O sociólogo aficionado, a demissão que ninguém explica e o parecer deontológico que não o parece
Suspeito de violar regras científicas, o diretor de revista de Sociologia do ISCTE demitiu-se. Um mês depois, o parecer do Conselho de Deontologia da Associação Portuguesa de Sociologia, presidido por uma colega do ISCTE, mantém as suspeitas. E o departamento a que o sociólogo pertence recusa qualquer esclarecimento.
"Não lhe estou a dizer que não houve uma irregularidade, mas também não vou dizer nada sobre isso. Não lhe estou a dizer nada, é um facto."
É assim que João Sebastião, diretor do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia (CIES), do ISCTE, uma universidade pública, responde ao pedido de esclarecimento sobre o caso de Luís Capucha, sociólogo que se demitiu a 7 de dezembro da direção da revista Sociologia, Problemas e Práticas após uma notícia do DN indiciar suspeitas de instrumentalização da revista e de violação das regras científicas da mesma.
Em causa está uma situação que o diretor da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), João Teixeira Lopes, disse ao DN ver "com preocupação porque pode atingir a credibilidade da sociologia em Portugal", e que levou a direção da APS a pedir um parecer ao seu Conselho de Deontologia sobre a conduta de Capucha. Pedido esse que o terá levado a demitir-se da direção da revista.
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"Não lhe estou a dizer que não houve uma irregularidade, mas também não vou dizer nada sobre isso. Não lhe estou a dizer nada, é um facto."
Tendo o parecer, que se furta a fazer uma avaliação clara da conduta de Capucha e mantém as suspeitas sobre o seu comportamento, sido publicado a 4 de janeiro, no site da APS, o DN quis saber como foi recebido no CIES e se, na apreciação do caso, o departamento, assim como os diretamente implicados (Capucha e conselho de redação da revista), foram ouvidos.
Mas os e-mails enviados para a direção do CIES, para o atual diretor da revista, António Firmino da Costa, e respetivo conselho de redação não tiveram mais uma vez resposta (anteriores pedidos de esclarecimento do jornal ao diretor do CIES e conselho de redação foram também ignorados).
Se João Sebastião acabou por aceder a falar com o DN, foi apenas para certificar que "a direção do CIES esclareceu o que há a esclarecer perante as instâncias a que tem de prestar contas. Somos uma organização científica que tem de prestar contas a instituições científicas. Não tenho de prestar esclarecimentos a terceiros ou quartos."
Questionado sobre se não considera ser seu dever esclarecer o público sobre uma situação em que há suspeita pública sobre um membro do seu departamento e sobre o próprio departamento, o diretor do CIES é derrisório: "Não sei quem é o público, não sei quantos leitores tem o DN, não sei quantas pessoas leram a notícia do DN sobre o assunto." Chega mesmo a perguntar: "Quando o DN muda de direção explicam porquê aos leitores?"
"A direção do CIES esclareceu o que há a esclarecer perante as instâncias a que tem de prestar contas. Somos uma organização científica que tem de prestar contas a instituições científicas. Não tenho de prestar esclarecimentos a terceiros ou quartos. Quando o DN muda de direção também explicam porquê aos leitores?"
O mesmo entendimento sobre a desnecessidade de esclarecimentos públicos terá a presidente do Conselho Deontológico da APS, Rosário Mauritti. Colega de Capucha no CIES e como ele membro da respetiva comissão científica, Mauritti não se terá escusado a apreciar o caso.
Face aos pedidos de esclarecimento do jornal sobre o parecer e sobre o facto de ter ou não pedido escusa apesar da aparência de conflito de interesses, Mauritti respondeu, por escrito: "Por uma questão de isenção e responsabilidade ética e profissional abstenho-me de emitir a propósito qualquer interpretação individual. Não tenho nada a acrescentar".
Dúvidas públicas, esclarecimentos secretos
Parece que tanto o CIES como o CD da APS consideram que este caso só aos académicos diz respeito, sendo óbvia a crispação face às perguntas jornalísticas.
No entanto, a suspeita colocada em relação a Luís Capucha foi bastante pública, até porque a situação que lhe deu azo foi pública: em dois debates televisivos sobre o IVA das touradas, o sociólogo mencionou, como argumento de autoridade, "um artigo científico publicado numa revista científica" que segundo ele permitiria refutar "aquela tese que os antitaurinos utilizam a respeito das crianças e dos malefícios que a tauromaquia faz às crianças."
