Tancos: 538 dias depois do roubo, os mistérios, o que é certo e o que falta saber
Passaram 538 dias desde que foi anunciado o roubo do material de guerra e Tancos, a 28 de junho de 2017, e a detenção os suspeitos do roubo, esta segunda-feira, dia 17 de dezembro, de 2018
O que é certo
O assalto
Na noite de dia 27 e a madrugada de dia 28 de junho foi roubado dos paióis de Tancos diverso material militar, entre os qual granadas, explosivos e munições. A investigação começou com a Polícia Judiciária Militar (PJM) mas, por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR) passou para a Polícia Judiciária (PJ), por haver suspeitas de ligações ao crime organizado, tráfico de armas e terrorismo.
A recuperação do material
A 18 de Outubro a PJM anunciou que "na prossecução das suas diligências de investigação no âmbito do combate ao tráfico e comércio ilícito de material de guerra, recuperou (...) na região da Chamusca, com a colaboração do núcleo de investigação criminal da Guarda Nacional Republicana de Loulé, o material de guerra furtado dos Paióis Nacionais de Tancos".
Este comunicado deixou suspeitas no MP, primeiro pelas "diligências de investigação" da PJ Militar quando o inquérito estava sob coordenação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e da PJ, que as desconhecia; depois pelo envolvimento da GNR de Loulé, bem longe do local em causa.
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A investigação que se seguiu, através das vigilâncias e escutas realizadas, terá conseguido estabelecer as ligações entre os militares de Loulé e da PJM com um dos suspeito do roubo - o ex-fuzileiro João Paulino, em prisão preventiva desde 25 de setembro, depois de ter sido detido no âmbito da "operação Húbris", que investigou a suspeita de encenação do "achamento" do material. O aspeto mais grave é a suspeita do MP de que os responsáveis da PJM tenham negociado a entrega das armas com Paulino, garantido que este não seria denunciado à justiça.
As detenções
Com as detenções desta segunda-feira, eleva-se para cerca de duas dezenas os arguidos relacionados com o assalto a Tancos, nove dos quais detidos a 25 de setembro na "Operação Húbris". Nessa altura, foi detido o diretor da PJM, Luís Vieira (em prisão preventiva), outros quatro responsáveis desta polícia militar, três elementos do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé e um dos suspeitos do roubo.
Segundo o MP, nesta operação estavam em causa "factos suscetíveis de integrarem crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida e tráfico de armas".
Em meados de novembro o MP constitui arguido outro suspeito - especialista em arrombar cadeados e fechaduras - que terá indicado ao grupo criminosa qual o material a utilizar para arrombar os paióis, mas não ficou detido, alegadamente por ter colaborado na resolução do crime.
Ligação com o roubo das Glock da PSP
Sempre houve quem insistisse que haveria alguma relação entre os roubo das 57 pistolas Glock do armeiro da direção nacional da PSP - detetado em janeiro de 2017, quando uma das armas roubadas foi apreendida a um traficante de droga - e o assalto a Tancos. Fontes da investigação têm negado ao logo do processo, mas essa hipótese veio a confirmar-se com a operação desta segunda-feira: entre os detidos está um suspeito também referenciado pela PSP por ter estado envolvido no desvio das armas nesta força de segurança. Ambos os inquéritos estão nas mãos dos mesmos procuradores do DCIAP.
Processos disciplinares
O Exército abriu processos disciplinares a quatro militares que prestavam serviço em Tancos. A pena mais gravosa foi aplicada a um sargento do regimento de Engenharia 1, a proibição de saída durante 15 dias, por ter sido provado que "não mandou fazer as rondas como estava previsto na norma de execução permanente".
Comissão de inquérito
A comissão parlamentar de inquérito sobre as consequências e responsabilidades políticas do furto do material militar dos paióis de Tancos iniciou os trabalhos em 14 de novembro. Tem como objeto "identificar e avaliar os factos, os atos e as omissões" do Governo "relacionados direta ou indiretamente com o furto de armas em Tancos", de junho de 2017, data do furto, ao presente, e "apurar as responsabilidades políticas daí decorrentes".
