O que diz o plano de contingência português para o Brexit?

Governo português apresentou esta sexta-feira plano de contingência para a área dos direitos dos cidadãos num cenário de Brexit sem acordo. Os dos portugueses a viver no Reino Unido. E os dos britânicos a viver em Portugal.
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Um plano de contingência feito na expectativa de que o que princípio da reciprocidade irá ser respeitado pelo Reino Unido. É esta a premissa em que assentam as medidas do governo português para um cenário de Brexit sem acordo, no que toca à área dos direitos dos cidadãos. Tanto dos dos portugueses no Reino Unido. Como dos britânicos em Portugal.

Esta parte do plano foi apresentada esta sexta-feira, no Palácio das Necessidades, em Lisboa, pelos ministros dos Negócios Estrangeiros e Administração Interna, Augusto Santos Silva e Eduardo Cabrita, respetivamente, na presença de vários secretários de Estado, de diplomatas e jornalistas de vários órgãos de comunicação social. A parte relativa à economia e às empresas será tornada pública na próxima terça-feira, dia 15, precisamente a data em que o Parlamento britânico deverá votar o acordo do Brexit fechado entre Londres e a UE27 no final de novembro.

A saída do Reino Unido, que a 23 de junho de 2016 votou pelo Brexit, está prevista para 29 de março, ou seja, dois anos depois de o governo de Theresa May ter acionado o Artigo 50.º do Tratado de Lisboa. A retirada do Reino Unido da UE será regulada pelo acordo do Brexit, que prevê um período transitório até 2020, mas se este for rejeitado - ou nem for votado - vários cenários possíveis se desenham. Entre eles o de um Brexit sem acordo. Daí os planos de contingência que têm vindo a ser anunciados - ou vão ainda ser - pelos governos dos restantes Estados membros da UE.

Há medidas de contingência de nível europeu e de nível nacional?

Sim, da mesma forma que há competências do domínio comunitário e, outras, do domínio exclusivo dos Estados. No que toca às medidas unilaterais dos Estados, que o ministro Santos Silva fez questão de sublinhar que teriam caráter temporário, Portugal pretende colocar a ênfase na área dos direitos dos cidadãos.

"Temos um plano que cobre seis áreas a nível europeu e apresentamos hoje as medidas para a área dos cidadãos, que é, para Portugal, a sua área de maior interesse", declarou o chefe da diplomacia portuguesa, na apresentação do plano, tendo referido, a título de exemplo de áreas de nível europeu, a dos serviços financeiros ou a dos transportes aéreos.

O que é que o governo diz já ter feito pelos cidadãos portugueses no Reino Unido?

No plano de contingência, o governo diz ter realizado 15 sessões de informação destinadas à comunidade portuguesa no Reino Unido, entre março e dezembro de 2018, criou o endereço de email brexit.cglondres@mne.pt e diz que tem mantido a comunidade sempre informada através das páginas www.cgportugalemlondres.com e do Facebook. Na atual legislatura o Reino Unido foi o país mais reforçado a nível consular com 20 novos colaboradores nos consulados de Manchester e Londres.

O ministro dos Negócios Estrangeiros Santos Silva sublinhou iniciativas legislativas que têm impacto neste caso: aumento da validade do cartão do cidadão de 5 para 10 anos para maiores de 25 anos ou dispensa da tradução de documentos oficiais em língua inglesa para atos de registo civil. Em 2018, refere a secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, liderada por José Luís Carneiro, o consulado de Londres teve o seu parque informático integralmente renovado, com 35 novos computadores, novos servidores...

"Entre 2003 e 2017 verificou-se um crescimento de 52% do número de atos consulares no Reino Unido. A média foi de 115 mil atos entre 2016 e 2018 e de 72 mil entre 2013 e 2015. Em 2016, ano em que se deu o referendo com resultado favorável para o Brexit, a 23 de junho, o número de atos consulares cresceu 93% em relação a 2015", diz um documento distribuído à imprensa, intitulado "Qualificação da Resposta Consular no Reino Unido (2015-2019).

Apesar de tudo isto, inúmeros portugueses no Reino Unido queixam-se de que ninguém lhes atende o telefone e de que não conseguem marcação para serem atendidos para tratar de assuntos, sobretudo no consulado de Londres.

O que é que pretende ainda fazer pelos portugueses no Reino Unido?

Acima de tudo, desde logo, exigir que as autoridades britânicas apliquem, num cenário de Brexit sem acordo, o princípio da reciprocidade em todas as medidas tomadas pelas autoridades portuguesas. "A primeira-ministra [britânica Theresa] May assumiu o compromisso de garantir, mesmo no cenário de uma saída sem Acordo, uma proteção dos direitos dos cidadãos da UE no RU similar à que está prevista no Acordo. Na sequência da publicação, em 6 de dezembro de 2018, do Policy paper do Governo britânico sobre os direitos dos cidadãos no cenário eventual de uma saída sem Acordo, aguarda-se a formalização desse compromisso de forma a garantir segurança jurídica aos cidadãos".

