Era chefe do Estado-Maior do Exército em 2004, quando acabou o Serviço Militar Obrigatório (SMO). Na última semana atuais chefes do Exército e da Marinha defenderam que se volte a fazer este debate. Considera neste momento exequível o regresso do SMO? Em que condições? Não é uma questão a que se possa responder com sim ou não. A questão do SMO não pode ser opinada na base de estados de alma. Tem uma dimensão política, psicológica, sociológica e militar. E na parte militar tem dimensões várias, como a operacional, evidentemente, e a logística..Não podemos dar aos jovens as condições que dávamos nos anos 1960, 70 e estou a falar, por exemplo, de infraestrutura. Por outro lado, também não podemos ignorar que hoje, pelo que se verifica, e oxalá que nunca passemos desse patamar, a maior parte da aplicação militar portuguesa se faz fora de portas. Pergunto se a sociedade portuguesa está preparada para enviar conscritos para lugares como o Afeganistão, ou a Bósnia, ou o Kosovo, como aconteceu em décadas recentes..Portanto, esse é um assunto que merece uma séria ponderação. Não vai por estados de alma, nem vai por convicções pessoais. Se queremos ser sérios a bem do país, tem de ser estudado com muito rigor e com muita cautela. E acho que é preciso também o fator tempo. Não nos esqueçamos que foi eliminado há 20 anos..Mas é um caminho possível, na sua opinião? Acho que é um caminho possível se forem reunidas muitas condições que acho que porventura são difíceis de reunir neste momento. Por exemplo, dinheiro. Não vale a pena ter homens e mulheres militarmente preparados e treinados se não tivermos armamento, equipamento e fardamento. E armamento não é apenas armas..Não se pense que armamento é uma espingarda e duas botas. É armamento que hoje é sempre muito sofisticado. Se não tivermos isso, não vale a pena termos apenas e só mão de obra em stock, na prateleira. Isso não tem muito sentido. E há uma outra coisa que gostava de dizer. Tenho visto muito associada à ideia de um serviço cívico, de um serviço à comunidade..É uma ideia interessante. Hoje é manifesto que há alguma menor relação entre os jovens e comunidade. Estou de acordo. Também sei é certo que as Forças Armadas possam contribuir para esse reforço da cidadania. Mas a cidadania ensina-se em casa e na escola..As Forças Armadas não podem substituir isso. Podem contribuir e colaborar, com certeza, mas não se pense num serviço desses apenas e só com o propósito de reforçar o sentido de cidadania dos jovens..Se existisse SMO ele deveria servir para nivelar os níveis mínimos dos quadros das Forças Armadas, que não são preenchidos atualmente com o regime de voluntariado? Era isso? Ou ir além disso? .Seria para prover os efetivos que as Forças Armadas precisam, necessariamente. Mas isso implicaria mais do que contar cabeças ou contar pés. Implicaria ter capacidades e isso implica tempo de formação. As Forças Armadas hoje, todas, sem exceção, são tecnologicamente avançadas. O Exército, a Força Aérea e a Marinha são altamente tecnológicos..Essa exigência de sofisticação para operar com equipamentos tão modernos e tão tecnológicos implica tempo. Está o país preparado para ter jovens em serviço militar por um período que, para poder satisfazer isso, não poderá ser menor do que nove ou dez meses? Isto junta-se àquela outra questão: está o país preparado para ter jovens conscritos no Afeganistão ou na Somália ou no Uganda? Se calhar não..Esse SMO não pode também compensar uma necessidade, que até aqui julgávamos que era impensável, mas que pode sempre acontecer, até à luz dos acontecimentos mais recentes, que é de Portugal ser confrontado com um estado de guerra e não haver uma faixa importante da população portuguesa preparada para um cenário de crise desse nível? Esse é um dado muito importante e hoje, infeliz e um pouco inesperadamente, não podemos deixar de nos confrontar com isso na Europa..O grau de probabilidade, podemos