A presidente do Conselho de Deontologia da Associação Portuguesa de Sociólogos é colega de Capucha no CIES e membro da respetiva comissão científica. Questionada pelo DN sobre se não entendeu pedir escusa pelo aparente conflito de interesses, não respondeu. O seu nome assina o parecer sobre o caso, porém.
Para tal, explicou no Prós & Contras da RTP de 19 de novembro (já tinha dito o mesmo num debate da SIC Notícias três dias antes) "os autores cruzaram o índice de atividade tauromáquica com o índice de criminalidade e de poder de compra, para ir ver se há alguma relação entre a violência e a presença da tauromaquia e se há ou não alguma relação entre o desenvolvimento e a tauromaquia." Para concluir, triunfante: "Não há relação nenhuma. Se a tese dos antitaurinos fosse verdadeira, nós não conseguiríamos viver nos nossos concelhos, porque seriam tão violentos, tão mais violentos que em todos os outros sítios, que ninguém conseguiria sobreviver. Portanto esse argumento é completamente falacioso."
Sucede que o artigo em causa, cujas correlações foram qualificadas por vários sociólogos ouvidos pelo DN como "sem pés nem cabeça", "completamente espúrias" e até como "uma impostura e uma fraude científica", tem Capucha como primeiro autor e a revista científica onde fora publicado, a Sociologia, Problemas e Práticas, era à data por ele dirigida -- dois factos que entendeu não referir.
Como não referiu que o artigo não fora publicado num número regular, impresso, da revista mas colocado no respetivo site a 15 de novembro - a véspera da sua primeira comparência num debate televisivo, na SIC Notícias, no qual lhe fez menção nos mesmos termos que no P&C.
Acresce que ao mesmo tempo que o seu artigo era publicado, num procedimento que explicaria depois ao DN denominar-se de "ahead of print", ou seja, "antes da impressão", outros 14 eram-no também, tendo os autores sido disso notificados, por e-mail, duas horas após o referido Prós & Contras, ou seja, perto da uma da manhã de 20 de novembro.
Capucha esteve em dois programas de TV a defender a tauromaquia, nos quais referiu "um artigo científico, publicado numa revista científica", que permitiria provar que assistir a touradas não tem consequências negativas para as crianças. Nunca referiu que o artigo é assinado por si e publicado na revista que dirigia.
Ao inusitado da hora e do facto - ninguém os avisara de que tal ia suceder - juntou-se uma preocupação muito mais grave: vários dos autores não tinham ainda recebido a revisão científica dos artigos, obrigatória na Sociologia, Problemas e Práticas.
Sem essa revisão, que nos termos da acreditação internacional da revista tem de decorrer em sistema "double-blind peer review", ou seja, é feita por pares (outros sociólogos) que não conhecem a autoria dos trabalhos, nem se dão a conhecer aos autores, os artigos não poderiam ter sido publicados.
Assim, alguns dos autores pediram explicações, em e-mail para a direção e conselho de redação da revista, e os artigos - os dos reclamantes e o do próprio diretor - foram retirados do site a 23 de novembro, ou seja, ao nono dia de publicação.
Nenhuma explicação pública foi dada no site da revista, e os próprios autores esperam até hoje um esclarecimento sobre o que de facto se passou - um deles, preferindo não ser identificado, assegura ao DN que "nunca mais soube de nada", comentando, face ao parecer do CD da APS: "Fiquei na mesma."
Quem está a mentir?
Se em resposta escrita às questões do DN Luís Capucha asseverou que o seu artigo tinha sido alvo de revisão científica e até aceitou, em conversa telefónica, enviá-la ao jornal (nunca o faria, porém), foi menos claro sobre os restantes: disse que tinham sido aprovados para publicação por ele e pelo conselho de redação, mas escusou-se a afirmar que tinham sido objeto da obrigatória revisão científica. Embora no mesmo e-mail tenha garantido ao DN que nenhum artigo pode ser aprovado para publicação na revista sem a "double blind peer review".
Sendo que há alguém a certificar publicamente que pelo menos uma parte dos artigos foram publicados sem a revisão obrigatória: Karin Wall, a diretora do Instituto de Ciências Sociais, pertencente à Universidade de Lisboa, e que é, com a atual vice-reitora do ISCTE e ex diretora da revista, Maria das Dores Guerreiro, editora convidada do próximo número da revista (Maria das Dores Guerreiro nunca respondeu aos mails do DN).
Karin Wall, a diretora do Instituto de Ciências Sociais e editora convidada do próximo número da revista, reconheceu ao DN que os trabalhos submetidos para esse número ainda não tinham sido objeto de revisão científica quando a direção da revista os colocou on line. Ou seja, as regras a que a revista está obrigada por acreditação internacional terão sido violadas.