Ou seja, na realidade não há nada de juridicamente vinculativo, neste momento, que obrigue o Reino Unido a aplicar aos cidadãos portugueses as mesmas medidas "generosas" que Portugal decidir aplicar aos britânicos em território português. Apenas a palavra de May. E do seu atual governo. Que, como é do conhecimento geral, enfrenta uma crise de confiança profunda.

Para 2019, diz o plano de contingência português, está já calendarizado um conjunto de 35 presenças consulares em 16 destinos diferentes, como Thetford ou Londres, durante 93 dias. "Neste trimestre criaremos uma linha telefónica de atendimento consular especialmente dedicada ao Brexit e tem havido reforços de meios humanos nos dois consulados [Manchester e Londres], afirmou Santos Silva, na conferência de imprensa desta sexta-feira, no Palácio das Necessidades.

Quantos portugueses vivem e trabalham no Reino Unido?

Segundo dados divulgados pela secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas havia, em junho, 309 mil portugueses detentores do National Insurance Number (necessário para poder trabalhar em território britânico). Nos anos da crise, emigraram para o Reino Unido, entre 2011 e 2015, 129 mil portugueses. Em 2017 houve 32 mil emigrantes, uma quebra de 26% em relação ao ano anterior, de 2016, quando 52% dos britânicos votaram em referendo a favor do Brexit.

Quais serão então os direitos dos portugueses num cenário de Brexit sem acordo?

Os portugueses que estejam já ou entrem no Reino Unido até 29 de março (data prevista para o Brexit) poderão regularizar a sua situação até 31 de dezembro de 2020. "Em caso de saída sem Acordo, os portugueses que tenham entrado no Reino Unido até 29.03.2019 poderão regularizar a sua situação até 31.12.2020", refere o plano de contingência português, relativo à área dos direitos dos cidadãos.

"É preciso acautelar direitos até 29 de março", frisou Santos Silva, na conferência de imprensa, sublinhando que "os direitos dos portugueses que entrem no Reino Unido ou aí residam até 29 março de 2019 serão respeitados" e o respetivo "registo pode fazer-se até 31 dezembro de 2020".

Ou seja, insistiu o governante, mesmo sem acordo, os portugueses dispõem "de mais de um ano e meio para completar todos os passos para que cidadãos residentes no Reino Unido a 29 de março, se quiserem continuar a residir, o possam fazer com cartão de residência ou o pré-registo, nos termos definidos autoridades britânicas".

Além do direito de residência, as disposições concretizadas contemplam outros direitos como o reconhecimento de habilitações e qualificações profissionais ou direitos sociais, circulação, cuidados de saúde, entre outros.

Se o Reino Unido saísse da UE com acordo, o prazo para os portugueses em território britânico regularizarem a sua situação seria até 30 de junho de 2021. Mas isso era se o acordo do Brexit fosse aprovado e houvesse, de facto, um período de transição, conforme acordado.

"Em relação às prestações sociais as pessoas podem estar descansadas", frisou Santos Silva. "Os diplomas e os títulos académicos continuarão a ser reconhecidos. Quanto ao reconhecimento de qualificações profissionais, para profissões reguladas, está assegurado o reconhecimento de qualificações profissionais obtidas até 29 de março, para os que já têm essas qualificações profissionais reconhecidas no Reino Unido, esse reconhecimento é válido para além de 29 de março", detalhou o chefe da diplomacia portuguesa.

E os direitos dos britânicos residentes em Portugal como ficam?

Segundo disse na conferência de imprensa o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, estão registados atualmente em Portugal 22 431 cidadãos britânicos. Na ocasião, o governante apresentou um panfleto que será distribuído pela comunidade britânica em Portugal, no sentido de informar os cidadãos sobre o que têm que fazer para regularizar a sua situação em caso de Brexit sem acordo. Nesse cenário, o Reino Unido passaria a ser tratado como um país terceiro, tanto por Portugal, como pelos restantes Estados membros da UE.

Segundo esse panfleto, num cenário de saída do Reino Unido sem acordo, em que não haverá o tal período de transição, o direito a adquirir estatuto de residência permanente aplicar-se-á a todos os cidadãos britânicos que cheguem a Portugal - ou possam provar que já estavam em Portugal - a 29 de março. Estes terão até ao dia 31 de dezembro de 2020 para solicitar a emissão de registo (ou pedido de estatuto de residente, no caso de serem familiares nacionais de um país que não seja da UE).

Eduardo Cabrita sublinhou a importância dos turistas britânicos para Portugal. Segundo o ministro, 3 milhões de britânicos visitam Portugal, dois terços dos quais chegam por via aérea, o que dá 22% dos passageiros dos aeroportos portugueses. "O princípio, com ou sem acordo, é o da isenção de visto para os britânicos que queiram visitar Portugal", assegurou, explicando que, consoante os fluxos, que em Faro chega a representar 90% das chegadas, podem vir a ser estabelecidos "canais adequados que permitam manter plena fluidez entrada de cidadãos britânicos".

