Almirante Melo Gomes: Defesa Nacional. “Temos navegado à vista - e por vezes com as máquinas à ré”
Propôs-se uma meta de 5% do PIB para a Defesa, algo que muitos aliados consideram difícil de concretizar. Aliás, fala-se numa progressão: 3,5% primeiro, depois mais 1,5%. Que sentido estratégico tem este objetivo? E como deve ser lido por países como Portugal?
O documento da Cimeira de Haia é um momento importante - mais ainda se for efetivamente cumprido. Como sabemos, essa não tem sido a tradição. Há uma ameaça real a Leste, confirmada com a invasão da Ucrânia, e os Estados Unidos, na minha opinião, já não têm capacidade para tratar de dois teatros simultâneos: Europa e Indo-Pacífico. Cabe à Europa dissuadir, e, se necessário, conter. A Europa tem de ser autossuficiente - ou, pelo menos, aproximar-se disso.
Estamos numa corrida contra o tempo - e contra a vontade política dos diferentes Estados e das respetivas opiniões públicas. Este documento reflete, em termos gerais, um entendimento comum entre a Europa e os Estados Unidos sobre o valor da aliança transatlântica. Sobretudo depois do afastamento claro da Administração Trump, parece existir agora uma inversão de comportamento.
A atual Administração americana percebeu que não é possível “fazer a América grande outra vez” sozinha. E mais: os aliados preferenciais dos EUA, por razões culturais, económicas e financeiras, continuam a ser os europeus. Isso terá, naturalmente, consequências para Portugal - e temos de as ponderar com seriedade.
Portugal ainda nem atingiu os 2%. É realista pensar num salto para os 3% ou mais até 2035?
Sinceramente, acho que não é realista - ou será muito difícil de concretizar. Estamos a meio do ano, com dois atos eleitorais pela frente. Mesmo os 2% podem não se concretizar, dependendo da contabilidade
Há quem diga que vai ser “criativa”, ou seja, alocando verbas a investimentos que não são diretamente meios de combate ou defesa...
Sim, e esse é um risco. O risco de não cumprirmos com o que assumimos - como, aliás, já aconteceu desde a Cimeira de Gales, em 2014. Isso tem-nos descredibilizado perante os Aliados e até perante nós próprios. E há riscos reais: contabilidade criativa pode dar-nos uma ilusão de prontidão, que depois falha nos cenários operacionais. É gravíssimo, sobretudo para quem está no terreno. É para mim o maior risco.
Que oportunidades há neste novo contexto?
Esta é uma oportunidade rara de construir um plano coerente a dez anos, com participação das Forças Armadas e de vários ministérios, Defesa, Finanças, Infraestruturas, entre outros. Precisamos de reorganizar meios, pessoal, material. Creio que as nossas Forças Armadas estão hoje preparadas para contextos de baixa e média intensidade, mas falta-nos capacidade superior. Temos de nos preparar para cenários de alta intensidade. Para isso, é preciso vontade política e é essencial explicar aos portugueses a situação. Os 3,5% significam mais 600 milhões por ano; os 5%, mil milhões por ano. É preciso um plano validado politicamente, executável e com apoio parlamentar. E, na minha opinião, devia ser submetido à Assembleia da República.
O GREI falou em 2020 de uma “pré-falência” das Forças Armadas. Qual é o diagnóstico hoje?
A situação agravou-se. Em 2020 enviámos uma carta ao Presidente da República alertando para a degradação em meios humanos e materiais. Defendíamos que era preciso pôr fim a essa degradação, que era insustentável a prazo, e solicitámos a sua intervenção. O que aconteceu? A situação continuou a degradar-se, nomeadamente ao nível dos efetivos. Só em 2024 - portanto no ano passado - houve uma reposição salarial que reduziu a inaceitável desigualdade entre as Forças Armadas e as forças e serviços de segurança. A Lei de Programação Militar foi também aprovada em 2023, publicada em agosto, e prevê algumas melhorias no campo dos equipamentos. Mas a instabilidade política - e estamos a falar de três Governos - tem comprometido a execução dessas medidas.
Estou absolutamente convencido de que as grandes reformas anunciadas para as Forças Armadas, quer em 2013, quer em 2021, acabaram por ter o efeito contrário ao que se apregoava: degradaram ainda mais a situação.
Por isso, em vez de mais grandes planos, o que é preciso é executar de imediato a proposta que referi: com o aval político necessário, submetê-la à Assembleia da República. Esta é uma questão que deve merecer o maior consenso nacional.
Temos de manter o foco numa abordagem de segurança a 360 graus. Temos ameaças no Atlântico, com o aumento da presença da esquadra russa nas nossas águas - nomeadamente submarinos. Temos a militarização do Ártico. Temos a ameaça permanente a Leste, na Ucrânia, cujo desfecho ainda é incerto. E, a Sul, enfrentamos a pressão migratória e o terrorismo. Tudo isto exige uma abordagem de segurança ampla, coerente e integrada.
Mas, acima de tudo, temos de resolver a questão do pessoal. Esse é, para mim, o ponto mais urgente.
Faz sentido reintroduzir o serviço militar obrigatório?
Não como resposta à escassez de efetivos. O serviço militar deve ser encarado como um dever cívico. Há formas de o mitigar: contratos e voluntariado bem pagos, com formação militar periódica e compensadora.
E quanto ao investimento?
Tem de estar alinhado com os pacotes de capacidades da NATO. E deve aproveitar os instrumentos de financiamento europeus - como o programa SAFE (Instrumento de Ação para a Segurança da Europa ) ou o EDIRPA (European Defence Industry Reinforcement through Common Procurement Act) - que têm fundos disponíveis.
