Tancos. Estalagem e Bengalinha, os chefes da PJM afastados porque apoiavam a PJ

O cerco aperta-se à volta do grupo da PJM que o MP aponta como autores da alegada encenação da entrega das armas, em acordo com os suspeitos do assalto aos paióis. Dois investigadores contaram porque era <em>personas non gratas</em>
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"Fui posto à margem, nem cheguei a saber que material tinha aparecido. Nessa noite fui posto à parte!" Foi assim que o ex-diretor da Unidade de Investigação Criminal da Polícia Judiciária Militar (PJM), à data do furto de Tancos, descreve o momento (a 18 de outubro) em que soube que o material de guerra tinha sido "encontrado" na Chamusca.

O coronel da Força Aérea Manuel Estalagem disse esta tarde na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que só veio a ter noção do que se tinha passado realmente, quando leu o "memorando" publicado na comunicação social e que acabou por ser distribuído aos deputados, a seu pedido. Trata-se de um memorando, integrado no processo judicial, que detalha a operação da PJM para recuperar o material, em acordo com um "informador" (um dos suspeitos do assalto) e que mostra claramente a intenção de afastar a PJ.

Estalagem garantiu aos deputados que nunca teve conhecimento da preparação da alegada "encenação" e deu como explicação o facto de "toda a gente saber qual seria" a sua "atitude" caso tivesse conhecimento de alguma informação que fosse relativa ao caso: "Era a minha obrigação informar a Polícia Judiciária, e todos me conheciam, eles sabiam a minha moral e a minha maneira de estar", justificou.

O oficial afirmou que foi "completamente surpreendido com um telefonema [do major Vasco Brazão] às três da manhã" na madrugada do dia em que o material militar furtado quatro meses antes viria a ser "descoberto" na Chamusca.

"Não sabia o que ia acontecer e quando ia acontecer", disse o coronel, dando a entender que, a ter havido um conluio entre outros investigadores da Polícia Judiciária Militar (PJM) para encenar a recuperação do material furtado, ele não foi informado para que não pudesse avisar a Polícia Judiciária.

Mas nesta altura (outubro de 2017), Estalagem já estava um pouco de pé atrás, pois tinha visto o seu subordinado, capitão João Bengalinha, que tinha sido o primeiro inspetor-chefe da investigação, a ser afastado logo no início de julho de 2017, poucos dias depois do furto (que foi conhecido a 28 de junho).

Férias involuntárias

Bengalinha, igualmente oficial da Força Aérea, confirmou isso mesmo aos deputados, na sua audição, também esta terça-feira. "Tive um afastamento involuntário temporário e um afastamento voluntário definitivo", avançou o capitão.

Contou que logo a 7 de julho (oito dias depois de ter iniciado a investigação e, nessa altura, já em colaboração com a PJ que classificou de "sempre muito boa") recebeu do então diretor-geral, coronel Luís Vieira, ordem para ir de férias, porque estava "muito cansado". "Mostrei meu desagrado e disse que podia descansar no fim de semana. Mas ele foi perentório e disse-me que não me queria ver ali".

Quando regressou, dia 17 de julho, ficou a saber que era o major Vasco Brazão (em prisão preventiva, com pulseira eletrónica) quem, por ordem de Luís Vieira, estava a comandar as operações. Bengalinha tem uma possível explicação. "Não gosto de falar em fações, mas possivelmente pensavam que eu estava mais numa de cumprir o despacho de colaboração institucional com a PJ, tal como tinha sido determinado pela Procuradoria-Geral da República, e que podia ser persona non grata para o que estava a ser planeado", ou seja a "conspiração" com os autores do furto para a entrega do material, à margem da lei.

Ficou assim claro nestas audições - tal como, aliás, tinha sido corroborado pelos atuais diretores da PJ da PJM - que não havia uma "guerra" entre estas polícias, mas sim um grupo de pessoas na PJM dispostas a tudo fazer para recuperar o material e ganhar à PJ - mesmo que isso implicasse, como sucedeu, não denunciar os autores do furto.

