Já sabíamos que navegar na internet é entrar numa espécie de faroeste, onde lei, ética, verdade e civilidade são meras figuras de estilo. Mas é também, e cada vez mais, um gigantesco mercado para contas falsas nas redes sociais, autênticos exércitos de ‘bots’ (robôs) que manipulam pessoas, interferem em negócios, fazem campanhas negras e influenciam processos eleitorais. Em Portugal também. E tudo pode ser feito pela módica quantia de sete cêntimos por conta ou menos, dependendo da região, indica um estudo da Universidade de Cambridge, recém publicado no novo site Cambridge Online Trust and Safety Index (COTSI). Para a manipulação ser eficaz a condicionar eleições, por exemplo, têm de ser acionados muitos milhares de contas e de euros.“Encontramos um mercado clandestino florescente onde conteúdos não autênticos, popularidade artificial e campanhas de influência política estão disponíveis e abertamente à venda”, escreveu Jon Roozenbeek, autor sénior do estudo e psicólogo social computacional na Universidade de Cambridge no novo site.De acordo com o estudo, por apenas 100 dólares (85 euros) é possível recorrer a este mercado negro e validar 1079 contas, usando números de telefone do Reino Unido, e 1771 contas no Facebook. Estes valores eram os praticados, por exemplo, a 19 de outubro de 2024, sendo que o mercado é volátil e funciona como uma espécie de bolsa de valores. A análise identificou 17 grandes fornecedores que operam em diversas regiões do globo. O COTSI, lançado na semana passada, é a primeira ferramenta global para acompanhar em tempo real os preços de contas falsas em mais de 500 plataformas, incluindo TikTok, Instagram, Amazon, Shopify, Uber, mas também Whatsapp, Telegram ou Facebook, entre outras. O lançamento ocorreu na mesma semana em que o Reino Unido sancionou empresas russas e chinesas suspeitas de atuarem como “atores malignos” na guerra de informação. A isso não é alheio o facto de o estudo assinalar justamente “ligações fortes” de muitas contas falsas a sistemas de pagamento russos e chineses, e refere que “a construção gramatical usada em muitos sites de fornecedores sugere autoria russa”, algo que é compatível com as conclusões de outros centros que também se dedicam a analisar este fenómeno. No início deste ano, o Reino Unido tornou-se o primeiro país na Europa a proibir as “SIM farms” (fábricas de cartões SIM).Por detrás destas contas estão fornecedores que operam a partir de bancos de dados com milhares de cartões SIM (de telemóvel) e milhões de verificações de identidade falsas prontas, conseguindo criar contas falsas por apenas alguns cêntimos. Têm clientes (que podem estar ligados a Estados) no grande mercado online global que lhes encomendam uma mensagem e um objetivo, seja comercial ou político. As contas são muitas vezes usadas para montar verdadeiros “exércitos de bots”, concebidos para imitar pessoas reais e condicionar o debate público online. E, tal como também atesta a análise, o desenvolvimento da Inteligência Artificial generativa (IA) veio agravar o fenómeno e confundir as pessoas. “A IA generativa permite que os bots adaptem mensagens para parecerem mais humanas e até as ajustem para se relacionarem com outras contas. Os exércitos de bots estão a tornar-se mais persuasivos e mais difíceis de detetar”, admitiu Roozenbeek.Os autores do estudo dizem que podem ser usados para inundar conversas online, promover esquemas ou produtos, ou amplificar mensagens políticas de forma coordenada. “Isto pode fazer-se simulando apoio de base online ou gerando polémica para colher cliques e manipular os algoritmos”, acrescentou. Todos já vimos no Facebook, no Instagram ou no X, o marketing a produtos milagrosos acompanhados de uma quantidade exagerada de comentários elogiosos ou figuras públicas da política a sofrerem centenas de comentários insultuosos e difamatórios. Não, não é só gente comum, é o tal ‘exército de bots’ em ação.Brigitte Macron e Roménia, dois casosUm dos exemplos mais paradigmáticos da dimensão que o fenómeno pode atingir foi a divulgação massiva de conteúdos falsos sobre a primeira-dama francesa Brigitte Macron, insinuando tratar-se de um homem, para atingir o seu marido e presidente da França, Emmanuel Macron. Outro caso de proporções mais sérias foi o nível de manipulação na primeira volta das eleições presidenciais na Roménia em 2024, que o Tribunal Constitucional viria a anular em dezembro desse ano, após relatórios secretos dos serviços de informação romenos terem sido tornados públicos, revelando o envolvimento da Rússia na influência sobre os eleitores através de uma campanha de propaganda antiocidental a favor de Calin Georgescu. Eleitores portugueses também são alvoPortugal também sofreu o efeito deste fenómeno nas últimas eleições