Ministro da Administração Interna quer IGAI a ouvir testemunha que falou ao DN
"Quando levavam para a salinha era para a surra. Sabia que uma hora iam matar um, desse jeito."
Márcia - o nome escolhido pelo DN para uma cidadã brasileira de 44 anos que esteve várias semanas, entre fevereiro e março, no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, e que contou a sua história sob condição de anonimato - descreveu ao jornal um quotidiano de terror em que vários detidos, entre eles o ucraniano Ihor Homeniuk, que morreu a 12 de março sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), foram levados para a divisão conhecida como "sala dos Médicos do Mundo", que não tem câmaras de vigilância, para serem espancados.
"Não foi só o ucraniano que apanhou ali. Muita gente teve problemas. Vi surras que muitos apanharam. Levam para aquela salinha que nós chamávamos dos remédios e batem. Várias pessoas foram postas naquela sala e saíam roxas e rebentadas, a coxear. Algumas saíam de cadeira de rodas. Vi vários factos acontecer do estilo do ucraniano", garante Márcia. "Os inspetores são muito bravos, vêm logo preparados para a "conversinha", de luva preta para não deixar impressão digital, tiram a identificação, e trazem um pau com eles, um pau de polícia, um cassetete, e entram com ele lá dentro."
Perante este relato, publicado este sábado no DN, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, pediu à Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) para abrir um processo de averiguações. De acordo com fonte do seu gabinete, o governante quer que a cidadã brasileira seja ouvida.
Destaquedestaque"Os SEF são policiais, eles têm muito poder. Nunca vão deixar de ter. Não sou eu que sou simplezinha que vou fazer a justiça no mundo."centro
Esta já afirmou ao DN que está disposta a testemunhar na justiça - e agora também perante a IGAI - mas que tem ainda receio do SEF e teme represálias. "Queria ter a minha situação segura e não correr o risco de ser expulsa do país por causa do que tenho para dizer."
Esse medo foi o que, diz, a impediu até agora de contar às autoridades aquilo que viveu. "Sabe, eu vi muita coisa ali. Mas tive tanto medo que quando saí de lá não pensei ir à polícia e denunciar. E ainda tenho medo, senão não tinha pedido para falar anónima. Fiquei com trauma. Porque aquilo é a barbaridade. Lá gente que é normal, você, se ficar lá presa a quantidade de dias que eu estive, Deus a abençoe se sair igual."
Ao saber que o governo quer que seja ouvida, Márcia espanta-se: "Repare, os SEF são policiais, eles têm muito poder. Nunca vão deixar de ter. Não sou eu que sou simplezinha que vou fazer a justiça no mundo. Tenho de pensar em mim que estou viva. Quero muito que haja justiça para o Ihor, mas não posso trazê-lo de volta."
Também a assistente Oksana Homeniuk estará interessada no que esta testemunha pode esclarecer sobre os acontecimentos que levaram à morte do seu marido, Ihor Homeniuk.
Oksana soube esta semana que o Ministério Público quer que o tribunal decrete a nulidade do seu pedido de indemnização ao Estado. O pedido, de um milhão de euros, foi feito no âmbito do processo criminal em que três inspetores do SEF - Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa -, em prisão domiciliária desde o início de abril, são acusados do homicídio de Ihor. Alega o Ministério Público (MP), assumindo uma dupla posição no processo, a de acusador dos arguidos em nome da vítima e defensor do Estado contra a família da vítima, que o pedido está deficientemente formulado.
Uma opinião em que a procuradora titular do processo, Paula Soares, não é acompanhada por juristas ouvidos pelo DN, os quais consideram que o Estado é solidariamente responsável com os eventuais condenados por homicídio e que existe um conflito de interesses na posição do MP. Dizem mesmo que, de acordo com o que prescreve o Estatuto do Ministério Público, quando este representa interesses conflituantes o Estado deve ser representado por um advogado, e que isso deve suceder neste caso. Questionada pelo DN sobre este conflito de interesses, a Procuradoria-Geral da República remeteu a questão para o juiz titular do processo.
A possibilidade de pagamento de uma indemnização extrajudicial, como sucedeu em 1996 quando um homem foi assassinado e decapitado no posto da GNR de Sacavém (o governo de então, chefiado por António Guterres e tendo António Costa como ministro dos Assuntos Parlamentares, fez uma resolução nesse sentido apenas dois meses após a morte), e agora no caso dos dois comandos que morreram em 2016 durante a recruta, não foi até agora aventada.
No entanto no acordo extrajudicial celebrado pelo Estado com os pais dos comandos Hugo Abreu e Dylan da Silva - que pediam uma indemnização no âmbito do processo judicial em que são arguidos 19 militares por "abuso de autoridade" e "ofensas às integridade física" - e no qual o Estado aceita pagar 200 mil euros aos primeiros e 210 mil aos segundos, lê-se: "Independentemente dos factos que venham a ser provados, está nos autos também em causa uma responsabilidade objetiva do Estado."
O DN questionou a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, sobre a sua posição em relação à assunção pelo Estado da sua responsabilidade objetiva na morte de Ihor Homeniuk , recordando que em 1996 foi o então Provedor Menéres Pimentel a insistir para que a reparação à família fosse feita o mais depressa possível, não esperando pelo resultado de um processo judicial sempre longo - e findo o qual o Estado poderá sempre exercer o direito de regresso sobre eventuais condenados.
Neste caso, tendo em consideração que funciona na provedoria o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, decorrente de um protocolo com as Nações Unidas, e que a própria diretora do SEF, Cristina Gatões, já admitiu publicamente que Ihor foi torturado sob custódia, considerando que esse facto é "evidente", não seria de esperar que a Provedoria pugnasse para que o Estado assuma desde já a sua responsabilidade na morte?
Destaquedestaque"A Provedora vem há muito e reiteradamente alertando as autoridades para os riscos de tortura, em especial no EECIT de Lisboa."centro
A resposta chegou por escrito: "O Provedora de Justiça, em particular na sua atuação como Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (MNPT), vem há muito e reiteradamente alertando as autoridades competentes para as condições absolutamente inadequadas e para os riscos de tortura, em especial no EECIT [Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporário] de Lisboa, bem como para a imperiosa necessidade de soluções alternativas condignas para acolher quem chega ao nosso país e não recebe permissão de entrada.
No caso do homicídio do cidadão Ihor Homeniuk, o processo-crime foi prontamente instaurado pelo Ministério Público e recentemente foi noticiado que o advogado da família desencadeou o pedido de indemnização cível no âmbito deste, seguindo as regras do Direito português, encontrando-se, portanto, o processo em apreciação judicial. A Provedora de Justiça continua, porém, a acompanhar o caso."