discuti-lo. Era preciso que todos esses jovens, além de terem formação, tivessem armamento, equipamento e treino suficientes para uma vez chamados, poderem cumprir as missões..Por outro lado, isso alterava os termos. Porque uma coisa é um português a defender a independência do seu país, outra coisa é um português a defender, e muito justamente, e com grande nobreza de intenções, o respeito pelos direitos humanos em sítios como o Afeganistão ou a Bósnia ou Kosovo, ou a proteção das vidas e a satisfação dos mandatos internacionais..São cenários completamente diferentes. Nunca defendi o SMO, nem o ataquei. Tive a responsabilidade de tornar o Exército profissional e consegui-o em condições verdadeiramente, a priori, quase que inimagináveis, mas que foram um grande sucesso..Quando cheguei à chefia do Exército em agosto de 2003, o Exército tinha 3300 contratados, números redondos, a Força Aérea já não tinha ninguém com SMO e a Marinha tinha mais ou menos 100 em SMO que podia dispensar sem grande problema. E o Exército, feitas as contas, identificou que precisava de 12 500 militares, que, nos termos da lei da profissionalização, teriam de ser todos voluntários..Entre agosto de 2003 e setembro de 2004, embora o limite legal fosse 20 de novembro, crescemos de 3300 para 12 500. Portanto, é possível. O que é que está hoje, basicamente, desajustado? Quando as Forças Armadas tentaram obter e obtiveram recursos humanos nessa época as condições que eram proporcionadas aos jovens eram razoáveis em termos nacionais. Hoje não são. Perdeu a competitividade..E uma das coisas que acho que é importante dizer é que, por falta de cumprimento legal em não poucos aspetos, e por falta de modernidade noutros, é muito prematuro dizer que este modelo dos voluntários e contratados em Portugal faliu. Ele nunca foi aplicado com seriedade e, sobretudo, com as adaptações que o tempo mostrou virem a ser necessárias..Mas acha que é possível ainda recuperarmos o efetivo militar necessário? Está previsto um quadro de mais de 30 mil militares. E, neste momento, temos cerca de 21 mil. Como é que se recupera isso?Há muitas maneiras de mexer na questão. Atualmente, penso que é absolutamente imperativo uma revisão remuneratória. Essa é uma condição sine qua non. É indispensável assegurar aquilo que está na lei em termos de estatutários em relação às promoções..É preciso, por exemplo, e isto é um aspeto, a meu ver, absolutamente gritante, que os jovens que estão nas Forças Armadas como voluntários contratados tenham uma cobertura de assistência social. Numa instituição que se caracteriza por unidade e coesão, como é que se pode estar bem se eu, capitão, se eu, coronel, se eu, sargento, tenho assistência na doença aos militares e eles não têm? Isso é absolutamente inimaginável. Portanto, há muitas coisas que estão por fazer nesse domínio que, porventura, poderão mudar o retrato negro que hoje realmente temos, que é de uma séria escassez de efetivos..Tudo o que aconteceu nos últimos dois anos veio virar um bocadinho este tabuleiro. É mesmo uma viragem do tabuleiro a invasão que a Rússia fez à Ucrânia? É muito difícil fazer essa antecipação do que é que se pode vir a passar..Os Estados Unidos sabiam exatamente o que ia acontecer mas ninguém lhes ligou, não é? É discutível, mas sim, tem razão. Nessa altura as pessoas todas olharam um pouco para o lado. A maior parte das pessoas são amantes convictas da paz e também conhecem o quadro político da Europa..Pareceria inimaginável que neste quadro político da Europa a paz fosse quebrada pela via de uma invasão violenta, agressiva, de domínio territorial. Isto estava fora das nossas congeminações intelectuais e, portanto, não temos de nos espantar muito com o que aconteceu e a maneira como foi recebido com surpresa..Agora, daqui a cinco, dez anos podem muitas coisas acontecer e nós não sabemos. Ou pode ser até daqui a pouco tempo. Se nos Estados Unidos acontecer a eleição do senhor