Partindo da sua experiência como deputado da Constituinte, qual foi a importância, durante os trabalhos, dos poderes presidenciais? Foi um tema muito falado?Foi um tema muito falado, desde logo porque houve uma alteração no meio. Os poderes do Presidente constavam da chamada Plataforma de Acordo Constitucional, uma celebrada antes das eleições de 25 de abril de 1975 e outra celebrada a seguir ao 25 de Novembro. E esses dois acordos entre o Conselho da Revolução, em nome da MFA, e os partidos políticos representados na Constituinte - todos, exceto a UDP, que porém só tinha um deputado -, alteraram os poderes presidenciais de um para o outro. E, portanto, os poderes que acabaram na Constituição, em 1976, foram os que resultaram da segunda Plataforma de Acordo Constitucional. Mas os poderes atuais não resultam de 1976, mas da Revisão Constitucional em 1982.Antes ainda de irmos até 1982, pergunto se esses poderes presidenciais em 1976 ficaram conforme o acordado com o MFA? Em 1976 cumpriu-se rigorosamente o que estava acordado. Se há alguma coisa que se pode dizer é que a Assembleia, os deputados, os partidos representados na Constituinte e a Constituição respeitaram integralmente o que estava no acordo. Foi uma questão de boa-fé, compromisso e lealdade.Falemos então da Revisão Constitucional de 1982. Há, efetivamente, uma grande mudança dos poderes presidenciais no sentido de reduzi-los?Essa é a minha interpretação. Não há um consenso entre os constitucionalistas. Eu defendo, com outros constitucionalistas, que 1982 significou uma substancial redução dos poderes presidenciais, sobretudo quanto a um ponto decisivo: é que até 1982 o governo era responsável politicamente perante o Presidente da República. Ou seja, o Presidente da República podia pedir contas, tinha tutela política sobre o governo, e tinha um livre poder de demissão do governo. Aliás, foi isso que aconteceu quando Ramalho Eanes demitiu o segundo governo Mário Soares. Eu costumo dizer, por piada, que o semipresidencialismo acabou aí, porque depois Mário Soares e Pinto Balsemão, em 1982, encarregaram-se justamente de acabar com o poder livre do Presidente da República de demitir o governo.Quando o PS e o PSD se juntam para a maioria qualificada que é necessária para rever a Constituição, há aqui também um choque de personalidades? O Presidente Eanes pelo seu papel no período revolucionário e depois como o primeiro Chefe de Estado eleito no pós-25 de Abril, tinha uma interpretação muito pessoal da Constituição que não agradou a Soares e Balsemão?Os poderes estavam na Constituição, pelo que o Presidente da República até certo ponto limitou-se a usar os que tinha. O Presidente Eanes também se ocupou da política externa que a Constituição não lhe dava explicitamente. E também se ocupou a tutelar um ou dois ministérios, como por exemplo o Ministério da Agricultura. Mas essa interpretação, digamos, expansiva dos poderes presidenciais cabia dentro da primeira versão da Constituição, dado exatamente o facto que o governo ser politicamente responsável perante o Presidente. E, portanto, o governo dependia de dois senhores. Dependia da Assembleia da República, e o primeiro governo de Soares foi derrubado por rejeição de moção de confiança, e dependia do Presidente da República, que demitiu o segundo governo Soares. E foi essa versão expansiva dos poderes presidenciais, quer a que resultava da Constituição, quer a que resultou da prática do Presidente Eanes, que levou os dois maiores partidos a entenderem-se em 1982 para moderar esses poderes, nomeadamente eliminando a responsabilidade do governo perante o Presidente da República. Portanto, o Presidente da República hoje não governa, não manda no governo e nem sequer pode avaliar o comportamento do governo. Desde que cumpra as regras, esteja a governar bem ou mal, isso é com a Assembleia da República, é com os comentadores, é com os cidadãos.Mas há uma constante nestes quase 50 anos que é a eleição por voto popular direto do Presidente