legislativas, entre maio e julho deste ano. De acordo com um estudo da consultora Cyabra para a CNN, “58% dos perfis que comentaram na conta oficial do Chega no X (antigo Twitter) foram identificados como sendo falsos”. Segundo o estudo ‘Vozes falsas, votos reais: Como perfis falsos estão a influenciar as eleições de 2025 em Portugal’, os comentários serviram sobretudo para amplificar centenas de comentários pró-Chega. E esses perfis “promoveram o partido como defensor da identidade portuguesa e reforçaram narrativas nacionalistas destinadas a melhorar a sua imagem pública”. Quanto às contas oficiais do Partido Socialista (PS), do Partido Social-Democrata (PSD), de Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, uma média de 49% dos perfis que comentaram também eram falsos. Mas, nestes casos, “as campanhas focaram-se em desacreditar os partidos e os candidatos, usando linguagem emocional para questionar a sua liderança e credibilidade”. O estudo da Cyabra concluiu ainda que a manipulação da opinião pública online é um negócio lucrativo “acessível, automático e sem controlo”.No mesmo período eleitoral, oTikTok anunciou a remoção da sua plataforma de mais de 45 mil contas falsas e 270 conteúdos que violavam a integridade eleitoral em Portugal.Também o PS terá ativado um exército de ‘bots’ para influenciar a campanha eleitoral entre 2019 e 2020, tendo recorrido a uma agência de comunicação para a criação de 300 perfis falsos, segundo divulgou este ano o jornal Nascer do Sol. Admite-se que outros partidos também possam estar a utilizar esta “ferramenta”.Preços aumentam 15% em período eleitoralApesar de clandestino, este mercado também se rege pela lei da oferta e da procura. Foram encontrados indícios de que campanhas de influência política podem estar a impulsionar picos no mercado de contas falsas, com aumento da procura por “operações de influência”. “Os preços de contas falsas no Telegram e no WhatsApp subiram acentuadamente em países prestes a realizar eleições nacionais, aumentando 12% a 15% nos 30 dias anteriores”. “Como estas aplicações de mensagens mostram números de telefone, os operadores de influência têm de registar contas localmente, o que aumenta a procura”.Ao longo do acompanhamento a fornecedores deste tipo de serviços a nível mundial, o COTSI concluiu que a verificação de contas falsas é mais barata no Reino Unido, Estados Unidos e Rússia, e substancialmente mais cara no Japão e na Austrália, países onde as regras mais rígidas para cartões SIM aumentam os custos. Concluiu-se que a verificação por SMS de uma única conta falsa custa em média oito cêntimos de dólar (menos de sete cêntimos de euro), sendo que na Rússia custa apenas seis cêntimos, no Reino Unido 26 cêntimos e nos Estados Unidos 22 cêntimos, contra os 4,25 dólares (pouco mais de três euros) cobrados no Japão. Mas há regiões imbatíveis em termos de preço, como, por exemplo a República do Quirguistão, a mais barata de todas, onde esse serviço custa apenas um cêntimo. A 19 de outubro de 2024 o preço médio para uma conta de Facebook em todos os países disponíveis era mesmo inferior a dois cêntimos. Naquele período, a verificação de SMS mais cara no Reino Unido andava à volta de dois dólares para o WhatsApp e a mais barata era para o TikTok, três cêntimos.O estudo surge num momento de forte desestabilização política em vários países europeus, marcada pelo radicalismo e ascensão da extrema-direita e muito delicado para a confiança e transparência online. As grandes plataformas de redes sociais estão a reduzir a moderação de conteúdos e a começarem a pagar aos utilizadores pelo envolvimento, o que pode incentivar a dependência de interações falsas.A Meta, Shopify, X, Instagram, TikTok, LinkedIn e Amazon estão entre as plataformas com os preços globais mais baixos para contas falsas. Alguns fornecedores deste tipo de conteúdos oferecem apoio ao cliente, pacotes em volume e serviços para inflacionar gostos, comentários e seguidores, segundo o estudo. Mas a lista de plataformas disponíveis para falsa verificação incluem também bancos online e transferência de cripto moedas. Os investigadores concluiram que o serviço de verificação falsa de SMS está disponível em quase todos os países e assenta em infraestruturas cada vez mais sofisticadas capazes de enganar os sistemas de verificação das plataformas.Como enfrentar esta ameaça para as democracias e a confiança online? A equipa do estudo de Cambridge, que integra especialistas em desinformação e criptomoedas, considera que regular os cartões SIM e impor verificações de identidade aumentaria o custo de produzir contas falsas e ajudaria a travar o mercado. “Compreender o custo da manipulação online é o primeiro passo para desmantelar o modelo de negócio que sustenta a desinformação.”