A 08 de janeiro de 2019, os deputados vão visitar os paióis de Tancos, de onde foi furtado o material militar em junho de 2017, e a base de Santa Margarida, para onde foi transferido parte do material. As audições, que começam pelos militares, iniciam-se no dia seguinte, em 09 de janeiro de 2019.
Em setembro, na sequência da detenção de militares da Polícia Judiciária Militar e da GNR, o CDS anunciou a comissão de inquérito, aprovada apenas com a abstenção do PCP e do PEV. A comissão tem o prazo de 180 dias, prorrogável por mais 90, para chegar a conclusões.
Está prevista a audição de 63 personalidades a ouvir até maio de 2019, incluindo arguidos no processo judicial, investigadores da PJM, comandantes operacionais e chefes militares, responsáveis das secretas, o primeiro-ministro, António Costa, e os ex-ministros da Defesa Aguiar-Branco e Azeredo Lopes.
Os mistérios
Caixa a mais
Um dos grandes mistérios que ainda não foi decifrado é saber, realmente, que material estava guardado nos paióis assaltados em Tancos. Quando o material foi recuperado a 18 de outubro, apareceu uma caixa a mais. Segundo o Chefe de Estado-Maior-General do Exército, Rovisco Duarte, era uma caixa de "petardos", mas a designação é simplista - tratava-se, isso sim, de uma embalagem com 100 velas de explosivos plástico. A explicação era que a dita caixa não tinha sido registada e que, por isso, no auto de apreensão que a Polícia Judiciária Militar (PJM) elaborou, não constou como roubada.
Segurança Interna
É outro dos mistérios: perceber porque tanto a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI) como o secretário-geral dos Serviços de Informações da República (SIRP) souberam do roubo "pelos jornais", conforme afirmaram no parlamento. Outra coisa difícil de entender é porque, perante a dimensão do roubo - que levou até a alertas em Espanha e França e à embaixada dos EUA em Lisboa quase a cancelar a festa do 4 de julho - o SIS não tenha alterado o grau de ameaça em Portugal.
Além do facto, claro, de a Unidade de Coordenação Antiterrorista (UCAT) do SSI só se ter reunido mais de 48 horas depois de ter sido conhecido o assalto, dia 30 de novembro ao final do dia. Na sua audição parlamentar, a secretária-geral do SSI, Helena Fazenda, garantiu que "os contactos com as forças e serviços de segurança foram permanentes" desde que teve conhecimento do roubo, dia 28.
O que foi dito na reunião da UCAT
Foi nesta reunião a 30 de novembro, dois dias depois do assalto, que juntou diretores e comandantes das polícias, militares e o diretor do DCIAP, que foi partilhada informação sobre os possíveis cenários do assalto. Terá logo aqui o MP indicado que havia suspeitas de ligação a crime organizado e a terrorismo? Uma vez que o grau de ameaça não foi aumentado, foram dadas indicações de prevenção às polícias?
O que falta saber
Quando, para quem e porquê?
Com a detenção dos suspeitos do roubo esta segunda-feira ficou esclarecido, à partida, quem foram os autores do roubo. O que não se sabe é com que objetivo e quem encomendou, se alguém nacional ou estrangeiro.
Há militares envolvidos?
O envolvimento de militares, que teriam facilitado a entrada dos assaltantes nos paióis e dado informações sobre as rondas de segurança, tem sido sempre dado como certo. De acordo com as últimas informações recolhidas pelo DN, há poucos dias haveria apenas um militar sob suspeita concreta de cumplicidade. Até ao momento, no entanto, nenhum foi detido.
E o terrorismo?
O roubo do material material para ser vendido a uma organização terrorista, que faz parte das suspeitas investigadas pelo DCIAP, a par do tráfico de droga e de armas, é o cenário que mais ceticismo tem causado. Os militares, principalmente, acreditam que este crime só foi incluído como suspeita para a investigação ser retirada à PJM. Os assaltantes têm ou não ligação a algum grupo terrorista? Foi alguma organização criminosa, com ligações a estes grupos, que encomendou o assalto? Recorde-se que entre o material furtado havia explosivos, lança-foguetes e granadas que podem ser utilizados em atentados e cada vez mais os grupos que se dedicam ao tráfico de armas e droga, como será este o caso, têm ligações a organizações terroristas ou extremistas.