Trump, o que obviamente ninguém fora dos Estados Unidos pode desejar, isto mudará..O senhor Putin tem os apoios que tiver, mas há um apoio de que ele não escapa, que é o da biologia. Mais cedo ou mais tarde outro. O que acontecerá quando este senhor Putin já não estiver no poder? Não sabemos..Mas nós todos, e em Portugal temos também essa experiência, sabemos que estes poderes autocráticos, tanto quanto facilmente geram uma sugestão de grande apoio, rapidamente são confrontados com o esboroar desse apoio, porque ele não é sincero e espontâneo..O que é certo é que o grau de imprevisibilidade e de perigosidade disparou. Nas Forças Armadas planeamos sempre para a previsibilidade e para a perigosidade. Neste caso aumentaram estes dois parâmetros. .Mas ao longo dos tempos foram havendo sempre avisos de desinvestimento na defesa em toda a Europa. Não é só o caso português... É verdade. Os Estados Unidos, por intermédio da NATO, permitiram à Europa o boom económico e social e até político que marcou os anos 60, 70, 80, a evolução da União Europeia. Por isso algumas vezes se diz, com um certo humor, que além dos clássicos cinco pais fundadores da União Europeia, há que juntar um sexto, que é o Estaline, porque o receio da invasão soviética e a presença americana para o confrontar permitiu este processo europeu de evolução..Os europeus habituaram-se a dedicar-se alegremente, e com razão de ser, às couves e às pescas e a poucas outras coisas. Mas depois veio o fim da Guerra Fria. E quando veio o fim da Guerra Fria, surgiu também a ideia um pouco cândida, mas que é da natureza das pessoas, que era o tempo da paz. Portanto, todos tínhamos de gozar os peace dividends..Portugal excetuou-se um bocado deste quadro geral, porque como todos sabemos, tivemos 14 anos de guerra entre 61 e 75. E, portanto, escapou. Mas este foi o panorama geral na Europa. E hoje verificamos que não estamos preparados. Não se criou uma cultura de segurança e defesa no escalão dos responsáveis políticos..Aliás, na esteira da falta de outras culturas, porque também hoje temos uma crise da ideia do Estado, também no nível dos responsáveis políticos. Quem não compreende o Estado, não compreende o papel das instituições e nelas não compreende o papel e a necessidade das Forças Armadas..Mas agora temos realmente de responder a isso. Estamos perante um cenário que pode ser muito, muito perigoso e muito trágico. Atualmente na Europa, e só não vê quem não quer ver. A Ucrânia, com certeza, marca uma grande mudança, mas não é a Ucrânia em si que marca a mudança..A mudança deve resultar da interpretação das novas condições, da conjugação daquilo que a Ucrânia nos evidenciou com aquilo que se passa no Médio Oriente, Gaza em concreto. Mas além disso, o que se passa no norte de África e no Sahel, que são aqui a poucas centenas de quilómetros e que é de um dramatismo extraordinário do ponto de vista humanitário e que é de uma perigosidade imensa do ponto de vista, por exemplo, do terrorismo e do crime organizado..Temos aqui um sítio onde nos gostamos de banhar, que é o Mediterrâneo, que hoje é simultaneamente um muro e um cemitério. Isto não é compaginável com os valores europeus. Portanto, temos de pensar que é este puzzle todo que realmente determina a mudança. E estamos a correr muito contra o tempo..E qual é o papel das Forças Armadas perante essas ameaças que agora identificou? O papel das Forças Armadas é estarem preparadas a cumprir as missões que em cada Estado lhes forem determinadas. Definidas essas missões - a seguir ao ciclo que começa na definição do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que é muito discursivo e pouco concreto, seguido do Conceito Estratégico Militar, que já é muito mais concreto - determina-se que forças são precisas..Temos problemas de equipamento em algumas áreas e problemas de efetivos. Mas as Forças Armadas portuguesas, avaliadas objetivamente através dos seus desempenhos, são