da República com uma exigência de maioria absoluta, nem que se tenha que ir a uma segunda volta. Isso no nosso sistema constitucional dá uma legitimidade ao Chefe de Estado, por exemplo, que pode-se dizer que é superior a um Chefe de Estado como o italiano ou o alemão, que são eleitos por parlamentos?Dá, mas dá-lhe a autoridade para exercer os poderes que tem na Constituição, não outros. O meu livro diz duas coisas, que ninguém precisa de estudar Direito Constitucional para compreender. Primeiro, numa democracia constitucional como a nossa ou de outro qualquer país, o Presidente só tem os poderes previstos na Constituição, não outros. E, portanto, não pode excedê-los, abusar deles, etc. Segundo, esses poderes do Presidente, quando afetam a legitimidade de outros poderes, nomeadamente a Assembleia da República com a dissolução ou com o veto legislativo, ou o governo com a apreciação pública que o Presidente da República faça sobre o seu comportamento, devem ser interpretados restritivamente. Se o Presidente dissolve a Assembleia, que é eleita para quatro anos, decidindo, assim, encurtar o mandato da Assembleia, esse poder não pode ser um poder livre, não pode ser exercido por capricho, não pode ser por arbitrariedade, tem de ser justificado e deve ser excecional. E, portanto, seguramente um Presidente diretamente eleito tem uma legitimidade acrescida, mas para desempenhar o papel que tem na Constituição, que não é pequeno, não para outro.No seu livro, diz que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa muitas vezes tem um protagonismo excessivo no cargo, mas quando nós olhámos para trás, e já falámos um pouco do Presidente Eanes, o Presidente Soares, por exemplo, com as suas presidências abertas fazia claramente pressão sobre o governo e o Presidente Jorge Sampaio também teve um protagonismo muito importante, inclusive quando decidiu manter um governo PSD/CDS com Santana Lopes a substituir Durão Barroso, mas depois acabou por mudar de ideias. Diz ainda, curiosamente, que Cavaco Silva foi, talvez, o Presidente que mais se manteve dentro dos limites da interpretação restritiva dos poderes dados pela Constituição. Significa que há margem, apesar de tudo, para cada Presidente interpretar aquilo que a Constituição diz?Há uma margem dentro dos limites que eu disse. O que eu digo no meu livro é que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa ultrapassou todos os precedentes. Basta dizer o seguinte: neste último mandato tivemos quatro eleições da Assembleia da República em cinco anos, tivemos três dissoluções parlamentares, tivemos quatro governos. Isto não tem precedente nenhum. Nenhum Presidente, até agora, comentava as leis quando as promulga. Esse poder não existe. O Presidente da República ou promulga ou veta e para vetar tem de justificar, mas para promulgar, não, porque ele não é um colegislador. É um poder claramente abusivo, não está dentro da Constituição. Nenhum Presidente, até agora, tinha exigido publicamente a demissão de um ministro, mas o atual Presidente fê-lo. Por isso, não comparemos as coisas. Uma coisa é a relativa liberdade de interpretação dentro dos poderes constitucionais, outra coisa é aquilo que tem acontecido nos últimos dez anos, particularmente nos últimos cinco. É ir além das marcas, isto é, utilizar poderes que o Presidente não tem. Há dias, o Presidente dizia “ah, eu vou esperar mais uma semana para fazer um juízo sobre a Ministra da Saúde”, mas o Presidente não tem nenhuma competência para fazer juízos públicos sobre o desempenho político de um ministro, porque não tem poder de tutela sobre o Governo. Quem avalia o comportamento dos ministros é o Primeiro-Ministro, em primeiro lugar, a Assembleia da República, em segundo, e os eleitores, sempre. O Presidente é eleito para arbitrar o jogo político, para ver se os protagonistas cumprem as regras, não para dizer se estão a jogar bem ou mal. Isso depende da Assembleia da República, dos eleitores, etc. O Presidente da República é o