Este é o segundo livro sobre as suas memórias. No total, são mais de 1300 páginas de experiências. Como é que decidiu escrevê-las?São duas as razões. Primeiro, fui recolhendo notas ao longo do meu trajeto político. Tinha uns caderninhos onde anotava as reuniões que ocorriam, a data, a hora, os participantes e as principais conclusões. Fui acumulando caderninhos, guardando religiosamente, completando também com agendas, do tempo em que as agendas eram escritas. Isso era um material que eu listava, juntamente com peças mais volumosas, dossiers, quando tive intervenção política mais forte, que explicavam a génese das medidas. Por outro lado, a pandemia. O que é que eu havia de fazer na pandemia? Durou quase dois anos. E eu, portanto, escrevi o primeiro volume. Há ainda um terceiro fator, mais caseiro. Antes da pandemia, com os amigos de há 50 anos, tínhamos um almoço semanal. Na sua maioria, médicos, inicialmente. Outros, eram colegas do tempo de faculdade, era um grupo de oito, nove pessoas. Dois já morreram, enfim. Eram encontros muito importantes para todos nós, porque era uma forma de conversarmos e de trocarmos impressões. Era uma tertúlia, no sentido tradicional do termo. Um dos participantes nesse encontro, o professor Valentim Alexandre, que é um grande historiador, que foi meu colega desde o primeiro ano do liceu até ao fim da faculdade, dizia: “Homem, você tem que publicar as suas memórias.” E foi ele, foi esta chispa que me convenceu a começar a escrever. Comecei a escrever 300 páginas e dei-as a ler a um dos membros desse grupo, que é editor. A partir dali, continuei..O título do livro tem duas alegorias - do Pântano à Pandemia - que descrevem o período inicial, com o segundo Governo de António Guterres, e o final destas suas memórias. O Governo de António Guterres era como um pântano?Ele próprio denominou pântano. A designação não é minha, mas era a única, era a melhor forma, eram duas palavras que começavam pela mesma consoante: pântano e pandemia. Duas palavras que são chamativas. Não fui consultar nenhum especialista de imagem, ou de comunicação, mas saiu espontaneamente do pântano à pandemia. Mas isso até levou há dias o Presidente da República ao lançamento do livro. Apareceu lá e tal, e depois no final fez um comentário, até muito simpático, mas muito detalhado, porque ele leu tudo. Achou que este livro dá um certo sinal de fim do modelo político, de como se a democracia estivesse em risco. Obviamente, nunca tive essa intenção. Talvez pelas páginas finais serem os números da pandemia, de certa forma, muito brutais..O livro sugere um tom prescritivo. Teve essa intenção?Sim, sobretudo a experiência governativa. Porque eu tenho a noção de que fiz coisas boas, mas cometi muitos erros, também. Cometi muitos erros de posicionamento, de comportamento e insisti, porventura, em pontos que não traziam vantagem nenhuma e que eram conflituosos..Pode dar um exemplo?Sim. Quando eu propus, a certa altura, que os doentes não-isentos de taxa moderadora passassem a pagar cinco euros por cada dia de internamento até 10 dias. Era um modelo que os alemães tinham adotado, e tinham também a gratuitidade total do internamento e passaram, a certa altura, a criar o sistema de 10 marcos, ainda no tempo dos marcos. 10 marcos por dia no internamento. A receita que daí vinha, desses cinco euros, era completamente insignificante e o custo político dessa medida era exorbitante. Não prossegui, mas ainda perdi na opinião pública por ter, digamos assim, defendido aquilo que me parecia uma coisa coerente. Cinco euros era um maço de tabaco ou quase um maço de tabaco na altura e, portanto, era uma coisa insignificante. E não pagava sequer a refeição que os doentes tinham nos hospitais. Sabendo também que 45% dos portugueses estavam isentos disso, os que estavam isentos de taxas moderadoras. A classe