Neste ponto, o ministro Santos Silva, sublinhou, mais uma vez, o princípio da reciprocidade: "A proposta de regulamento debatida entre o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu, porque aí há codecisão, estabelece que os britânicos serão isentos de visto. Isentamos os britânicos de visto unilateralmente e teremos reciprocidade do lado britânico", disse na apresentação do plano de contingência esta sexta-feira.

No que toca à área da saúde, o ministro disse: "Continuaremos, mesmo depois do dia 29 de março, a assegurar cuidados de saúde aos cidadãos britânicos em Portugal, através do Serviço Nacional de Saúde, até que se estabeleça um acordo bilateral, esperando reciprocidade". Tendo em conta que os voos vindos do Reino Unido são já voos não Schengen (ficar fora do espaço Schengen foi um dos muito opting-out negociados pelo Reino Unido com a UE ao longo dos anos), Santos Silva declarou: "Queremos assegurar que as ligações aéreas continuam iguais ao que estavam".

Porém, há sempre um porém. "A passagem do RU à condição de país terceiro obriga a procedimentos adicionais, designadamente os previstos no Código de Fronteiras Schengen, no controlo de entrada e saída dos cidadãos britânicos do território 14 nacional. Também nesse âmbito, será necessário proceder à adaptação dos locais e capacitação das entidades com responsabilidade no controlo fronteiriço de forma a prover uma resposta adequada ao aumento do número de cidadãos sujeitos a controlo (aeroportos, portos)", lê-se no plano de contingência, apresentado esta sexta-feira.

Quais são os passos seguintes de Portugal na preparação para o Brexit?

Na terça-feira de manhã, as medidas relativas à economia e empresas serão apresentadas no Conselho Estratégico de Internacionalização das Economia e, à tarde, todo o plano será apresentado na comissão parlamentar de Assuntos Europeus por Santos Silva e pela secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias.

Terça-feira é a data prevista para a votação na Câmara dos Comuns do acordo do Brexit, fechado entre Londres e a UE27 no final de novembro. A questão é que, por causa do ponto do backstop, mecanismo de salvaguarda destinado a evitar o regresso de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, o Labour (oposição), deputados rebeldes do Partido Conservador de May e eleitos do partido unionista DUP poderão votar contra o acordo.

Em Portugal, na quarta-feira, será a vez de o Conselho Permanente de Concertação Social conhecer o plano de contingência do governo do PS e, na quinta-feira, haverá debate na Assembleia da República. Este foi agendado depois de o PSD ter submetido um projeto de resolução sobre a necessidade de Portugal ter um plano de contingência para um cenário de Brexit sem acordo. O CDS-PP também fez o mesmo esta semana.

Nessa mesma quinta-feira, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. José Luís Carneiro, estará em Londres, anunciou o ministro Santos Silva. Em Lisboa estará, por outro lado, para participar no Conselho de Estado presidido por Marcelo Rebelo de Sousa, o negociador chefe para o Brexit da Comissão Europeia, Michel Barnier.

O que é que os outros países estão a preparar como planos de contingência?

Desde a legislação aprovada em França, que dá ao governo poderes para tomar medidas urgentes à luz do estado de emergência, até à contratação de pessoal suplementar para portos como de Roterdão, na Holanda, os países estão a preparar-se da melhor forma possível, consoante as prioridades nacionais de cada um, para um cenário de Brexit sem acordo.

E além do Brexit sem acordo que outros cenários possíveis existem?

Variados. Apesar de faltarem apenas dois meses para o Brexit. Se na terça-feira dia 15 o acordo do Brexit for chumbado, May tem três dias para arranjar um plano B, voltando a falar com os 27. Se nada conseguir, se nada mais houver, poderá acontecer um Brexit sem acordo a 29 de março.

Também poderá haver, porém, uma moção de censura contra o governo conservador e eleições antecipadas, poderá haver um pedido de extensão do Artigo 50.º do Tratado de Lisboa (algo que poderia ter inclusivamente implicações a nível das eleições para o Parlamento Europeu em maio), poderá ainda, no limite, haver uma retirada da ativação do Artigo 50.º, fazendo tudo voltar ao início. E até poderá, mesmo, não haver votação, de todo, no dia 15. De momento, tudo e nada pode acontecer. Daí, os planos de contingências dos restantes Estados da UE. À cautela.

Portugal apoiaria uma extensão do Artigo 50.º?

Sublinhando sempre que aquilo que Portugal mais desejava era que o Reino Unido pudesse permanecer na UE, o chefe da diplomacia portuguesa admitiu que o governo português está disponível para viabilizar uma extensão do Artigo 50.º se Londres o solicitar. "Se for pedido? Sim", respondeu Augusto Santos Silva, respondendo a uma questão do DN na conferência de imprensa desta sexta-feira, no Palácio das Necessidades.

Para que houvesse uma extensão do Artigo 50.º, o Reino Unido teria que fazer um pedido formal, invocando razões fortes (como poderiam ser a realização de eleições antecipadas ou um segundo referendo) e os governos dos 27 Estados membros teriam que aprovar essa extensão, por unanimidade.

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