Sobre a denúncia anónima que chegou à PJ e à PJM quatro meses antes do furto, a alertar para a possibilidade de haver um assalto a instalações militares - e que foi desvalorizada pelos inspetores destas polícias que nem informaram os superiores - estes oficiais confirmaram que nunca souberam da mesma.

"Nunca me foi reportado, antes tivesse. Não teria acontecido o que aconteceu", frisou Manuel Estalagem. Deixou implícito que neste caso, a ser verdade que houve um oficial da PJM que teve conhecimento deste alerta, a responsabilidade é maior. "Existe uma reunião semanal no CISMIL (secretas militares), na qual há sempre um representante da PJM. Nessa reunião há sempre passagem de informações e se essa tivesse chegado, imediatamente do Chefe de Estado-Maior do Exército teria sido avisado".

Segundo o diretor nacional da PJ, Luís Neves, terá sido o major Pinto da Costa quem soube da denúncia e a desvalorizou. Ouvido na manhã desta terça-feira, à porta fechada, o oficial não confirmou nem desmentiu esta imputação, recusando-se a responder aos deputados sobre aquela que é uma das questões fulcrais no processo. Durante muitos meses, a PJ e o MP foram acusados, por setores militares, de terem escondido esta informação.

Um louvor desconfortável

Uma questão a criar dúvidas sobre a posição de Manuel Estalagem em todo o processo, prende-se com um louvor que lhe foi atribuído pelo coronel Luís Vieira, em janeiro de 2018, quando saiu a PJM.

Os elogios foram muitos nessa distinção. "Ao longo da comissão de serviço evidenciou, invariavelmente, um relevante conjunto de qualidades pessoais e profissionais, destacando -se, em especial, a lealdade a toda a prova e dedicação, notável capacidade de organização do trabalho e de liderança que, aliado à sua sólida formação jurídica, impulsionou de tal forma as equipas de investigação que lhes permitiu excelente desempenho e atingir todas as metas e os objetivos propostos, granjeando, com isso, o respeito, reconhecimento e a admiração de todos os que com ele privaram", é escrito no louvor publicado em Diário da República.

Luís Vieira referia mesmo a investigação a Tancos, como exemplo do bom trabalho de Estalagem em processos que "evidenciaram total e cabalmente todo "o bem saber fazer" e toda a sua extraordinária capacidade de direção, coordenação, coragem e criticidade de decisões, só possíveis devido às suas extraordinárias qualidades de homem e militar, o que deu lustre à PJM".

Questionado pelos deputados sobre se não haveria contradição entre o facto de ter sido posto à margem das investigações paralelas do grupo liderado por Brazão, e estes elogios, Estalagem respondeu que não teve "orgulho" neste louvor e que só soube dele depois de publicado. "Quando li não senti orgulho nenhum. E nessas investigações relatadas não tive praticamente intervenção nenhuma. Fiquei surpreendido", asseverou.

O furto do material militar, entre granadas, explosivos e munições, dos paióis de Tancos, foi noticiado em 29 de junho de 2017 e parte do equipamento foi recuperado quatro meses depois. Em setembro de 2018 foram detidos, numa operação do Ministério Público e da PJ Judiciária, sete militares da Polícia Judiciária Militar e da GNR, suspeitos de terem forjado a recuperação do material em conivência com um dos presumíveis autores do crime, também capturado no mesmo dia.

No final do ano, em dezembro, uma nova operação da PJ levou à detenção de oito suspeitos relacionados diretamente com o assalto. O inquérito ao furto, iniciado pela PJM, foi incorporado no inquérito aberto com a denúncia anónima (7/4/2017), e a estes juntou-se também o inquérito à recuperação do material. Há duas dezenas de arguidos, entre suspeitos do furto, militares da PJM e da GNR, alegadamente envolvidos na "encenação".

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