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Poder
06 outubro 2019 às 09h20

O Loden verde de Freitas que mudou as campanhas políticas

A campanha para as eleições presidenciais de 1986 foi um marco na comunicação com os eleitores. Freitas do Amaral reuniu a direita sem complexos à volta de um sobretudo, um íconico Loden verde mimetizado pelos apoiantes. E falou para a juventude.

Filipe Gil

Multidões na rua. Um hino. Milhares de bandeiras, autocolantes, t-shirts, chapéus de palha e um casaco que ficou para a memória coletiva dos portugueses: o Loden. Um sobretudo verde escuro, que Diogo Freitas do Amaral - desaparecido na passada quinta-feira, aos 78 anos - usou na campanha para as presidenciais de 1986. As eleições mais peculiares e marcantes da história da então jovem democracia portuguesa.

A direita e o centro direita com dinâmica de vitória mobilizaram em tons festivos o seu eleitorado que seguia para todo o lado o candidato Diogo Freitas do Amaral, vencedor da primeira volta e com mais votos (46,31%) do que os candidatos à sua esquerda: Mário Soares (25,43%), Salgado Zenha (20,88%) e Maria de Lurdes Pintasilgo (7,83%).

Contudo, como reza a história, não foi suficiente para ganhar logo remetendo a decisão para a segunda volta. Com toda a esquerda unida em volta de Mário Soares e com vários episódios a surgir durante a campanha, entre os quais o apelo de Álvaro Cunhal e que o eleitorado comunista votasse no candidato socialista e as agressões a Mário Soares na Marinha Grande deram élan à campanha da esquerda e o resultado final levou Mário Soares pela primeira vez para o Palácio de Belém.

​​​​​​Resultados políticos à parte, esta foi uma campanha diferente de todas e marcou muitos os portugueses, sobretudo à direita, pela sua simbologia e iconografia ainda hoje recordada. Adolfo Mesquita Nunes, advogado e ex-vice presidente do CDS-PP, na altura com oito anos, aponta a campanha com um dos momentos mais marcante para a sua escolha política. Conta que vivia no seio de uma família "muito politizada e de lados diferentes do espetro político". A campanha de Freitas do Amaral foi a que mais lhe tocou. "Tinha um conteúdo aspiracional muito forte, que aliás, é uma característica que a direita tem dificuldade em criar, e isso era muito visível na campanha com toda a sua imagética. Havia uma preocupação com os jovens, desde os famosos chapéus de palha até aos jogos de batalha naval para os mais novos", recorda.

António Sousa Duarte, doutorado em ciência política onde foi aluno de Freitas do Amaral explica que nessa altura o país viveu o que nunca mais viveu em 45 anos de democracia. "Era um país dividido ao meio entre a esquerda e a direita. Foi um fenómeno curioso que ao longo dos anos subsequentes nunca mais se repetiu com tamanha exuberância e acuidade. Nessas eleições estiveram em confronto duas visões diferentes não só sobre política mas também sobre a sociedade portuguesa".

O sobretudo das elites

As clivagens políticas da campanha de 1986 trouxeram uma iconografia muito especial à campanha em ambos os lados do espetro. Mas foi a campanha de Freitas do Amaral que sobressaiu num universo que até então era parco e cinzento. O historiador António Araújo - cronista do DN e assessor de Marcelo - indica que do ponto de vista iconográfico foi uma campanha muito interessante. "Freitas do Amaral teve uma campanha como nunca se tinha visto em Portugal nitidamente inspirada nas campanhas norte-americanas. Com um sentido festivo e que hoje até pode parecer sóbrio mas que na altura, num país ainda muito cinzento, era muito festiva".