muito capazes e muito qualificadas..Vi isso ao longo de toda a minha vida, os quadros portugueses a serem apetecidos por todas as organizações internacionais e onde quer que fossem, a terem desempenhos extraordinários e assim reconhecidos. Isso tem de voltar a ser uma realidade, mas tem de ter mais sustentação. E a sustentação são as Forças Armadas que sejam efetivas na sua expressão, na sua dimensão..E financeiramente? Vamos chegar aos míticos 2%? No ano passado era a previsão do Governo, o compromisso era de chegarem aos 1,66%, mas só se chegou a 1,48%. O que é que implica na prática estes 2% de orçamento da Defesa? Dizer que Portugal acomete à defesa 1,48% do nosso PIB é uma pura falácia. Portugal anda na zona do 1,1%. E onde é que está a falácia? A falácia está na consideração, por exemplo, dos vencimentos dos reformados. Eu sou um encargo que Portugal dá para a NATO ou para a União Europeia. Isto faz algum sentido? E também entra neste sofisma um batalhão da GNR. Agora, acho que os 2% são um pouco icónicos e são um benchmark..O que importa não é gastar 2% ou 2,1% ou 1,8%. O que importa realmente é termos forças e forças dimensionadas para aquilo que temos hoje. O organizadas, equipadas e treinadas ao nível do melhor que haja na Europa, na nossa escala..Porventura, não nos podemos comparar com os Estados Unidos, mas podemos e devemos comparar com a Holanda, com a Bélgica, com a Dinamarca, com a Noruega, que têm padrões de eficácia que são superiores aos nossos..Mas como é que os 2% fariam a diferença na prática? Não estou completamente por dentro dos dossiers, como calculam, mas acho que hoje os 2% tinham que, em primeiríssimo lugar, e há uma questão de quase atitude de bombeiro, acudir aos requisitos que são adequados para conseguir criar atratividade para o serviço militar..Depois, naturalmente, para o armamento, equipamento e treino. E para outra coisa muito importante, que são as infraestruturas. Não podemos proporcionar hoje aos jovens as infraestruturas que tínhamos nos anos 60. Já ninguém gosta de dormir em quartos particulares de 100, como eu dormi quando era cadete da Academia Militar. Nem sequer em quartos particulares de 12..Além disso, se queremos valorizar as suas pessoas, as suas aptidões e promover facilmente a sua inserção no mundo civil, temos de lhes dar condições , não só de frequência de ensino, que essas basicamente damos, mas de estudar dentro do quartel..Portanto, não chega só ter um quarto particular de dois ou três, é preciso que haja também, nesses espaços, condições para que possam estudar com tranquilidade. Portanto, é para isso que isso servia. No meu tempo fizemos contas e chegámos à conclusão de que 1,8% resolvia muitos dos nossos problemas para nos pôr no patamar, repito, dos holandeses, dos noruegueses, dos suecos, por aí fora..Mas descontando as reformas e a GNR... Com certeza, sem reformas e sem GNR. Porque isso é do ramo falácia, não é do ramo orçamento das Forças Armadas ou Defesa. Hoje há uma necessidade acrescida que é a de prover condições materiais para a satisfação da atratividade remuneratória dos militares. Ao lado disso, temos a Lei da Programação Militar (LPM)..Reconheço isso com satisfação, que esta atual LPM representa um certo impulso mas, ao mesmo tempo, fico um bocado preocupado, porque há um montante significativo de centenas de milhões de euros que não estão lá colocados..Estão previstos como sendo granjeados pelas Forças Armadas, dependendo de receitas próprias. Ora, é discutível se as Forças Armadas conseguem ou não obter essas receitas próprias. E o que vejo de mais grave em tudo isto, talvez esteja com o cinismo próprio da minha idade, é que, com esses quase 300 milhões, criámos um alçapão para que não se consiga planear com exatidão e executar com correção a LPM..Ficava muito mais feliz se esse montante não constasse da Lei, pura e simplesmente. Imagino que eles vão dar um excelente alçapão para o não cumprimento