média e superior podiam pagar. Também dava um empoderamento ao doente, ao utilizador. O utilizador, pagando alguma coisa, sentia-se mais empoderado e poderia ter uma posição mais ativa na reivindicação de cuidados e até no seu próprio esforço de recuperação. Não prossegui com essa posição porque seria um desastre político..Em 2006, encerrou a maternidade de Elvas, por considerar que não tinha condições, o que levou a que vários nascimentos de portugueses tivessem acontecido em Badajoz.Já lá iam muitos. Quem costumava reclamar contra os encerramentos das salas de partos eram os autarcas. Mas o autarca não reclamou. Aliás, houve até uma sessão do Prós & Contras, com a Fátima Campos Ferreira, em que o autarca falou e isso está documentado. Ele teve até um familiar que teve um problema. Havia 150 partos ou 130 partos. Por ano. Portanto, era um parto de três em três dias. Como é que é possível ter adestramento profissional para uma equipa de obstetrícia e ginecologia que faça partos de três em três dias? Não é possível. Já não estamos no tempo em que as criancinhas morriam no parto ou morria a mãe. Já não podíamos aceitar uma perda de qualidade desse tipo. Era inaceitável. Lembro-me de que Manuel Alegre se levantou com tiradas de patriotismo dizendo que tinham o direito de nascer em terra portuguesa. Ele já ignorava que há mais de 20 anos o que determina a nacionalidade da criança não é o local de nascimento mas a nacionalidade da mãe. Portanto, era uma medida tomada por Almeida Santos quando foi ministro da Justiça. As pessoas eram portuguesas e nasciam mais. Estávamos na Europa transfronteiriça onde os países são todos incentivados a partilharem serviços nas fronteiras. Era até uma atividade recíproca. Em Badajoz, havia um hospital com uma faculdade de medicina com muito mais qualidade que a maternidade de Elvas. Seria completamente insensato fazer com que as pessoas fossem comprar o seu parto. Fizemos um acordo com Badajoz para o Serviço Nacional de Saúde pagar àqueles que quisessem lá ir. Outros eram desviados para Portalegre, onde havia uma equipa de obstetrícia bastante competente..A 60 km de Elvas. E ainda havia Évora, a 80 km.As distâncias eram relativamente grandes, mas hoje, por fim, já não seriam tão grandes face ao que está a acontecer. O problema, hoje, tem outras soluções. Hoje, há mais gente a entender que os partos que não são de risco - e é bastante possível identificá-los previamente, embora haja sempre uma margem de risco que é imprevisível - são feitos na maior parte das vezes por pessoal não médico, por enfermeiros especializados em obstetrícia. Como acontece nos grandes países, na Alemanha, na Inglaterra, nós tivemos o luxo de ter quatro médicos nas nossas salas de parto: O obstetra, o anestesista, o cirurgião e um pediatra neonatologista. Porque tínhamos uma pletora de médicos. Tínhamos muita gente e era preciso, naturalmente, dar-lhes ocupação. É evidente, quando essas pessoas desaparecem, ficamos descalços e agora temos a solução mais importante, que tem que ser negociada com a classe médica..O que é que teria mudado neste seu percurso e em que é que é imperfeito enquanto político [referência a uma citação do livro]?O Governo teria ouvido mais vozes, teria ouvido mais pessoas verdadeiramente amigas, teria tentado furar a bolha do Governo, que é um problema de que todos os governantes sofrem, porque estão muito rodeados apenas de uma bolha de concordantes e precisam de falar com os discordantes. Houve uma altura em que um grande amigo meu, Jorge Simões, o mesmo com quem tinha escrito livros em comum, me disse: "Você tem que arranjar qualquer coisa de positiva." Porque eu tenho o defeito de não querer anunciar coisas que sei que são boas antes de saber se elas têm concretização, e normalmente só anunciava as coisas depois de elas estarem mesmo realizadas, ao