Para o SAFE é preciso submeter um plano daqui a cinco meses. É possível?
Para executar um plano com o ordenamento jurídico que temos em Portugal, é absolutamente urgente agilizar o processo de contratação pública. Porque, assim como está, é impossível.
É impossível adquirir os meios necessários em tempo útil.
Acha que o poder político, neste momento, está mais consciente da necessidade de valorizar e investir nas Forças Armadas?
Fala-se mais na Defesa, é verdade. Mas continuamos com a “síndrome do treinador estrangeiro”: só se leva a sério quando é dito lá fora. E não se reconhece que estamos tão expostos como os países da linha da frente.
Já não há zonas de conforto. Hoje, com a velocidade dos vetores de combate, a diferença entre o Leste da Europa e Portugal é de 15 minutos. A ameaça é real, e a dissuasão tem de ser permanente.
Não. A Europa ainda não tem capacidade para um Exército Europeu
Almirante Melo Gomes
A NATO exige interoperabilidade. A UE fala em autonomia estratégica. São agendas compatíveis?
Têm de ser. Portugal é atlântico e europeu. A nossa geografia é o fator mais imutável da estratégia - e obriga-nos a ser ambas as coisas. A agenda da NATO, dos EUA e da Europa não pode ser incompatível. A sobrevivência de todos depende dessa articulação.
O GREI tem alertado para a falta de pensamento estratégico. Continuamos a navegar à vista?
Sim. Há pensamento estratégico em muitas instituições - nas academias, nas universidades, no Instituto de Defesa Nacional. Mas se não o operacionalizamos, torna-se irrelevante. Temos navegado à vista, e por vezes até com as máquinas a ré.
Desde 2013 não se revê o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN). Porquê?
Porque as mudanças têm sido rápidas e a política, lenta. Exatamente. O atual Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) data de 2013. E, desde então, o mundo mudou radicalmente. Nem sequer temos um conceito estratégico de país: quais são os nossos interesses permanentes? Sem isso, tudo o resto é conjuntural.
E o Conselho Superior de Defesa Nacional (CSDN)? Tem influência?
Conheço-o bem, já lá estive enquanto CEMA. O CSDN é o órgão consultivo do Presidente da República para a Defesa. Reúne, em regra, de três em três meses. Tem 19 membros: 17 por inerência e dois deputados da Assembleia da República. Entre esses membros, há oito representantes do Governo. Ou seja, o Governo tem a maioria no Conselho - e isso limita a influência do Presidente da República.
Se esses oito membros do Governo estiverem alinhados com o primeiro-ministro - que, além disso, tem reuniões privadas regulares com o Presidente da República - então, é natural que o Conselho funcione mais como uma formalidade do que como um verdadeiro fórum de estratégia.
Quer dizer que, na prática, não funciona como devia funcionar?
Sim, é isso. O modelo atual não garante que o Conselho tenha um papel verdadeiramente estratégico. E esse é um problema sério. Defendo que o Presidente devia poder nomear dois representantes, como no Conselho de Estado. Isso permitiria maior pluralismo e eficácia estratégica. É importante que o Presidente tenha também o conselho das pessoas em quem confia para o aconselhar.
Como antigo chefe da Armada, acha que a Marinha tem hoje os meios necessários para proteger a soberania nacional, controlar a Zona Económica Exclusiva e afirmar-se no Atlântico? Qual é o seu diagnóstico?
Fui CEMA entre 2005 e 2011, com muito orgulho. E não quero - nem devo - voltar a intervir diretamente, até porque a Marinha está hoje muito bem comandada. O atual CEMA tem uma grande experiência operacional.
Mas posso dizer-lhe, sem qualquer dúvida, que os meios materiais e humanos são insuficientes para a dimensão das tarefas que referiu - na área marítima sob a nossa responsabilidade.
E tão importante quanto isso é não desperdiçar recursos, diluindo-os em instituições que não têm a cultura, nem a preparação necessária para exercerem essas funções no mar. Isso exige anos de formação e experiência. Como dizia um camarada meu: muitas vezes tira-se de onde faz falta para pôr onde faz vista.
Está a referir-se à Unidadede Controlo Costeiro da GNR?
Não posso ser mais direto. É um problema que persiste. Passam Governos e ninguém teve ainda coragem estratégica para resolver essa questão.
Faz sentido criar um Exército Europeu?
Não. A Europa ainda não tem capacidade para isso. Mesmo com este plano e com todo o investimento previsto - que será, se concretizado, o maior dos últimos 20 ou 30 anos - vai demorar muito tempo até que as capacidades se tornem reais. Quer em termos humanos, quer materiais. E levanta questões políticas profundas - Europa das nações ou federal? Essa é uma discussão interminável.
Apoia a candidatura de Gouveia e Melo. Porquê?
Conheço-o bem. É institucional, de palavra, cumpridor da Constituição. Não é do sistema, mas também não é contra ele - e isso dá-lhe independência para construir pontes e compromissos. Tem pensamento estratégico e capacidade de liderança. Acredito que pode ser um Presidente unificador, com visão e coragem para servir Portugal.
Estamos a viver o fim do ciclo da paz europeia?
Sim. A balança de poder está a realinhar-se. China, Rússia, Índia, BRICS desafiam o Ocidente. A história mostra que esses abalos levam quase sempre a conflito. O ciclo da paz europeia, com exceção dos Balcãs nos anos 90, durou cerca de 75 anos. Terminou em 2022, com a invasão da Ucrânia. Churchill dizia (no contexto do Acordo de Munique, 1938): “Entre a desonra e a guerra, escolheram a desonra.” Eu digo: agora escolheram a desonra - e vão ter as duas.