"Primeiro estranha-se, depois entranha-se". A frase publicitária de Fernando Pessoa sobre a Coca-Cola, tornou-se numa espécie de divisa dos militares portugueses no Afeganistão, mas aplicada ao frio, à poluição, ao cheiro a fumo em ambiente de "guerra"..O primeiro impacto à chegada, em Cabul, à base da NATO da missão Resolute Solution (RS) no aeroporto Hamid Karzai, ou HKAIA - os militares utilizam muito as siglas para comunicar -, pode resumir-se no movimento quase incessante nas ruas e no cheiro. Um cheio intenso a fumo que se entranha no nariz e nas roupas..É a poluição causada pela queima de madeira e tudo o que arda, de plástico a lixo, para aquecer as casas na capital afegã e em redor. Estima-se que vivam na zona, encravada nas montanhas, a 1.900 metros de altitude, entre cinco a sete milhões de pessoas, muitas em condições precárias, sem luz, sem saneamento, sem aquecimento..O sargento Vítor Pereira, na sua segunda missão em Cabul, explicou à Lusa como se ambientam os soldados, fazendo uma adaptação militar ao slogan de Fernando Pessoa e que é também usado em conversas com outros membros do contingente português.."Existem três fases. Primeiro estranha-se, depois entranha-se e, por fim, conseguimos viver normalmente. O início é muito complicado: o ambiente, o ar. Depois conseguimos viver o nosso dia-a-dia e cumprir as nossas funções sem qualquer dificuldade", descreveu..Uma das mulheres - há 15 no grupo de 213 militares -, a sargento de informações Lígia Rocha, já é a segunda vez que está num "teatro de operações". E, por isso, encarou a adaptação "com normalidade", embora o pior seja mesmo as saudades da família..A vida do dia-a-dia, de segunda a domingo, é feita de incertezas e tensão e as missões estão definidas..O contingente português em Cabul, a quarta rotação de seis meses da força nacional destacada, tem por missão, desde novembro, fazer a proteção ao aeroporto Hamid Karzai, na capital do Afeganistão, através de uma força de reação rápida. E até a segurança de visitas VIP à base, como aconteceu com o Presidente português, no domingo..Paralelamente, na parte da capacitação, como lhe chamam os militares, há portugueses a dar formação aos afegãos, na escola de forças especiais e de artilharia..São também portugueses a fazer a vigilância de torres para controlar movimentos da pista do aeroporto para a zona da base militar, em três turnos de oito horas cada -- dois soldados de cada vez..E se na base entram semanalmente 1.000 a 1.500 pessoas, na sua maioria militares das mais de 20 nações da RS, é por soldados e oficiais que são recebidos e controlados no PRC (acrónimo de centro de receção de pessoal, Personal Reception Center, em inglês)..Militares portugueses jogam na "primeira divisão".Na descrição de um oficial, esta e outras missões de responsabilidades do contingente português são uma forma de soldados e oficiais jogarem na "primeira divisão" e verem como e o que fazem as forças armadas dos Estados Unidos, Alemanha ou Reino Unido..A missão da RS, sublinhou um oficial português à Lusa, não é de "bota no chão", ou combate aos talibãs e outros grupos "insurgentes" - esse é feito pelos afegãos e pelas tropas dos Estados Unidos que não estão naquela base -, mas sim de suporte à estabilização do país..As saídas "à cidade" em dia de folga não existem e outras são raras. Na descrição feita à Lusa por militares destacados, isso só acontece quando algum oficial tem reuniões "fora" ou há necessidade de escoltar uma comitiva. Como acontece com os oficiais a dar formação às forças afegãs..McDonald's e pizzaria.Quando as estradas estão "negras" - o nível de ameaça é grande - a saída ou é cancelada ou o transporte é feito por helicóptero, uma espécie de "táxi" aéreo entre bases. E há mais bases em Baghram e Kandahar, antigo refúgio de Osama Bin Laden, líder da Al Qaeda, morto em 2011 pelos Estados Unidos, no Paquistão..O perigo espreita lá fora. Mesmo os blindados com a bandeira de Portugal - um país que não é um alvo tão visado pelos "insurgentes", como acontece com os Estados Unidos - quando saem da base, são, por vezes, apedrejados ao passar na rua, afirmam militares portugueses ouvidos pela Lusa na base..Mas a missão dos portugueses é, essencialmente, na base de HKAIA. Os turnos são de oito horas, com poucos dias de descanso, quase sempre passados no mesmo local..E aí, nas horas de descontração, a rotina pode passar pelo ginásio, uma enorme tenda com ar condicionado onde há máquinas de corrida para evitar exercício no exterior devido à poluição..Há um mercado de produtos afegãos, um McDonald's, pizzaria, um restaurante libanês, joalharias, lojas de produtos militares, cabeleireiro de homens e mulheres. Ou a Casa de Portugal, onde é possível beber uma "bica".