contrário da grande maioria dos políticos atuais, passados, futuros, que estão sempre a anunciar coisas que nunca vêm a acontecer, e eu odeio isso. Acho isso um comportamento que pode até ser eficaz do ponto de vista mediático, mas, para mim, para a minha maneira de ser, a minha ética, acho que isso é um engano, puro e simples, do público. Eu não sou capaz de fazer isso, não fui capaz de fazer isso. Reconheço que perdi algumas oportunidades por esse facto. No momento em que saí, eu tinha já preparado um conjunto vastíssimo de obras, algumas delas estavam até a começar, nos serviços de urgência, de acordo com o novo plano de organização das urgências, que eram coisas que, certamente, qualquer outro governante anunciaria com antecedência, mesmo que as não viesse a realizar. Eu já tinha os meios para realizar, já tinha o calendário da realização, já tinha as pessoas, os protagonistas que iam fazer, mas eu não queria dizê-los a não ser nos momentos de inauguração. Bom, isto é politicamente um erro grave, um erro mediático grave. Portanto, aí tem, como se eu tivesse tido mais coragem para romper a bolha. Mas, voltando ao Jorge Simões. O Jorge Simões diz-me: "Você tem que furar este ambiente em que só está a dar más notícias aos portugueses." E então pensámos o que é que deve ser. Ele pergunta-me por não faço qualquer coisa na saúde oral. E começámos, pensámos longamente e acabámos por desenhar um programa do cheque-dentista. A primeira vez que o Serviço Nacional de Saúde se organizou para dar cuidados de saúde oral aos portugueses, começando com os jovens, as grávidas e, logo a seguir, os velhos, que eram beneficiários do Complemento Solidário para idosos, de pensão. Enfim, isso foi um dos meus programas mais emblemáticos e mais interessantes e controlado financeiramente de sempre e que eu não teria inventado sozinho. Foi preciso que houvesse uma pessoa, uma pessoa amiga, com a qual, em discussão, o concluíssemos. E, depois, chamando outras pessoas que eu sabia que também sabiam alguma coisa do problema. Portanto, furar a bolha mediática é muito importante para os governantes. Aliás, recomendo isso livremente no livro, porque lá percebe-se que isso é um dos conselhos que eu dou..No período entre António Guterres e Pedro Nuno Santos, o que é que sente que falhou no PS? Se é que falhou alguma coisa.Não se trata de uma questão de falhanço. Se me perguntasse, no início do século XXI, se achava que o PS, ao longo dos 20 primeiros anos, iria estar no poder 13 anos, eu não acreditaria. Nos governos, há uma fadiga natural do relacionamento com a população. As pessoas cansam-se de ver as mesmas faces, as mesmas imagens, os mesmos tiques. Por outro lado, também há altos e baixos na escolha dos responsáveis. Há ministros que são de altíssima qualidade técnica e de grande capacidade mediática. Há outros ministros que só têm alta capacidade técnica e nenhuma capacidade mediática. E há outros que têm alta capacidade mediática e não têm nenhuma capacidade de governação. Portanto, isto existe em todos os partidos. Se olhar para a história do PSD, encontra o mesmo período. O período mais longo do PSD foram os 12 anos de primeiro-ministro do professor Cavaco Silva, que foi uma verdadeira exceção e que eu entendo como um contraponto em relação aos anos anteriores das perturbações associadas ao pós-25 de Abril. As pessoas precisavam de alguma tranquilidade e, ao mesmo tempo, o ambiente externo era muito favorável: A baixa do preço do petróleo, a baixa do preço do dólar, a adesão à União Europeia. O professor Cavaco protagonizou todo um contexto de governação que lhe foi muito favorável. Foi muito favorável ao país e foi muito favorável aos governantes. Mas, quando o engenheiro Guterres surge a substituir o professor Cavaco, isto acontece porque as pessoas estavam cansadas também do anterior protagonismo