Numa declaração que lhe foi atribuída na primeira notícia do DN sobre o caso, a 1 de dezembro, Wall reconheceu que os trabalhos submetidos para esse número ainda não tinham, à data da publicação "ahead of print", sido objeto de revisão científica. Ou seja, a respetiva publicação infringiu sem qualquer dúvida as regras a que a revista está obrigada por acreditação internacional.
Porém, confrontado em janeiro pelo DN com a garantia de Wall (que não podia ignorar), o diretor do CIES, João Sebastião, recusa-se a dá-la como verdadeira, insistindo que os artigos tinham sido "aprovados": "Nunca falei com ela sobre isso, ela diz o que quiser."
João Sebastião mantém assim a versão do comunicado que o CIES publicou a 4 de dezembro no seu site, e ainda assinado também por Capucha, que se demitira três dias depois.
O comunicado falava de "um erro prontamente assumido perante os autores e imediatamente corrigido" e certificava que "todos os artigos são previamente avaliados entre pares de acordo com as regras estabelecidas (double blind review)" e que "a publicação apenas ocorre após a conclusão de todo o processo de revisão, de acordo com as normas constantes nas informações publicamente prestadas sobre as regras de submissão de artigos, as quais acompanham as melhores práticas científicas".
Confrontado em janeiro pelo DN com a garantia de Wall, que fora citada na primeira notícia sobre o caso, o diretor do CIES recusa-se a dá-la como verdadeira, insistindo que os artigos tinham sido "aprovados": "Nunca falei com ela sobre isso, ela diz o que quiser."
Este comunicado, para o qual a presidente do Conselho de Deontologia, na sua resposta escrita, remeteu o DN, já não está, curiosamente, no site do CIES (justifica João Sebastião que porque "esteve lá tempo suficiente para ser público, não fazia sentido mantê-lo").
Face a todas as declarações públicas existentes sobre o caso, a versões claramente contraditórias e à ausência de clareza da posição do CIES, não pode deixar de se estranhar que o parecer do Conselho de Deontologia da APS não pareça ter tomado conhecimento dessas versões e declarações nem as refira ou dê mostras de ter tentado ouvir os seus emissores para poder concluir com rigor sobre o que se passou.
Ou seja, se Luís Capucha, o conselho de redação da Sociologia, Problemas e Práticas (que se mantém inalterado sob a nova direção) e o CIES - com a sua inação e silêncio - violaram as regras científicas da revista ou se tudo é um enorme e muito injusto mal-entendido.
Mas o CD optou por procurar dizer o menos possível sobre o assunto, não mencionando sequer o nome do sociólogo cuja conduta é apreciada nem da instituição a que pertence ou sequer da revista em causa. O que se lê no site é: "Parecer relativo ao pedido da Direção da APS sobre eventuais incompatibilidades éticas e deontológicas entre o autor e diretor de uma revista científica".
Neste, refere "uma situação entretanto corrigida", sem dizer de que situação se trata (pode-se considerar que a correção em causa é a retirada dos artigos publicados "ahead of print", o facto de Capucha já não ser diretor da revista, ou ambos). E deixa intactas, pela sua falta de clareza, todas as suspeitas levantadas sobre a atuação de Capucha e dos responsáveis da revista.
Ao vincar que "a situação em apreço (...) colocou em destaque a necessidade imprescindível de uma postura de isenção, responsabilidade e rigor acrescidos", o parecer permite concluir que não foi o caso.
Apesar das versões contraditórias sobre o que se passou, o Conselho de Deontologia optou por procurar dizer o menos possível sobre o assunto, deixando intactas, pela sua falta de clareza, todas as suspeitas levantadas sobre a atuação de Capucha e dos responsáveis da revista.
O mesmo quando sublinha que "o exercício das funções de direção em órgãos editoriais de natureza científica em acumulação com as de autor de publicações nos mesmos órgãos, podendo ser legítimo no quadro das regras editoriais que pautam cada publicação, deve ser conduzido de forma particularmente isenta, através de procedimentos de revisão por pares pautados por elevados padrões de objetividade técnica e científica que assegurem, sem qualquer margem de dúvida, o cumprimento de normas editoriais de aferição da qualidade das publicações produzidas."
Ou seja, o CD diz que a publicação de um artigo de Capucha na revista que dirigia podia ser legítima, mas apenas quando se processasse com o máximo de isenção e com revisão científica acima de suspeita - "sem qualquer margem de dúvida" - que permitisse certificar a qualidade da publicação, ou seja, o do artigo. Porquê colocar tudo isto no condicional se é entendimento do CD que foi assim que se passou?
