Sempre que vou falar às escolas, digo: a água que hoje temos disponível no planeta é exatamente a mesma que tínhamos no tempo dos dinossauros. Ou seja: andamos a beber chichi reciclado de dinossauro! Por causa do ciclo da água, esta é sempre a mesma. O que acontece é que antes havia menos dinossauros do que hoje há pessoas. E os dinossauros não tinham fábricas, nem agricultura intensiva nem campos de golfe, turismo e afins”. Catarina falava para as crianças da mesma forma que para os adultos, porque essa era a sua forma de ser: simplificar para conseguir conquistar. “A Catarina manteve um traço de menina que era invejável: acreditava com entusiasmo na melhor versão do ser humano, acreditava que era possível manter o diálogo, batalhar no sentido da justiça, dos direitos humanos, da igualdade”, diz a jornalista e escritora Patrícia Reis ao Diário de Notícias. Conhecia Catarina desde os tempos em que partilharam o Colégio Alemão – uma educação que a jurista acreditava tê-la ajudado profundamente na forma de enfrentar os problemas, como disse em várias ocasiões públicas. “Devemos muito à Catarina. Ela estava disponível para um mundo melhor e esse legado talvez seja um caminho que temos de percorrer. Com alegria, porque ninguém se ria como ela”, conclui. Se em Portugal o seu nome podia ainda não ser do conhecimento do grande público – embora tenha acumulado várias distinções parlamentares e da presidência da República –, no mundo dos Direitos Humanos o cenário é outro. Catarina de Albuquerque foi responsável por recomendações que levaram a alterações legislativas em vários países do mundo e redigiu o “Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais” – considerado um dos mais importantes documentos recentes da área dos Direitos Humanos – tudo antes de encabeçar a SWA. “Ainda há tanto para fazer”, era uma das coisas que mais dizia com quem se cruzava, e depois de elencar os objetivos mais recentes que alcançara. Desde que chegou aos palcos diplomáticos, no início dos anos 2000, que trabalhava junto dos mais poderosos para facilitar a vida aos mais fracos. Acreditava que havia muito sofrimento que era evitável e trabalhava para mostrar a quem tinha o poder de o evitar que havia grupos que o sofriam constantemente por serem marginalizados. Ao longo da sua vida, propôs-se, de forma exemplar, a dar voz a quem não a tinha, junto dos mais altos palcos de intervenção internacional. O seu legado, plasmado na conversão do acesso à água num direito humano e na integração do acesso à água e ao saneamento nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável de 2030 permanecerá por gerações. .Catarina de Albuquerque dirige a partir de 2.ªfeira parceria da ONU "Água e Saneamento para Todos" .Homenagens e cerimónias fúnebres .A jurista faleceu esta terça-feira, 7 de outubro, vítima de um cancro. A informação foi veiculada por muitas das entidades com quem trabalhou de perto, que lhe prestaram a devida homenagem, como a APAV ou a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. Também a FEC - Fundação Fé e Cooperação, a cujo Conselho de Administração Catarina de Albuquerque pertencia desde setembro de 2017, emitiu uma nota de pesar pelo seu falecimento. "A Catarina foi uma mulher de fé, de princípios sólidos e de generosa entrega ao bem comum. Viveu a sua missão com coragem e entrega, cuidando especialmente dos mais vulneráveis, deixando uma marca de esperança e humanidade em todos os que com ela se cruzaram". " A sua vida foi um verdadeiro exemplo de compromisso com a justiça social e a dignidade humana. Na FEC, a Catarina partilhou sempre a sua sabedoria, serenidade e entusiasmo pelo serviço aos outros, inspirando-nos a olhar o mundo com mais amor, cuidado e responsabilidade". Numa nota oficial, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recordou “uma portuguesa com um papel muito relevante, a nível nacional e internacional, para a promoção dos Direitos Humanos e do desenvolvimento sustentável". As cerimónias fúnebres realizam-se esta quinta-feira, 9 de outubro, a partir das 18h, na Igreja São João de Deus. Na sexta-feira, dia 10 de outubro será celebrada missa de corpo presente às 10h, também na Igreja São João de Deus. Numa mensagem partilhada entre amigos e admiradores da jurista, segue uma das últimas homenagens à mulher que transformou a água numa palavra de luta: “A todos os que desejem despedir-se da Catarina com flores, agradecemos que o façam trocando-as por um donativo à “Corações com Coroa”. Este projeto, que a Catarina admirava e que reflete bem a sua maneira de ver e estar no Mundo, dedica-se à defesa dos Direitos Humanos e à promoção da igualdade, com especial atenção ao empoderamento de raparigas e mulheres”. .Morreu, aos 55 anos, a jurista portuguesa Catarina de Albuquerque, premiada pela promoção dos Direitos Humanos.Catarina de Albuquerque: “O problema em Portugal é que não se ganha bem”