e da anterior direção. Neste caso mais recente houve também aqui algumas instabilidades estranhas. Enfim, houve o episódio da saída do nosso primeiro-ministro António Costa, que foi um episódio de que ainda, provavelmente, não conhecemos todos os contornos..Depois de ter sido uma voz muito crítica de Pedro Nuno Santos, há uma semana, foi com satisfação que ouviu o líder socialista a prometer que ia propor à Comissão Política Nacional do PS que viabilizasse o Orçamento do Estado por via da abstenção? Certamente. Foi, aliás, uma comunicação bastante bem preparada, inteligente. Aliás, a comunicação social reagiu muito positivamente em relação a essa preparação e também, devo dizer, o líder do PSD, o líder do Governo, o primeiro-ministro, reagiu de uma forma muito positiva. Poderia, se quisesse, ter assumido uma atitude chicaneira a dizer, “ah, estão a ver como tínhamos razão, afinal, recuaram, ainda bem que recuaram e tal”. Este tipo de linguagem foi completamente evitado e houve alguma elevação até no tom cooperante que foi assumido pelo primeiro-ministro. A decisão tomada foi essa e não podia ser outra porque suponho que havia nos órgãos competentes, que tomaram a decisão e que ajudaram o secretário-geral, uma unanimidade sobre essa posição. É evidente que isso não significa que eu esteja arrependido de dizer aquilo que disse e continuo firmemente convencido de que foi uma posição errada passar um fim de semana, em duas ou três declarações, a zurzir os camaradas que tinham expressado opiniões diferentes em “pedestais mediáticos”, para usar a expressão que ele utilizou. É duplamente errado porque vai contra toda a tradição do PS, de liberdade de palavra, de exposição, mesmo nos momentos mais difíceis. Se ele tinha críticas a fazer ao uso público dessa liberdade, devia ter feito no recato de reuniões fechadas ou através de simples contactos de pessoa a pessoa. Ele não precisava de fazer uma mea culpa, mas o comportamento e a declaração pública são uma forma de reparação que a mim satisfaz acho que ele fez muito bem e o partido socialista está pronto para recuperar a sua unidade e avançar nas lutas políticas que tem à sua frente..O PS de Pedro Nuno Santos é mais, menos ou tão plural do que o PS dos governos em que esteve?É impossível fazer comparações. Acho que é tão plural como o PS sempre foi. As pessoas do PS pensaram sempre com a sua cabeça. É natural que haja mais seguidismo do chefe nas camadas mais jovens, que precisam do partido para seguir o seu desejo de protagonismo político. É assim que se faz a política, é assim que os partidos funcionam, não tenho nada contra. Apenas registo esse facto, e é possível também que os mais antigos, que já cumpriram a sua obrigação, que granjeiam algum respeito dos seus concidadãos, dentro e fora do partido a que pertençam, tenham mais liberdade de palavra..Que ideia sente ter partilhado neste livro?Os comentadores que apresentaram o livro, e entre eles também o senhor Presidente, a doutora Leonor Beleza e o professor Vital Moreira, salientaram muito a franqueza do meu depoimento, e, ao mesmo tempo, o distanciamento. Eu sou totalmente verdadeiro no livro, mas, ao mesmo tempo, distante. Pelo menos tentei dar a nota de não estar emocionalmente envolvido nas descrições. Gostaria de ter passado também a ideia do antissectarismo. Eu quase que fui um antissectário militante. Isto é, eu escolhi o dirigente do meu Ministério e pessoas que eu sabia que eram de opiniões políticas completamente diferentes, até alguns de militâncias diferentes, e nunca me arrependi disso. Alguns deles foram os meus melhores colaboradores. Portanto, isto também é uma mensagem que eu gostaria de transmitir aos governos. É um erro demitirmos pessoas só porque elas vêm do governo anterior ou demitirmos pessoas porque elas disseram mal de nós num determinado momento.