da lei..Esta semana a NATO completou 75 anos de vida e Portugal é um dos países fundadores. Houve muitas dúvidas nos últimos anos sobre se a NATO continuava a fazer sentido existir? A NATO faz sentido nesta altura e convive bem com a União Europeia? A NATO conseguiu esta coisa extraordinária de se reconverter completamente no pós-Guerra Fria e de mostrar a evidência que faz sentido. Veja a paz, a alteração completa da situação de segurança nas Balcãs Ocidentais. Temos porventura uma paz como há muito tempo não tínhamos e isso após a implosão da antiga Jugoslávia..A NATO teve uma intervenção formidável, por exemplo, no combate à pirataria nas costas da Somália e no Golfo de Aden. A NATO tem projetado meios aéreos, agora também de outra natureza, para a proteção avançada da Lituânia, dos países bálticos de uma forma geral e agora também da Roménia. A NATO teve um desempenho extraordinário no Afeganistão, por mais que as pessoas possam pensar que não..Aquilo que as forças da NATO permitiram no Afeganistão, onde à data da entrada não havia uma escola que funcionasse, um hospital que funcionasse, havia uma central elétrica que trabalhava meia dúzia de horas por dia, não havia esgotos, não havia rigorosamente nada e a vida social estava parada. Quando a NATO saiu o país estava mais ou menos recomposto. O que a mim me surpreendeu foi como é que os afegãos, o povo afegão não se bateu pela manutenção das condições de vida que, entretanto, tinham sido criadas. Mas é evidente que essa surpresa fica em segundo lugar com a surpresa que se pode ter em primeiro lugar, que foi a retirada bastante unilateral dos Estados Unidos à revelia até dos seus parceiros..Portanto, sim, a NATO faz muito sentido e a NATO reconverteu-se de uma forma brilhante..E sabe porque é que a NATO se reconverteu de uma forma brilhante para as novas condições e necessidades? Por um lado, porque o clima de debate na NATO e de diálogo é muito aberto, há sempre uma ideia exterior que os Estados Unidos põem e dispõem. Não é assim..Os Estados Unidos são certamente o Estado líder, mas não são o Estado diretor na NATO. E por outro lado porque a NATO tem uma coisa fantástica a seu favor. O Tratado de Washington era uma folha A4 de 14 artigos e, portanto, tem imensa flexibilidade. Foi à luz do bom entendimento do diálogo do debate e da flexibilidade que os textos constitucionais permitiam e que era muito grande, que a NATO foi sucessivamente evoluindo..Quanto à UE e a NATO, houve fases de grande desconfiança mútua, mas acho é que essa separação não existe. Quer dizer, imaginar o Atlântico como exterior à Europa é um absoluto absurdo. O Atlântico é uma parte identitária da Europa, desde as costas da Noruega até às costas portuguesas com prolongamento pelos nossos arquipélagos..Essa fase de desconfiança foi vencida. Como se pode valorizar isto no plano político? Em Maastricht, quando pela primeira vez se falou de uma preocupação europeia em segurança e defesa. Mas, mas para quem conhece o tratado, quem viveu toda essa negociação, e tive essa obrigação, foi muito envergonhada, porque a UE não assumiu as coisas diretamente..Isso foi fazendo o seu caminho a partir daí, com os sucessivos tratados, Amesterdão, Nice, etc., até o Tratado de Lisboa, que já dá uma outra realidade. Depois há uma outra questão que é importante considerar, é que a cultura de segurança e defesa não existia na UE. E as pessoas ficaram muito assustadas com a probabilidade de ver entrar pela porta dentro matérias como a política externa, a segurança e a defesa..Essa fase foi difícil, mas está ultrapassada. Uma das grandes preocupações da atual presidente da Comissão Europeia é valorizar o papel da Defesa . Depois houve uma outra fase, da qual também acho que já saímos, em que havia, fácil e natural interação e complementaridade de esforços entre líderes políticos e líderes militares, mas depois os burocratas, cada um em seu lado, defendia a sua dama