Carlos Coelho especialista em marcas e comunicação indica que foi sobretudo uma afirmação de pertença a um lado e também de uma certa aspiração. "A memória que tenho é a de grandes multidões, do candidato como herói a ser levado numa onda de pessoas. No fundo, uma campanha mais parecida com as coisas do futebol. Onde também se procuram palavras de ordem simples, que podem ser ditas por toda a gente. Fenómenos públicos de procura de sentido de pertença". Reforça a ideia explicando que"a sociedade portuguesa viu em Freitas do Amaral uma direita intelectual, e existiu uma vontade de associar a alguém mais erudito, e isso significava, também, vestir de determinada forma".

A referência ao famoso sobretudo verde-escuro de Freitas do Amaral são inevitáveis. Ficou para sempre ligado à campanha da direita às presidenciais de 1986, tanto que foram muito dos seus apoiantes que mimetizaram o candidato, nos comícios e arruadas da campanha existiam autênticos "exércitos" de Lodens (o nome do sobretudo) entre os presentes. O historiador António Araújo explica que foi mais que um casaco foi sim "um dispositivo identitário e um sinal agregador. Seria impensável que Mário Soares também usasse um Loden na mesma campanha. O candidato tinha um sobretudo verde muito utilizado pelas elites e não escondia a sua ligação às elites e até a sua origem social."

Por sua vez, António Sousa Duarte acredita que foi algo espontâneo "aquele casaco pesado, elegante, chique, verde, que é uma cor diferente, corporizou instantânea e empiricamente uma maneira de ser e estar que ia ao encontro do voto institucional, um voto formal, conservador e neoliberal. E tenho a certeza absoluta que nenhum spin doctor da altura teve a ideia de gerar no Loden e no chapéu de palhinha matrizes diferenciadoras de uma candidatura".

E hoje, seria possível uma campanha assim?

O país era diferente em 1986. Hoje as campanhas fazem-se de outra forma. Seria possível uma identificação tão icónica com uma campanha ou candidato? Adolfo Mesquita Nunes afirma que na altura o país vinha de uma revolução há pouco mais de uma década e existiu "um sentido inaugural que não se repete, o que é normal que assim seja porque as campanhas, a democracia e as escolhas dos lados já não é inaugural é hoje mais comum".

E reforça que hoje em dia os partidos e os grandes protagonistas políticos levam com décadas de existência e trazem o seu ativo e passivo, na altura ainda havia muito por escrever de futuro e hoje é diferente. "Não digo que não aconteça, mas são condições muito diferentes".

Carlos Coelho indica que o contexto agora mudou. "Não há nenhum partido, a não ser o clube do presidente Marcelo, que consiga ter na rua a relação e a capacidade de movimentação da altura. Os tempos são outros, as pessoas são diferentes não nos relacionamos da mesma forma. Não precisamos sequer de ir à rua para obter informação, temos uma relação diferente com os partidos".

Sousa Duarte discorda e explica que uma campanha tão forte iconicamente seria possível e mais eficaz por causa das redes sociais. "É curioso e até não deixa de ser intrigante que com o recurso às redes sociais não vemos associado às candidaturas algum tipo de iconografia que as tornasse diferenciadores, hoje seria possível e bem mais fácil em função da facilidade digital. Porque não se faz? Acho que os spin doutors de hoje estão um pedaço distraídos."

O que fica para a direita

Mas para a direita portuguesa essa campanha não se resumiu a sobretudo e chapéus de palha, Adolfo Mesquita Nunes que foi uma campanha aspiracional muito importante. "A campanha de Freitas do Amaral tenha esse conteúdo inspiracional muito forte, e foi isso que fez uma grande diferença, foi muito bem pensada nesse sentido".

António Araújo reforça dizendo que foi talvez a primeira vez que um homem cujas origens remontavam ao antigo regime surgiu sem complexos. "Foi a primeira grande vitória sobre os complexos do antigo regime para a direita. Apesar de antes já ter existido a vitória de Cavaco Silva na liderança do PSD, a candidatura de Freitas do Amaral não foi pacífica no seio da direita, contudo foi uma altura em que o centro direita surge com uma dinâmica ganhadora, uma direita comprometida com a economia de mercado e não é uma direita salazarista que Freitas do Amaral sempre renegou", conclui.