Tancos. Um ministro, dezenas de militares e traficantes de armas acusados
A acusação do Ministério Público sobre o caso do roubo Tancos envolve Azeredo Lopes, dizendo que prejudicou a descoberta da verdade. E valida a tese de que este processo começou com um assalto, passou a problema de orgulho e acabou em drama nacional e político
Dois anos e três meses depois do grave assalto às instalações militares em Tancos, o Ministério Público (MP) acusa mais de 20 pessoas pessoas: um ex-ministro da Defesa, vários militares e traficantes de droga e armas. Dá como certa toda a investigação anterior e valida a tese de que o caso começou como um assalto aos paióis de Tancos se complicou depois de a própria PJ Militar ter participado na encenação da descoberta das armas, apenas para "passar a perna" à PJ que, entretanto tinha ficado com a responsabilidade do processo.
Azeredo Lopes é o único responsável político acusado. A versão do Ministério Público foi de que o ministro sabia de tudo, mesmo depois de ter afirmado várias vezes, até na Comissão de Inquérito da Assembleia, em sentido contrário. O ex-ministro está acusado dos crimes de denegação da justiça, prevaricação e abuso de poder.
abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação no "caso de Tancos" e proibido do exercício de funções.
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O MP considera que pelos testemunhos e provas documentais que recolheu o ex-governante - nomeadamente um SMS que enviou a um deputado do PS revelando que sabia que o material ia ser recuperado - prejudicou gravemente a descoberta da verdade. E explica: quando soube que a Polícia Judiciária Militar (PJM) estava a fazer uma investigação paralela à do MP, investigação essa que envolvia um acordo com um dos suspeitos do assalto, o ministro nada fez para a travar, nem denunciou a trama.
Mesmo não apurando o dolo desta atitude, o Ministério Público resolveu acusar o ex-ministro. Das várias conversas não fica claro que houvesse qualquer intenção negativa do ministro, mas para o MP, o comportamento de Azeredo "é extremamente grave". Além de ter exercido os seus poderes de ministro " contra os fins que lhe foram atribuídos", beneficiando criminosos, ainda violou a "fidelidade reclamada pela sua qualidade" de ministro. No despacho de acusação, o MP aponta e descreve vários encontros entre o diretor da PJM, Luís Vieira, e Azeredo, na casa deste último e no ministério, nos quais, segundo a acusação, o ministro ia sendo informado do desenrolar dos acontecimentos.
Segundo a acusação, o furto das armas deu-se quase de forma "fortuita". Não foi, segundo o MP, encomendado
Segundo o MP, 15 dias antes do ''achamento', por exemplo, o ministro sabia o que estava prestes a acontecer e que tudo tinha sido feito em acordo com um dos suspeitos, em troca da proteção deste. Azeredo Lopes nunca informou o MP, nem a PJ. E, mais, segundo a acusação, aprovou os louvores a militares da PJM, que tinham sido propostos por Vasco Brazão, em reconhecimento desde trabalho. Reencaminhou mesmo ao ministro da Administração Interna a proposta para louvar os militares da GNR que apoiaram a operação, o que Eduardo Cabrita subscreveu.
Foi por ter sido informado erradamente por Azeredo Lopes, no dia do 'achamento', que o primeiro-ministro António Costa elogiou o trabalho da PJM e da GNR. O MP tira algumas conclusões políticas, sublinhando, no despacho, que a recuperação do material assumia um papel muito importante na imagem do governo, numa altura em que "estava na agenda a tragédia dos incêndios e as consequências políticas, que levaram à demissão da Ministra da Administração Interna".
O MP teve o chefe da Casa Militar do presidente da República também na sua mira, sobretudo depois de ter percebido que tinha havido vários contactos entre ele e o diretor da PJM - mas acabou por não considerar que estivesse cabalmente provado que sabia de tudo.
Na investigação também foram alvo vários generais de topo da GNR, mas acabou por considerar-se as provas insuficientes.
Militares acusados e duas tramas
Entre os militares acusado estão elementos da PJM e da GNR, nomeadamente três coronéis. O diretor da PJM, Luís Vieira e dois da GNR, chefes máximos da investigação criminal daquele corpo. Esta seria, segundo o MP, a segunda associação criminosa do caso - sendo a primeira, claro, a dos ladrões que roubaram as armas.
O despacho de acusação corrobora a versão da investigação de que foi por uma questão de orgulho ferido que os membros da Polícia Judiciária Militar agiram, tentando salvar a face de fracassos passados. Era esse o sentido do título da investigação, Hubris. Segundo a acusação, Vieira e o seu grupo da PJM, com ajuda da GNR de Loulé, arquitetaram um plano totalmente à margem da lei para afastar PJ do processo - negociaram com um dos suspeitos do assalto e garantido a sua proteção, para ter as armas de volta.

O major Vasco Brazão, 48 anos, ex-coordenador de investigação criminal da PJM
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Segundo o MP, tudo isto atrasou e adiou meses a captura dos assaltantes que só foi conseguida cerca de três meses depois deste grupo ser detido, quando o MP e a PJ ficaram com o terreno livre da ação da PJM.
Segundo a acusação, o furto das armas deu-se quase de forma "fortuita". Não foi, segundo o MP, encomendado. Aconteceu apenas porque a segurança dos paiois estava de tal forma degradada e desprezada que era comentada a boca cheia por militares ali destacados. Um deles, o acusado Filipe Sousa, furriel do exército, calhou de comentar o assunto com o tio, Valter Abreu 'Pisca' - este, por acaso um traficante de droga que tinha como fornecedor João Paulino. E foi assim que tudo começou.
Os 10 suspeitos do furto eram conhecidos traficantes de droga, e alguns deles de armas também. João Paulino seria o cabecilha, António Laranjinha o seu número dois e o homem com ligações ao tráfico internacional de armas. É também arguido no caso das pistolas Glock da PSP e foi ele quem falou ao grupo, de acordo com o MP, que ia contactar a organização terrorista Eta para vender os explosivos furtados em Tancos.
Por este motivo, a maioria dos membros do gangue de João Paulino estão também acusados pelo crime de terrorismo - embora o MP não concretize se o contacto chegou a ser feito.

João Paulino no seu tempo nos fuzileiros
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Ao todo serão mais de duas dezenas de acusados num despacho com quase meio milhar de páginas de uma história mirabolante - que começa com um roubo de material de guerra, prossegue com uma encenação e acaba no gabinete de um ministro. Também por isso a acusação é feita em três tempos: a do assalto propriamente dito, do encobrimento do "achamento" e a parte que atinge a política. Os crimes em causa são apoio a organização terrorista, associação criminosa, tráfico de armas, falsificação de documentos, abuso de poder e denegação de justiça.