"Pré-falência" das Forças Armadas. As dez razões dos generais e a reação dos partidos
Quatro oficiais-generais, entre os quais três ex-chefes do Estado-Maior: Manuel Taveira Martins, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, José Pinto Ramalho, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, e Fernando Melo Gomes, ex-chefe do Estado-Maior da Armada - o quarto general é Luís Sequeira, ex-secretário-geral do Ministério de Defesa Nacional (MDN) -, assinaram a carta de alerta dirigida ao Presidente da República.
Na missiva, a que o DN teve acesso, os oficiais-generais justificaram a iniciativa por estarem a assistir "com preocupação ao contínuo processo de degradação das Forças Armadas e ao consequente aumento das vulnerabilidades do sistema de defesa nacional e da posição do país no quadro das alianças que integra". Veja mais abaixo as suas razões.
São todos presidentes dos órgãos dirigentes do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI), que integra um vasto conjunto de oficiais-generais dos três ramos, na reserva e na reforma, que desempenharam cargos de alta responsabilidade na hierarquia das Forças Armadas (FFAA) e na GNR. É em nome do GREI que remeteram a carta, a que o DN teve acesso, a 23 de janeiro último.
Em declarações ao DN, o presidente do CDS salienta que "as Forças Armadas desempenham um papel fundamental no exercício da soberania e na defesa da independência nacional, do território, dos cidadãos e do Estado de direito democrático". Por isso, frisa, "a sustentação das Forças Armadas, a preservação do interesse nacional e o reforço do prestígio externo de Portugal recomendam um diálogo político-militar construtivo e um amplo consenso político entre os principais partidos".
citacaoa sustentação das Forças Armadas, a preservação do interesse nacional e o reforço do prestígio externo de Portugal, recomendam um diálogo político-militar construtivo e um amplo consenso político entre os principais partidos
Francisco Rodrigues dos Santos está apreensivo "com o facto de o número de efetivos se encontrar abaixo do exigível, com a fraca atratividade da carreira militar, especialmente para os mais jovens, e com os baixos níveis de investimento na segurança cooperativa no exterior". Diz que devem ser dadas às Forças Armadas "todas as condições para que sejam eficazes, operacionais e adaptadas às mudanças que se verificam em termos internacionais - nomeadamente o terrorismo, o cibercrime e a segurança na gestão dos recursos".
O líder centrista entende que, "com vista a resolver estas dificuldades, é necessário convergência política e militar nas seguintes respostas: rever o estatuto remuneratório das Forças Armadas; criar um quadro permanente de praças no Exército e na Força Aérea; implementar modelos alternativos de recrutamento voluntário nas Forças Armadas; apostar na segurança cooperativa no quadro das alianças internacionais em que Portugal está inserido, uma vez que segurança afastada de Portugal é também a nossa própria defesa.
Para o PCP, o aviso dos generais "tem razão de ser", embora "não haja novidade nas situações descritas, em relação às quais as associações profissionais têm vindo a alertar". O deputado comunista António Filipe, responsável pela defesa no grupo parlamentar, lembra que "estas situações não nasceram hoje" e que "já eram denunciadas pelas associações quando alguns dos generais que subscrevem a carta eram chefes dos ramos". "Não podem, por isso, isentar-se de alguma quota de responsabilidade", sublinha.
citacaoOs generais que subscrevem a carta eram chefes dos ramos. Não podem, por isso, isentar-se de alguma quota de responsabilidade.
António Filipe reconhece que se trata de "problemas reais" e que para serem solucionados "exigem vontade política muito forte". Assinala que para "criar condições de atratividade é preciso rever as condições salariais e de saídas profissionais". Reconhece que o atual ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, "é melhor do que os antecessores" e parece estar "a querer resolver os problemas", mas o problema são "as 'contas certas' - a margem de manobra é zero e quaisquer outras medidas além da Lei de Programação Militar (LPM) têm obstáculos enormes".
O PS também não tem "dúvidas" de que o governo "tem vindo a priorizar o investimento nas Forças Armadas e na LPM, que resultou de um consenso alargado na Assembleia da República". O deputado Diogo Leão, membro da Comissão de Defesa Nacional do Parlamento, refere que em relação às dificuldades de recrutamento "os problemas não são novos e têm vindo a degradar-se na última década".
Diogo Leão considera "extremamente redutor" que "só melhores salários e carreira" possam determinar a atratividade para o ingresso nas Forças Armadas. "Para muita gente, as Forças Armadas são uma vocação e não apenas uma profissão."
citacaoTendo muito respeito pelos quatro oficiais-generais que subscrevem a carta, devemos valorizar todo o debate que se faça na sociedade e que contará com a experiência destes generais que ocuparam cargos relevantes"
O deputado socialista não quis comentar em concreto a iniciativa dos generais, alegando desconhecer a carta. Quanto à oportunidade da mesma, responde assim: "Nada a censurar. Tendo muito respeito pelos quatro oficiais-generais que subscrevem a carta, devemos valorizar todo o debate que se faça na sociedade e que contará com a experiência destes generais que ocuparam cargos relevantes."