de uma maneira desajustada, até em relação ao que era a orientação política e militar..Portanto, neste momento, as condições são para uma excelente cooperação NATO-UE. E para a segurança e defesa da Europa, a cooperação NATO-UE é absolutamente central e decisiva. Em particular, mas não só, no que toca a este arco de instabilidade que temos no sul e no sudeste, na fachada mediterrânica do sudeste..O objetivo da Associação Eurodefense é chamar a atenção dos Estados-membros da UE e da sociedade em geral para as suas responsabilidades nesta área de segurança e defesa. Que avaliação é que faz da forma como o poder político tem assumido esta responsabilidade? O que posso dizer é que as pessoas nos têm acolhido com grande simpatia. As nossas dimensões são essas que referiu, por um lado as questões gerais da política de Segurança e Defesa da Europa, por outro lado a questão da base tecnológica industrial de defesa, tanto no plano europeu, como no plano nacional e, transversalmente a isso, uma dimensão muito forte e muito procurada, de uma maneira aguerrida, relativamente à juventude..Uma coisa que privilegiamos bastante e que se tem mostrado rentável, é a relação com a universidade. Deixe-me dar-lhe um número: abrimos o curso que vai começar para a semana para 14 vagas e temos 56 candidaturas, o que significa credibilidade, em relação ao anterior que fizemos no final do ano passado..Por outro lado, ainda ontem pude assinar com o ISEG um protocolo que vai funcionar, por um lado, com a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e por outro com o ISEG em Lisboa. O de Coimbra vai começar dentro de dias, Lisboa a seguir, para um programa de estudos avançados em Economia e Defesa, que nunca houve em Portugal, e não creio que haja na Europa..Parece que haverá algo semelhante no Reino Unido, não sei se há, nem se não há, mas fora isso não há nada. É completamente inovador, e além disso, temos procurado também dar grande atenção às questões da mais moderna tecnologia, inteligência artificial, robótica, as questões da ciberdefesa, as questões do espaço, e para fazermos isso temos de nos relacionar com muita gente, nomeadamente com a Universidade. .E acha que o caminho vai mesmo pelo lado da academia criar esse know-how, esse conhecimento, ou neste caso a própria instituição militar vai ter de criar essas condições? Temos de funcionar aqui sempre associando Forças Armadas, academia, mundo privado, nomeadamente as empresas. Temos procurado fazer isso. Há coisas que não lhe posso responder. O estágio académico há pouco referido já está comprovado, foi um enorme sucesso e toda a gente que partilhou disso assim o reconhece..O tal programa avançado vai começar, é uma incógnita, mas está toda a gente muito motivada. Não sei se têm essa noção, a nossa economia de defesa é pequenina no contexto económico português, mas é excecional nos seus indicadores de produtividade, de remuneração, de investigação e de capacidade de internacionalização. Portanto, toda a gente se sente muito atraída por isso. .Temos um novo governo e tomou posse ontem um novo ministro da Defesa, Nuno Melo, presidente do CDS. O senhor foi chefe do Exército quando outro líder do CDS, Paulo Portas, era ministro da Defesa. Alinha com a tese do CDS conseguir mais facilmente o respeito dos militares? Não, não posso alinhar com essa tese, porque os militares respeitam, por regra, toda a gente, nomeadamente quem está de direito completo, neste caso de direito constitucional, no desempenho de funções e nessa situação de ministro da Defesa..O que espero de um qualquer ministro da Defesa é que, primeiro, tenha sentido de Estado, compreenda qual é no Estado o papel das instituições e nesse quadro o papel das Forças Armadas. Segundo, que tenha peso político junto do primeiro-ministro, do ministro das Finanças, do ministro da Administração Interna e do ministro dos Negócios Estrangeiros..Se isto for reunido e se o ministro da Defesa