polícia que vê se o condutor vai excesso de velocidade, mas não é para comentar, “você é um nabo a conduzir”. Isso nunca tinha acontecido, com nenhum dos anteriores presidentes. Quanto a Jorge Sampaio, ele não mudou de ideias: primeiro, aceitou a nomeação de um segundo governo naquela legislatura, porque havia um maioria absoluta, e depois só dissolveu a Assembleia da República, quando se tornou notório o desnorte do governo e a profunda degradação da situação política..No livro avança com uma proposta de revisão constitucional ampla, mas vou perguntar, sobretudo, a questão da limitação dos poderes presidenciais. Fala do fim do poder discricionário na dissolução da Assembleia, ou seja, quer uma revisão que deixe mais claro aquilo que o Chefe de Estado pode ou não fazer?Exato, não somente do poder de dissolução, mas também do poder de veto das leis da Assembleia da República, onde também tem havido um notório excesso. Mas o que eu pus nessa proposta de revisão é aquilo que eu entendo que já deve ser entendido agora. O Presidente, quando exerce os poderes que tem e quando eles afetam a vida de outras instituições, deve fazê-lo a título excecional e de modo bem fundamentado. Eu só avanço com esta proposta de revisão constitucional - que digo, aliás, que não é estritamente necessária, nem proponho nenhum prazo imediato -, para clarificar, para tornar mais preciso, para tornar mais previsível a ação presidencial e a vida política. O que eu penso que é importante neste momento, em que estamos já em campanha eleitoral para as presidenciais, é os eleitores terem uma ideia precisa daquilo para que serve o Presidente da República, para que serve o seu voto, porque nós quando votamos nas eleições parlamentares, também chamadas legislativas, sabemos o que é que estamos a fazer. Vamos eleger os deputados que vão fazer as leis e vamos dar a maioria (a relativa ou absoluta) ao partido que queremos que governe. Portanto, sabemos que a nossa vida, enquanto não houver outras eleições parlamentares, vai depender das leis e do governo que sair das eleições e do nosso voto. Para a eleição do Presidente da República, até agora tivemos uma ideia relativamente vaga, mas suficientemente precisa do papel do Presidente, porque as variações entre as atitudes dos Presidentes que tínhamos tido até agora não suscitavam grandes dúvidas de que o Presidente ia ser essencialmente um moderador, focado na garantia do regular funcionamento das instituições, um Presidente que exercia, em geral, discretamente a sua magistratura de influência. Ora, isso foi alterado nos últimos dez anos e, por isso, eu creio que os eleitores estão, neste momento, numa situação de relativa confusão. A minha principal preocupação com este livro foi dizer duas coisas: uma aos candidatos e outra aos eleitores. Senhores candidatos, digam o que é que vão fazer. Digam claramente aos eleitores como se propõem exercer o vosso mandato, se forem eleitos. Senhores eleitores, queiram saber qual é o perfil dos poderes que os candidatos se propõem exercer. Como é que vão exercer o poder de dissolução? Como é que vão exercer o poder de veto? Como é que vão exercer a sua magistratura de influência? Eu penso que os candidatos que encaram seriamente a sua candidatura para serem Presidente deviam responder aos 15 itens que apresento no livro, como modelo de Presidente constitucional. Nós, cidadãos, temos o direito de saber, depois desta deriva presidencialista do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, se vai haver repetição do seu ativismo presidencial, ou se vamos voltar à normalidade do exercício contido, prudente, discreto, dos poderes presidenciais. O perfil presidencial que defendo é de um Presidente moderador, e não perturbador; de um Presidente estabilizador, e não desestabilizador; de uma magistratura de influência, e não de ingerência.Vivemos em República há 115 anos, e antes tivemos a Monarquia Constitucional. Na Carta de 1826 há um Poder Moderador que é dado ao Chefe de Estado, na