Segundos os generais, a reforma estrutural iniciada em 2013 designada "Defesa 2020 teve "resultados muito aquém dos objetivos propostos" e daí resultaram "consequências altamente gravosas que urge reverter". Esta reforma, decidida nos anos da troika pelo governo PSD-CDS, pretendia "obter ganhos de eficiência, economias de escala e vetores de inovação" e, principalmente, "racionalizar a despesa". Mas a partir daí, sublinham estes oficiais superiores, "as reformas passaram a privilegiar a redução de despesa como um fim em si mesmo, quase sempre com prejuízo de critérios de racionalidade económica e militar".
Assistiu-se a "cortes aleatórios nos orçamentos e nos efetivos, à alienação e abandono de infraestruturas, ao cancelamento de programas de reequipamento em curso e à venda de equipamentos sem se proceder à indispensável substituição".
Os generais alegam que as despesas com pessoal e operação e manutenção "têm estado abaixo dos montantes" considerados necessários para "garantir a prontidão operacional". Por isso "têm crescido as dificuldades de manutenção e a sustentação no âmbito geral das Força Armadas, com maior incidência na Marinha e na Força Aérea, pelas características dos meios que operam".
O "calendário e fluxos financeiros" da Lei de Programação Militar (LPM), sublinham, "sofrem frequentes descontinuidades em resultado de cativações, de deduções, de transferência de saldos e, em certos casos, de dificuldades associadas à complexidade técnica e administrativa dos processos".
De acordo com esta avaliação, a "conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de infraestruturas" têm sido "insuficientemente realizadas". Há "graves deficiências a nível da habitabilidade e funcionalidade de muitas infraestruturas".
Recentemente, a Marinha perdeu o seu único navio reabastecedor, limitando assim as suas capacidades operacionais às águas nacionais.
Na reforma Defesa 2020, aprovada em 2013, previa-se um efetivo nas Forças Armadas de 30 a 35 mil. Porém, no final da década passada (2018-2019), o número de militares estava 30% abaixo desse valor e no caso do Exército era de 50%. "São mínimos nunca verificados nas Forças Armadas", salientam os generais.
Quanto à falta de efetivos, a "situação nas Forças Armadas em geral é grave, mas no caso particular do Exército é de emergência institucional". Os generais lembram que "uma unidade do Exército só se considera passível de emprego operacional quando o seu potencial de combate, em pessoal e material, se encontra acima dos 75%".
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A situação que se vive é "insustentável e já compromete o cumprimento de algumas missões atribuídas". Tem vindo a "crescer um clima geral de mal-estar, de insatisfação, de saturação e de injustiça relativa", levando a que "um número crescente de militares" abandonem "precocemente as fileiras".
As alterações a que foi sujeito o estatuto dos militares das Forças Armadas penalizaram "os fatores influenciadores da carreira, principalmente em relação aos que estão no ativo - nomeadamente na passagem à reserva e à reforma, no condicionamento das promoções e na consequente progressão na carreira".
O conceito de condição militar, definido na lei desde 1989, "tem vindo a ser descaracterizado de tal forma que hoje não passa de um slogan que objetivamente penaliza os militares.
Os generais dizem que o sistema remuneratório dos militares das Forças Armadas "tem sofrido um progressivo desajustamento em relação a outros setores da administração pública equiparáveis, quer no leque salarial, quer nas condições de reforma, quer na remuneração dos cargos de topo na carreira".
De acordo com a análise dos generais, têm "acentuado" a "tendência para desvalorizar as qualificações dos militares em relação a funcionários civis". Dão como exemplo "o progressivo afastamento de militares dos cargos superiores do Ministério da Defesa". Recorde-se a recente nomeação do chefe de gabinete do ministro da Defesa para um cargo superior naquele ministério.
Há vários problemas "de vulto" identificados pelos jornais no sistema de saúde militar. O Hospital das Forças Armadas, por exemplo, "continua a ser afetado por insuficiência de recursos humanos, de valências e de infraestruturas que o impedem de garantir com eficácia a suas finalidades".
No entender dos generais, a reforma realizada "piorou as condições de assistência dos militares e das suas famílias, sem qualquer poupança de recursos materiais e humanos".
No que diz respeito ao Instituto de Ação Social das Forças Armadas, "tem uma dívida acumulada de várias dezenas de milhões de euros, por lhe ter sido atribuída a responsabilidade pelos custos da assistência na doença aos militares (ADM) sem a correspondente contrapartida.
Os oficiais-generais indicam também como ponto negativo para a situação das Forças Armadas o facto de - na sequência das alterações verificadas no processo da justiça e da disciplina militar, "bem como medidas avulsas que limitam a liberdade e a manobra das chefias militares no domínio administrativo e financeiro" - existirem "reflexos negativos a nível do comando da hierarquia e da disciplina e, portanto, na eficácia e eficiência militar".
Toda a situação descrita "tem vindo a fomentar a utilização, por um número crescente de militares, de redes paralelas e horizontais de associação e de informação utilizando o espaço digital". O resultado é "o enfraquecimento da cadeia hierárquica - política e militar - e a emergência de condições favoráveis ao aparecimento de fenómenos inorgânicos". Recorde-se por exemplo o "movimento zero" das Forças Armadas.