Na estrada que liga as aldeias de Bruscos a Alcouce, há um único cartaz das eleições europeias: é o de Marisa Matias, a candidata do Bloco de Esquerda que nasceu ali, a dois km de distância - a mesma que percorria quando era menina, para ir à escola..É quinta-feira, 16 de maio, e à hora em que a candidata se prepara para um dos dias mais marcantes da campanha - em Coimbra, onde tudo começou no que à política e intervenção diz respeito - a vida por ali condiz com o nome da rua empedrada onde brincava com os irmãos e os amigos. A placa não engana: Rua do Volta Atrás..Naquelas duas localidades da União de Freguesias de Vila Seca e Bendafé já morou o dobro da população. Era assim no princípio dos anos 80 quando Bertolino Figueira (antigo autarca de Condeixa-a-Nova, a sede de concelho, colada a Coimbra) moveu todas as influências para construir, na sua terra natal, uma escola primária..A aldeia chegou a ter perto de 100 habitantes, "hoje terá metade", acredita Marisa Matias, que ali viveu até aos 22 anos, quando se tornou na primeira pessoa da família a concluir uma licenciatura [sociologia, na Universidade de Coimbra]. Mas antes disso, muitas voltas haveria de dar - entre Alcouce e Bruscos, entre Bruscos e Condeixa, entre Condeixa e Coimbra. E depois, daí para o mundo inteiro. Hoje regressa à terra "duas vezes por mês", para visitar os pais, que ainda moram na mesma casa onde a eurodeputada cresceu, entre a lida da casa e a do campo..Entre a rapariga de Alcouce e a deputada do Parlamento Europeu há muito mundo. Aquele que conheceu por causa do trabalho de investigação académica, num Brasil de favelas, ou das comunidades afrodescendentes e migrantes nos Estados Unidos. E depois o outro mundo, que a perturba. "No exercício de deputada vi o pior do mundo". O que mudou, então, nestes 20 anos? "Ter que me confrontar permanentemente com situações de morte, famílias divididas ou crianças sozinhas, no caso dos refugiados. Ou enquanto chefe da delegação europeia nas Honduras, um narco-estado em que a vida não tem absolutamente valor nenhum".."Nestes 10 anos acabei por conhecer o lado avesso do mundo, aquele que ninguém devia conhecer, tão-pouco ter que viver", diz ao DN, entre um cigarro eletrónico e um gole de chá de cidreira..O que é que isso muda numa pessoa? "Tem que haver um esforço muito grande para não se perder a esperança na humanidade. Algumas vezes estive perto disso. É preciso engolir muito em seco"..Mas Marisa sabe que não pode permitir-se fraquezas. "Quando estamos nestas circunstâncias não temos o direito de nos ir abaixo. São fortalezas, pessoas que sobreviveram a tudo. Não tenho o direito de chorar à frente daquelas pessoas. E isso foi uma coisa muito difícil de aprender". Tal como "resistir e evitar transformar-me numa pessoa cínica e fria"..A democracia aos bocadinhos.Voltemos à década de 80, ao tempo em que na rádio os GNR cantavam "quero ver Portugal na CEE". "Foi o exemplo daquele Portugal que viu a democracia a chegar aos bocadinhos e nos faz valorizar o que são os serviços públicos", conta ao DN Marisa Matias, a meio do dia de campanha em Coimbra, de volta a casa.."Enquanto eu lá vivia, coincidiu com a fase em que houve a maior abertura em termos de igualdade de oportunidades. Independentemente da condição socioeconómica, nós sentimos na pele o que foi a chegada dos serviços públicos", acrescenta..Quando a pequena Marisa entrou para a primeira classe, em 1982, não havia escola em Alcouce. Ela e os amigos percorriam cerca de dois km a pé, até à aldeia de Bruscos, para aprender a ler. No inverno, "quando os dias eram muito, muito frios, a Câmara Municipal enviava táxis que transportassem os pequenos..Em 1983 inaugurou-se a escola primária, com pompa e circunstância. A sorte protegeu os audazes 20 alunos da terra naquela altura, e durante alguns anos, mas não durou para sempre. Fechou em 2006..Desses anos dourados em que o progresso parecia subir a encosta da aldeia de Marisa, ficaram outras memórias felizes. Como o dia em que chegou a luz elétrica, no final da década de 1970. Antes disso, ela lembra-se bem de percorrer as ruas de pedra num caminho escuro como breu, "para irmos ver televisão à casa dos meus avós, que tinham um gerador"..Na TV Sónia Braga encarnava Gabriela, na sala dos avós a tia implorava-lhe que saísse da frente do televisor. "Queria ver tudo". Era a sede de conhecer o mundo, era a ordem natural das coisas