altura o rei. Esse Poder Moderador, que se soma aos tradicionais poderes Executivo, Legislativo e Judicial, de alguma forma, passou para as constituições republicanas, nomeadamente para a de 1976?Bom, o poder moderador na Carta Constitucional era um super poder moderador, um maxipoder moderador, que permitia ao Chefe de Estado acumular com a titularidade ou cotitularidade dos outros três poderes políticos clássicos: poder legislativo, poder executivo e poder judicial. Além dele, o Rei não só era o chefe do Poder Executivo; tinha também um poder de tutela enorme sobre o Parlamento, nomeando pessoalmente uma das câmaras das Cortes, a Câmara dos Pares, e tinha um poder de veto legislativo absoluto; sobre os próprios juízes e tribunais, tinha, por exemplo, um poder de suspensão provisória dos juízes e um poder de amnistia penal. Esses poderes do Chefe de Estado desapareceram completamente na Primeira República, que os reduziu a zero; o Presidente só tinha funções representativas e cerimoniais. Na Segunda República, no Estado Novo, na ditadura, o Presidente da República, até certo ponto, foi imitar o Rei na Carta Constitucional. Por um lado, partilhava o Poder Executivo com o Governo, pois presidia ao Conselho de Ministros e podia livremente demitir e nomear o Governo; por outro lado, controlava o reduzido poder legislativo da Assembleia Nacional, mediante um forte poder de veto. Portanto, o Estado Novo foi, até certo ponto, uma reedição do maxipoder moderador do Rei na Carta Constitucional. Na nossa atual Constituição, fizemos por moderar o Poder Moderador. Isto é, o Poder Moderador está lá, mas com poderes bastante mais reduzidos. O Presidente da República não participa no exercício de nenhum dos três outros poderes: não colegisla e não governa nem cogoverna. Desde 1982 deixou de poder demitir livremente o Governo porque este deixou de ser responsável perante ele. Pode dissolver a Assembleia da República, mas com importantes limites temporais. Mantém um poder de veto legislativo, mas somente suspensivo. Portanto, é um poder moderador de intensidade média, talvez, mas focado na garantia do regular funcionamento das instituições e na defesa dos valores constitucionais. É um poder maior do que os demais Presidentes da República eleitos na União Europeia em democracias parlamentares, como é o nosso caso, tirando porventura o Presidente da Roménia, mas isso não o torna um Presidente-governante, continuando a ser um Presidente-garante, como dizem os constitucionalistas......E o presidente francês, certo?O caso francês é outro campeonato. Quem governa em França, em condições normais, é o Presidente. Não é poder moderador nenhum, ele é o poder governante. Dirige a política externa e a de defesa e preside pessoalmente ao Conselho de ministros. O Primeiro-Ministro francês é uma espécie de chefe do Estado-maior do Presidente da República. Uma das coisas que me preocupa neste livro, é mostrar claramente que uma certa ideia corrente de que nós temos um regime semelhante ao francês não faz sentido nenhum; as diferenças são abissais.Não faz sentido mesmo na versão de 1976? Nunca foi essa a intenção dos Constituintes?Mesmo na versão de 1976, mas muito menos na versão de 1982. Admito que na versão de 1976, uma interpretação, digamos, forte da Constituição pudesse aproximar a nossa Constituição da Constituição francesa, mas tal nunca foi equacionado. Em França o Presidente da República, em condições normais, é quem governa; e mesmo quando, excecionalmente, o seu partido não tem uma maioria que lhe permita nomear livremente o Primeiro-Ministro, ele mantém a política externa e a política de defesa, e é ele que representa a França no Conselho da União Europeia, que é composto pelos responsáveis pela governação em cada Estado-membro. Em Portugal nunca se colocou tal hipótese. Quem representa Portugal no Conselho da União Europeia, é o Primeiro-Ministro, e não poderia deixar de ser assim, porque é o governo que conduz e executa a política geral do País.