Ou o CD não sabe - e nesse caso porque não terá procurado saber -- ou sabe e não quis dizer. E não querendo dizer ou não sabendo, furta-se a fazer uma apreciação ética e deontológica sobre a atuação de Capucha.
Aliás, parece que o CD está a avaliar a conduta do diretor da revista - que por já não o ser "corrigiu a situação" - e não do sociólogo, quando, obviamente, só lhe competia pronunciar-se sobre a do sociólogo.
"Assunto encerrado"
Recorde-se o pedido da APS: "Entende a direção que a notícia em causa [referência ao artigo do DN que revelava o caso] levanta questões sobre eventuais incompatibilidades éticas e deontológicas entre o autor da tomada de posição e o seu lugar como diretor de uma revista científica, uma vez que um artigo da sua autoria teria sido publicado sem a observância das normas da publicação na revista que dirige. Assim, solicitamos ao Conselho de Deontologia um parecer sobre este ponto."
O facto de estar em causa a conduta do sociólogo, a suspeita de não observância das normas da revista na publicação do artigo da sua autoria e portanto a suspeita de instrumentalização é ainda mais clara quando a APS faz no seu comunicado sobre o caso "uma recomendação geral: a de que, no argumentário público, I) não se desqualifiquem interlocutores; ii) não se invoque uma autoridade científica soberana em nome da sociologia e a partir de estudos parcelares e provisórios elaborados por quem toma uma posição."
Aliás Teixeira Lopes reiterou, à época, o que se pedia ao CD para esclarecer: "A acumulação na mesma pessoa da situação de autor e diretor" assim como "as dúvidas em relação à existência da revisão científica prévia dos artigos, e a forma híbrida como foram publicados, com marcas de revisão ortográfica, mostrando que não estavam prontos."
É claríssimo pois que a APS pediu ao CD que apurasse se houve ou não revisão científica do artigo de Capucha (e dos outro publicados com ele "ahead of print") e se a acumulação na mesma pessoa das duas situações, diretor e autor publicado na revista que dirigia, suscitando dúvidas éticas, tinha decorrido de acordo com o rigor e isenção obrigatórios, ou, o que é dizer o mesmo, de forma ética.
Questionado pelo DN sobre se o conteúdo do parecer tinha respondido às dúvidas que levaram a Associação Portuguesa de Sociologia a pedi-lo, o presidente, João Teixeira Lopes, refugia-se numa resposta institucional. Sobre se está mais tranquilo em relação à credibilidade da sociologia portuguesa, que temia ser posta em causa pelo caso, não diz.
Ora o parecer, em vez de esclarecer esses dois pontos fundamentais, cita, como conclusão, o Código Deontológico da APS: "Como é justamente sublinhado no Código Deontológico (...), "o estatuto profissional do sociólogo impõe uma postura de maior isenção possível. Implica nomeadamente procurar um relacionamento equilibrado com os diversos atores sociais, individuais ou coletivos envolvidos no contexto da sua prática. Exclui ainda quaisquer utilizações abusivas da sua posição profissional, a qual não deve ser utilizada como falso pretexto para fins alheios à profissão de sociólogo." Foi o que se passou? O CD não diz, o que significa que fica a insinuação de que não terá sido assim.
Questionado pelo DN sobre se o conteúdo do parecer tinha respondido às dúvidas que levaram a APS a pedi-lo, João Teixeira Lopes refugia-se numa resposta institucional: "A direção da Associação Portuguesa de Sociologia, no respeito pela autonomia dos seus órgãos sociais, não deve, por princípio, comentar os pareceres do Conselho de Ética e Deontologia, tão-só esperar, genericamente, que sejam lidos, compreendidos, interpretados e respeitados." Sobre se está mais tranquilo em relação à credibilidade da sociologia portuguesa, que temia ser posta em causa pelo affaire Capucha, não diz.
Do mesmo modo, perante a remissão, pelo DN, das perguntas dirigidas à presidente do CD para o próprio CD como órgão colegial, já que nenhuma das questões do DN foi respondida, a APS respondeu que vai enviar as perguntas ao CD, mas que considera "o assunto encerrado".
Por esclarecer fica ainda o que vai acontecer aos artigos publicados ahead of print com o nome dos seus autores, prejudicando a possibilidade de "revisão cega por pares". E, naturalmente, ao artigo de Capucha, que o próprio publicitou em programas de TV e em relação ao qual já não se poderá de forma alguma esperar que, se não houve, haja revisão científica cega. Mas nem sobre isso o DN conseguiu esclarecimento da direção da revista e do CIES.