para quem é a irmã do meio..A colega que deixava copiar os tpc's.Na escola, Marisa foi-se destacando desde pequena. "Era assim, como ainda hoje é. Inteligente, tinha sempre boas notas" recorda Vítor Melo, antigo colega de turma na Escola Secundária Fernando Namora. "Do que mais me lembro é de como nos ajudava. Naquela altura tinha duas miúdas na turma que eram ambas muito boas alunas. Só que ela deixava-nos ver os trabalhos e até copiar por ela, que tinha sempre tudo certo".."Ela é hoje a mesma pessoa simples que sempre foi", acrescenta Cláudia Santos, colega desde a primeira classe e até ao secundário. "Toda a gente sabe que ela foge ao protótipo do que é um político. Aqui todos lhe reconhecemos na política a resiliência que sempre teve, a abnegação", sustenta Cláudia, enfermeira há 21 anos, grata à amiga de infância "pelo muito que tem ajudado este país"..Talvez fale da determinação que a jovem Marisa sempre teve, desde os tempos do secundário. "Quando fui estudar para Coimbra comecei logo a trabalhar", recorda a candidata. Era no Moçambique, emblemático café do universo estudantil. "Isso fazia com que os meus pais tivessem que me ir buscar às 3 da manhã. Depois dormia um bocadinho e ia apanhar o autocarro das 6h45, para voltar a Coimbra e ir às aulas"..A primeira viagem.Filha de um guarda-florestal e de uma empregada de limpeza, Marisa Matias confrontou-se desde cedo com a necessidade de ajudar nas despesas (do curso, até), numa família de parcos recursos..Não admira por isso que haja um mundo a separá-la do político comum, e até dos companheiros de partido. Saiu de Portugal a primeira vez quando já tinha 23 anos. Foi à Grécia, em trabalho, sozinha, com os dracmas contados para o tempo que por lá iria demorar. Apanhou um taxista que não falava inglês, ela não sabia uma palavra de grego, e gastou tudo na primeira viagem de táxi. Valeram-lhe os colegas que lhe emprestaram dinheiro, entretanto..Marisa Matias começou a interessar-se por política desde cedo, por culpa de um vizinho dos avós. Chamava-se Álvaro Febra e era um militante comunista que vivera em vários países, na clandestinidade. "Por ele viver lá, a aldeia foi muito sujeita a rusgas da PIDE, que às vezes chegava com os agentes a cavalo; entravam nas casas de toda a gente. As pessoas chamavam-lhe o Álvaro Cunhal". Muito mais tarde, os habitantes de Alcouce viriam a descobrir que quem o denunciava sempre "era um senhor também da aldeia, que trabalhava em Coimbra, na Faculdade de Direito e colaborava com a PIDE".."Os meus avós ajudaram-no várias vezes a esconder, mesmo sendo eles de direita". Já os pais, pendiam para a esquerda, uma esquerda moderada que identificavam com o Partido Socialista. Agora não. "Agora são do Bloco de Esquerda"..A discussão política na ceia de Natal.Apesar de não serem ativistas, os pais de Marisa interessavam-se por política, sim. De resto, nas memórias de infância que guarda do Natal estão lá as grandes discussões políticas, "por causa do PSD e do PS. Se não se falasse disso já não era natal"..O vizinho Álvaro ia-lhe contando histórias e Marisa achava tudo fascinante. Ficava horas a ouvi-lo. Já na juventude, envolveu-se nas lutas contra a PGA e contra as propinas. Mais tarde abraça as causas ambientais, na luta contra as lixeiras, numa era de pré-aterros sanitários.."As coisas aconteceram sempre de uma forma natural", considera, enquanto enrola o cabelo no cocuruto. Traz (sempre) um elástico no pulso. Repete esse gesto enquanto conta ao DN que votou sempre à esquerda, sendo que o primeiro voto foi em branco - "o que já demonstrava que não havia o partido que eu queria". Quando nasce o Bloco, em 1999, passa a votar na sigla vermelha. Foi várias vezes convidada a integrar o partido, mas haveriam de passar seis anos até tomar a decisão de se tornar aderente do BE. "Estava sempre a participar em coisas do Bloco [sobretudo em coisas do ambiente, porque eu era ativista ambiental]. O Tózé André chateava-me a cabeça para eu aderir e eu dizia sempre que não queria. Só que a dada altura dei por mim a achar que era um bocado ridículo eu ser apresentada como independente, quando afinal era depende do Bloco. Estava sempre a votar neles. E por isso no dia em que decidi fiz questão de lhe entregar pessoalmente a ficha"..A utente da USF de Celas, bandeira do SNS.Tózé, esse ícone do BE em Coimbra, irá encontrá-la à porta da Unidade de Saúde Familiar de Celas (onde ela já foi utente), nesta quinta-feira em que faltam 10 dias para as eleições, ao lado de uma comitiva que integra o líder da bancada do Bloco na AR, Pedro Filipe Soares, e ainda os deputados Moisés Ferreira e José Manuel Pureza, este último eleito por Coimbra..Marisa chega como de costume: sem alarido, um pouco tímida até, mas confiante num vestido de seda-salmão e um curto blusão de ganga, botas de camurça, de combate.."Escolhi esta USF porque é o exemplo de como o Serviço Nacional de Saúde Funciona bem. Para mostrar que o SNS de qualidade não é uma miragem. E por isso não baixamos os braços", dirá no final da visita Marisa Matias, depois de abraçar médicas e enfermeiras que bem conhece, ao lado de Fátima Branco, a diretora daquela unidade..À noite, no comício do Pátio da Inquisição, haverá de repetir a mesma frase, acrescentando apenas a nota "dos socialistas que se envergonharam perante o recuo do Governo no compromisso que assumira com o BE"..Os gatos, a família, o regresso a casa.Quando chegou à Praça do Comércio, na baixa de Coimbra, Marisa Matias tinha à espera uma visita especial: o irmão e os dois sobrinhos, que lhe saltam para o colo de imediato. Entre os jornalistas sabe-se que é reservada no que toca à vida privada, mas há sempre um fotojornalista que não resiste à imagem. Marisa pede que não utilizem as fotos, quer preservar o anonimato da família. Uma assessora informa-a do inevitável: "a tua mãe e as tuas primas queriam saber se não vai haver arruada". Não, desta vez não. Está ali para (dar a ) conhecer o trabalho da Associação Gatos Urbanos, e também para lembrar que "em matéria de bem-estar animal temos que acompanhar o que se faz na Europa".."Olha, está ali a Marisa Matias!" - notam duas universitárias numa esplanada próxima. Muitos voltam a cabeça para se certificar de que é ela, no passo apressado de final do dia. Ela está "em casa", como dirá a encerrar o comício de Coimbra. Sobe ao palco depois de ouvir e aplaudir a coordenadora Catarina Martins, a candidata espanhola do Podemos, Maria Eugénia Palop, Arnaldo Morais, o candidato surdo que integra a lista e fez entrar na campanha duas interpretes de língua gestual portuguesa. E também o mandatário António Capelo, que brindara a tenda coberta com "Morte ao Meio Dia" o célebre poema de Ruy Belo. Porque "é preciso uma campanha de poesia e de música, daqui por uma semana é preciso votar. É preciso cantar e ninguém canta, é preciso avançar e não se avança".."No meu país nunca acontece nada", declama, logo depois da atuação de Jorge Palma. "Fazer comícios com ele é um luxo", disse Catarina, sublinhou Marisa, que o elege como um dos cantores portugueses de que mais gosta. Na música, como na literatura - e na vida - é muito eclética. Enquanto percorre o país de carro há uma play list onde cabe tudo: de música popular brasileira aos portugueses de intervenção, passando - sempre - por David Bowie.."Não sou dona dos votos de ninguém".Numa perspetiva pessoal, a campanha corre-lhe bem. Na rua a recetividade é grande. Mas Marisa experimenta despir essa pele de candidata e olha para a campanha numa perspetiva "mais pública": "eu acho que estamos a discutir muito pouco o que devíamos. Acho que se está a fazer uma campanha para a abstenção e não para esclarecer". E afinal para ela o que será um bom resultado? Marisa repete uma frase que já muitos lhe ouviram: "eu não sou dona dos votos de ninguém. O resultado será aquilo que as pessoas entenderem que nós merecemos"..O que gostava - mesmo - era que esta candidatura que encabeça fosse avaliada "pelo trabalho que fizemos e pelas propostas que temos". Acredita que as pessoas sabem que fez "o máximo para as defender", e tem a expectativa de melhorar o resultado e aumentar a representação..Quando arranja tempo livre, Marisa gosta de ler. E de cozinhar. Adora fazer sopa, feijoada, rancho ou favas com chouriço. Quando menina e moça, semeou e apanhou favas, debulhou-as e aprendeu a cozinhá-las como deve ser. "A gente tinha que fazer tudo" [na terra e na agricultura]..Quando terminar a campanha, Marisa Matias há de ter mais tempo. É nessa altura que vai começar a reler um clássico a que já voltou mais do que uma vez: Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. O mesmo acontece com outro clássico de Gabo - O Amor em Tempos de Cólera. Que tão bem assenta neste tempo, nesta Europa, na demanda que a levou de Alcouce a Bruxelas.