estiver na posição de meter a mão na massa e de lidar com estas matérias complicadas e indispensáveis do recrutamento, do rearmamento, ele terá sucesso. Uma coisa que antecipo é que contará com certeza com a colaboração total das Forças Armadas e, desde logo, do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e também dos ramos das Forças Armadas..Se ele passar apenas pela pasta explorando as imensas oportunidades que surgem, visitas bilaterais, participação em congressos e conferências, sonhando eventualmente mais à frente vir a ser outra coisa, putativamente Ministro dos Negócios Estrangeiros, não será ministro da Defesa a sério. Esperemos que queira ser mesmo ministro da Defesa..Acho que não há nenhum problema quanto à respeitabilidade que terá dos militares, não tenho dúvida da colaboração que os militares lhe prestarão e ele tem de saber ouvir e tem de saber ser ouvido..Já vi coisas completamente caricatas, escritas e lidas, como a que este Ministro era provavelmente uma boa escolha porque tinha sido alferes miliciano em Braga. Quer dizer, não consigo imaginar nada que me dê mais vontade de rir do que este argumento..Em relação à ministra que sai, cumpriu neste curto consulado? A ministra que sai teve um período de vigência curto, em boa verdade. É uma pessoa que conheço há muitos anos e por quem tenho grande respeito, grande estima e grande amizade. Acho que encontrou situações muito difíceis..Não tenho nenhuma dúvida que procurou cumprir as suas funções com o máximo de honestidade, de isenção e de transparência. Aqui e além, já numa fase relativamente avançada do seu exercício, descobriu coisas que não sabia, porque é natural que as pessoas não saibam tudo e mudou sempre com seriedade intelectual..A tendência é dizer humildade intelectual, mas é melhor dizer com seriedade intelectual. Soube adaptar a sua perspetiva sobre as coisas à medida que foi vendo, encontrando e conhecendo. Acho que teve o desempenho possível, porque acho que os tempos foram muito difíceis, muito ruins. O ponto, mais uma vez, está aqui: qual era a relação e peso junto do primeiro-ministro?.Faltou-lhe peso político. Pois, talvez. É a noção que tenho. Já agora, basicamente desde 2011, e isto não tem nada a ver com o facto de eu ter saído, é uma mera coincidência que tem que ver com a Troika, vivemos em negligência política perante as Forças Armadas e por isso é muito difícil..O Ministério da Defesa foi alvo de uma grande investigação criminal por suspeitas de corrupção, como sabe, que envolviam a Direção-Geral de Recursos de Defesa Nacional, com dirigentes ao mais alto nível arguidos e suspeitos. A Ministra anunciou, como reação e como forma de prevenir essas situações, tornar a separar a Direção-Geral de Recursos de Defesa conforme era antes do tempo da troika. Acha que isso era uma boa ideia? Uma ideia indispensável. Veja de tudo o que aqui falámos como é importante que haja alguém que se foque de forma especializada na questão dos recursos humanos e alguém que se foque na questão do armamento e do equipamento..Essa junção que se fez foi uma das coisas completamente absurdas que foram feitas no tempo da troika e eu, muito francamente, absolvo completamente a troika. Quem não consigo absolver foram os responsáveis portugueses, políticos portugueses da época, que deram bênção a coisas que não tiveram nenhum estudo. Decidiram que era por ali, traçou-se um risco e assim ficou..Era o ministro Aguiar-Branco, na altura... Era Aguiar-Branco que, porventura, não deixou muitas saudades nas Forças Armadas e o primeiro-ministro também porventura não deixou, porque acederam passivamente àquilo que eram, peço desculpa pela expressão muito corriqueira, uns palpites que a troika fez, porque a troika também não estudou nada disso..Chegou cá e marcou uma espécie de risco a dizer que não podia ser mais do que isto ou menos que aquilo e tinha de se juntar isto com o resto. Não teve nenhum sentido. Foi a coisa