O que foi realmente roubado
O Ministério Público detetou discrepâncias entre a lista do material desaparecido e o recuperado. O Exército só tinha assumido que faltavam as munições de 9mm, mas afinal faltavam também granadas e explosivos. Uma das hipóteses admitida é que o inventário dos paióis estivesse truncado e que parte desse material em falta nem sequer tivesse sido roubado.
Perante gritantes falhas na segurança de uma instalação militar deste nível de risco - assumidas mesmo pelo ministério da Defesa Nacional no relatório "Tancos - Factos e Documentos" - é uma incógnita saber se não houve, noutras ocasiões, mais material "desaparecido".
O ex-ministro da Defesa soube ou não do "encobrimento"?
Azeredo Lopes tem negado ter tido conhecimento do plano da PJM para encenar a recuperação o material de guerra, encobrindo os assaltantes. Um dos detidos na operação Húbris, major Vasco Brazão (em prisão domiciliária, com pulseira eletrónica), que coordenava na PJM a investigação ao roubo garante que sim. Alega que foi ao ministério da Defesa com o diretor da PJM, em novembro de 2017, e entregou um documento ao chefe de gabinete do ministro, general Martins Pereira - no qual é assumida parte da encenação da recuperação do material de guerra da Chamusca e o acordo com um "informador" (que era um dos suspeitos do assalto) para afastar a PJ - e que o general telefonou para o Ministro a dar-lhe conta da situação.
Inquirido pelo DCIAP o general terá confirmado. O ex-ministro mantém que desconhecia e está na lista do DCIAP para ser inquirido.
Por seu lado, o ex-diretor da PJM ainda não confirmou este encontro com Martins Pereira.
E António Costa?
O primeiro-ministro cometeu uma gaffe recentemente quando, no aniversário dos três anos de governo, veio dizer que estavam afastadas da investigação as suspeitas de terrorismo ou crime organizado."Esse cenário felizmente não se coloca porque logo no dia a seguir à constatação do furto, as autoridades nacionais e, em particular, a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, reuniram a Unidade de Coordenação Antiterrorista que identificou que o furto nada tinha que ver com qualquer ligação a criminalidade organizada, muito menos a atividade de terrorismo", afirmou o primeiro-ministro.
Estava errado, como veio a ser confirmado, logo no dia seguinte (27 de novembro), quando a PGR juntou do DCIAP os dois inquéritos, do roubo e da recuperação do material de guerra, mantendo a linha de investigação definida desde 4 de julho de 2017, que indicou a associação criminosa, tráfico de armas e terrorismo internacional como possíveis crimes relacionados com o assalto.
Uma coisa pode, no entanto, ter sido demonstrada com esta gaffe: realmente António Costa não estava a par da investigação.
O que sabia o ex-diretor da PJM?
No interrogatório judicial a que foi sujeito depois da detenção, o coronel Luís Vieira alegou desconhecer o que a equipa liderada por Vasco Brazão tinha arquitetado um plano com o suspeito do roubo. Fontes da defesa sustentam que o coronel dava "total autonomia" às equipas de investigação e que não sabia a sua estratégia de atuação.
Como se sabe, o juiz não acreditou que um diretor-geral não acompanhasse de perto um caso desta sensibilidade e subscreveu os argumentos do MP para decretar a sua prisão preventiva.
De acordo com fontes judiciais, são várias as provas - testemunhais, de vigilâncias e escutas - a fundamentar os indícios de envolvimento de Luís Vieira - desde ordens para não dar informação à PJ; a ter dado aval ao acordo com o suspeito; ter subscrito o comunicado do "achamento", com informações falsas; e ter impedido a entrada da PJ no quartel onde estava o material de guerra que tinha sido "encontrado" na Chamusca.