mais acéfala que se podia ter feito. Independentemente do resultado final, do ponto de vista do método de abordagem, foi completamente acéfalo e acrítico..O senhor General creio que foi o único antigo chefe que não assinou a famosa “carta dos 28” liderada pelo general Ramalho Eanes, que se opôs à alteração da estrutura das Forças Armadas, no sentido de dar mais competências e mais poder ao chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Porque é que não quis assinar esta carta? Podia responder de uma maneira muito simples; nunca soube da carta. Só soube da carta quando ela foi publicada e difundida. Ou seja, nunca ninguém me convidou ou sugeriu que assinasse a dita carta. Mas para que não restem dúvidas, quero dizer que se me tivessem sugerido para assinar aquela carta que depois vim a conhecer, não a teria assinado por várias razões..Porque não gosto do método, em primeiro lugar. Esta medida era a terceira etapa da reforma de alteração das relações de responsabilidade entre os chefes do Estado-Maior-General e os chefes dos ramos. A primeira etapa era de 2009, a segunda etapa de 2014 e a terceira etapa foi essa que se concretizou em 2021..Ora, fui um dos grandes, se calhar o maior, promotor do início de tudo isto em 2009 e enfrentando dificuldades absolutamente inimagináveis que não gosto sequer de recordar. Esse é o sentido. Pergunte-lhes porque é que acharam que não me queriam convidar para assinar a carta, mas eu não estava no problema de fundo. A minha posição é esta..E depois quando li a carta, muito francamente, fiquei muito triste porque a carta acho que é muito pobre do ponto de vista do seu texto, da identificação do objetivo e da maneira como está escrita. Obviamente não sou um cultor da beleza literária, mas não gostaria de assinar um texto tão desconjuntado como aquele..Por outro lado, do ponto de vista do método, tenho uma dor porque quando vejo atraírem para aquela carta camaradas certamente muito respeitáveis de 90 e tal anos, entendo que certamente manipularam essas pessoas..Porque se é lutar para que as Forças Armadas estejam melhores, com certeza os pormenores as pessoas dessa idade já não os sabem, como eu hoje já não sei muitas coisas. Portanto, por um conjunto de razões, nunca assinaria. Mas também, em boa verdade, fiquem todos cientes que nunca ninguém me falou na dita carta, descobri depois de ser publicado e divulgado porque alguém me mostrou. Portanto, deram-me essa honra de me excluir desse processo. Fico-lhes grato..Estamos no mês em que se celebram 50 anos do 25 de Abril e queria fazer-lhe uma pergunta que podia ser feita por Baptista Bastos. Onde é que estava no 25 de Abril de 1974? Como um capitão da minha geração, estive desde o princípio completamente envolvido, empenhado e comprometido com o primeiro, que foi o movimento dos capitães, e mais tarde o movimento das Forças Armadas, incluindo na sua perspetiva de alteração do regime, porque obviamente era manifesto que o país estava colocado num beco sem saída e que o regime que existia, que era um regime a preto e branco, sombrio, trágico e além de autoritário, não tinha nenhuma porta de saída para os gravíssimos problemas que o país enfrentava..Mas as coisas são como são e em dezembro de 1973 fui para Angola comandar a Companhia de Engenharia. Foi a minha segunda comissão e, portanto, na altura do 25 de Abril estava a algures entre Sanzapombo e Massau a abrir um itinerário entre essas duas localidades..E soube ou esteve a par das movimentações? Estive sempre a par das movimentações, só não sabia a data exata em que ia acontecer. Isso só soube no dia 25 de Abril, pelas 10h22, através da emissão em português da Rádio Berna. E o que é que aconteceu? Fiquei eufórico e fiquei cheio de esperança..E o resto da companhia? Eu disse à companhia o que é que se passava e toda a gente ficou eufórica e cheia de esperança. Depois também se percebeu ao fim de algum tempo que alguns tinham agendas.